JOSÉ RAMOS - ENXUGANDOGELO

O portão eletrônico das Queimadas

O ano, lembro bem, era 1954. Seca braba. Tudo seco. Animais morrendo de sede. Nem as muitas caminhadas para o Açude Novo conseguiam resolver. A jumenta Bonita caminhava trôpega com dois cambitos e dois barris d´água. Seria maldade transportar mais de dois barris – e Bonita, farejando o vento que soprava ao contrário da nossa direção, parecia sentir sede e andava mais rápido – Vovô orientava para não bater no animal. Naquela seca seria muita maldade.

Dia 19 de março se aproximava. Dia consagrado ao Santo Padroeiro do Ceará, São José. Havia em cada novena reunida durante a noite, uma reza muito forte pedindo o milagre da chuva.

Todo dia eu caminhava. Para ir, e, claro, para vir. Era até o Açude Novo, uma boa caminhada. Sempre sofrendo as agruras do calor na trajetória. O banho no açude refrescava um pouco. Banho nu. Sei que muitos banham nu. Mas era hábito, no Açude Novo, banhar vestido com um calção. Havia o local reservado para os homens, ainda que meninos, e para a mulheres, mesmo que meninas com os mamilos aflorando.

Os anos se passaram. Passou 1954. Passou 1955 e passou 1956. Em 1957 a seca que matava não apenas os animais, nos expulsou das Queimadas.

Antiga Praça José de Alencar

Meados de 1957, o êxodo nos levou para Fortaleza. Poderia ter sido Manaus, Salvador ou Curitiba. Não tínhamos nada de posse, além de duas ou três redes e um cachorro que parecia ser nosso Anjo da Guarda. E era.

Andando, chegamos a Fortaleza. Sem dinheiro, sem emprego e sem nada nas mãos além dos dez dedos. Andamos e fomos parar no Pirambu – ali, erguemos uma palhoça, onde poderíamos ter a sensação de liberdade e de um recomeço. Ledo engano. As necessidades materiais bateram à porta e entraram palhoça à dentro sem pedir licença. Fazíamos nossas necessidades fisiológicas onde estivéssemos e onde desse vontade. Despudoramente – e até aprendemos substituir o sabugo de milho pela água salgada do mar.

Os dias que chegaram nos encontraram andando. Andando para lugares incertos e levados pelos sons audíveis dos roncos famintos dos intestinos. Mas, aquela voz não nos deixava parar. Esmorecer, jamais.

Vá em frente, dizia uma voz vindo de algum lugar. Não pare. Ande. E foi aquele incessante caminhar, andar de mãos dadas que nos manteve unidos e de pé.

Chegaria 1958. A caminhada incessante e incentivada me levou ao Liceu do Ceará. Os obstáculos encontrados não me deixavam abater. Mas a insistência, a perseverança, a esperança acaba descortinando um novo horizonte.

Os dias se passaram e foram nos encontrar andando em busca de algo imaterial que acabaria por nos levar à materialidade das realizações. Aprendizado. Empregos. Vida, enfim.

Hora de servir à Pátria. CPOR. Universidade. A continuidade da caminhada nos levou à Western. Primeiro emprego formal. A imaturidade nos conduziu para a composição de uma Diretoria sindical. Sindicato dos Telegráficos. Ilusões. Nada mais que isso.

Theatro Municipal do Rio de Janeiro na Cinelândia

Andamos rápido, para a caminhada que nos levou para o Rio de Janeiro, sem lenço, sem documentos e sem profissão. O pouco tempo – seis anos apenas – de Western não nos garantia uma transferência.

Andando conforme a luz divina iluminava o caminho. Sempre o bom caminho – as necessidades materiais eram janelas abertas para o desvirtuamento. Deus não permitiu e a luz forte clareava a estrada – tanto quanto as lamparinas da Vovó, ou o candeeiro do Vovô iluminando o espraiado do quintal fronteiriço daquela casa onde nasci. Nas Queimadas. Onde dei os primeiros passos até aqui.

Andando sempre. Acreditando em Deus, mas, caminhando.

Vida. Universidade. Casamento e nova família. Problemas, mas continuamos andando, sempre na direção certa e no caminho traçado por Deus.

Sem acreditar jamais na mentira: “cada um será o que quiser”!

Cada um será sempre, o “que Deus quiser e traçar como destino inicial e final.”

Parte do Largo do Carmo em São Luís

Chegou 1987, e continuei andando. Agora, segurando na mão de Deus. Um novo caminho, ainda desconhecido, tanto quanto foi o Pirambu, em 1957 e o Rio de Janeiro, em 1969. Problemas vencidos e a construção de uma nova família. Tudo novo. Recomeço de uma nova caminhada – que mostrava a mesma esperança de quando colocava os cambitos e os barris vazios na jumenta Bonita, para “buscar água” no Açude Novo.

São Luís. Filhos. Três filhos, hoje adultos. Entraram na caminhada traçada por Deus.

Hoje, Deus bondoso e justo, permite que continuemos andando. Juntos. Eu e ELE! Nós, enfim.

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