JOSÉ RAMOS - ENXUGANDOGELO

A bodega do Antônio que virou “Totó”

Antônio era o nome dele. Mais precisamente, Antônio Oliveira dos Anjos, recebido na pia batismal e no Cartório de Registros. Mas ninguém o conhecia dessa forma. Era “Totó” – o “Totó da Bodega” ou, no máximo, a “Bodega do Totó”.

Totó adquirira o hábito de acordar cedo em qualquer dia, pois precisava abrir as portas da bodega que, distante de qualquer padaria, vendia, principalmente, pão e leite. Pão d´água e sovado, hoje conhecidos como pão francês e massa fina. O leite (líquido) recebia ensacado da Usina e assim o vendia. Se vendesse fora do invólucro, com certeza, 20 litros virariam 30 ou mais.

Como qualquer bodega de bairro que se preze, a Bodega do Totó era ampla, montada na frente da casa, com três portas inteiras. Duas na frente e uma na lateral esquerda – essa porta dava acesso a um local improvisado que vendia carvão, medido numa lata de querosene das grandes. Gás butano era sonho ainda distante.

O balcão inteiriço, feito de madeira, não permitia que Totó saísse, tampouco que o freguês entrasse. Ali, sobre o balcão, repousavam uma balança antiga, um alguidá de cimento que servia de depósito para toucinho salgado, tripas suínas e bovinas, pés de porco e alguns ossos carnudos que serviam de tempero para os feijões cozidos. Além, claro, de papel de embrulho e folhas de revistas que eram usadas para “enrolar” sabão, fumo de rolo e outros que tais.

Por fora do balcão, lavado uma vez por semana, ainda repousavam fechadas, sacas de café em grãos, milho, vassouras, e latas de banha suína e de côco. Por dentro do balcão, uma bacia de ágata com água, que Totó não tinha o hábito de substituir, onde depositava copos que servia doses de cachaça.

Entre o balcão e as prateleiras, sacos abertos contendo arroz, feijão, farinha – que ainda não eram embalados, e precisavam ser pesados – e um cesto feito de cipós, contendo pão.
Afixada na prateleira, a famosa e tradicional placa com o aviso: “Fiado, só amanhã”!

Mas, o que seria de Totó, se não vendesse fiado!

Era ali, no fiado, que Totó concentrava todo o percentual do seu lucro.

Mães desavisadas mandavam filhos pequenos comprar na Bodega do Totó e mandar anotar na “cardeneta” (era assim mesmo que algumas falavam).

Nessa hora, 1 Kg de qualquer coisa só pesaria 800 gramas em outro local; “meia barra de sabão” só teria um terço dela e meia garrafa de querosene para a lamparina noturna só encheria um daqueles antigos frascos azuis de leite de magnésio.

Pior que, ao somar a conta dos fiados do mês ou da semana – alguns trabalhadores recebiam pagamento semanal – Totó “levava 1” quando a soma atingia 8 ou 9 e não 10.

Três, mais dois cinco, mais quatro, nove. “Vai um”!

Era assim na Bodega do Totó, que, infelizmente resolveu agradecer ao seu santo preferido, dando o nome de fantasia de “Mercearia Santo Expedito”.

10 pensou em “A BODEGA

      • Caro Zé Ramos,

        “Totó da Bodega” tá mais para um bodegueiro de apelido Cosmes Preto, amigo de papai, que possuía uma bodega que vendia de um tudo no bairro Santo Antônio, em Carpina – PE.

        Uma das estratégicas mais eficientes de Cosmes Preto era que ele nunca deixava o freguês sair da sua bodega sem a mercadoria desejada, mesmo que não tivesse na prateleira.

        De onde ele arrancava a mercadoria, até hoje procuro o segredo. Até hoje tendo decifrar o seu ilusionismo.

        Hoje fosse vivo, ficava rico com as suas pérolas. Mas o destino o nasceu numa época distante.

        • Ciço, todas as bodegas do interior, ou a maioria na capital, tinham o mesmo padrão de atendimento. O proprietário rude, amigo do alheio e aparentemente desumano para o mundo atual. Quase todos eram “Totó”!

  1. Me identifiquei com o belo texto, afinal, meu pai tinha uma “budega”, vendia de tudo que você falou, mas tinha um diferencial, uma geladeira Brastemp a gás, a cerveja era gelada e minha querida mãe lavava os copos de pinga na cozinha, o pai, levantava as quatro da manhã para receber o pão da Panificação Fortaleza (virou uma empresa nacional), com este comércio, pagava nossos estudos no Colégio São João, que ficava próximo a nossa casa. Tempos maravilhosos… e hoje você me fez lembrar de meu velho Pontes e aproveito para desejar a todos vocês e desejar um Feliz Dia dos Pais!

    • Obrigado Marcos pelo “Dia dos Pais”. Travestido e oficializado como algo “comercial”, o dia será eterno. Ainda hoje sou consumidor assíduo das bolachas Estrela – as de Maizena. Compro todo mês quatro pacotes, pois minhas filhas usam para fazer uma torta doce.

  2. Querido José de Oliveira Ramos:
    Parabéns pelo Dia dos Pais!

    Essa bodega me membra a do meu saudoso pai, em Nova-Cruz, Francisco Bezerra Souto, conhecido como Chico Bezerra!
    Nasci e me criei ajudando no balcão, assim como meus irmãos, ao lado de Seu Chico e Dona Lia, minha saudosa mãe.
    Lembranças preciosas, de um tempo feliz, quando todos estavam vivos.

    Seu texto me emocionou.

    Grande abraço! Muita saúde, alegria e Paz!

  3. Violante, obrigado. Sua generosidade foi acrescida pela prática. Com certeza, pela filha que teve, Seu Chico não “se fazia” no fiado.

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