DEU NO JORNAL

Editorial Gazeta do Povo

Mesmo sem a menor perspectiva de que algum dos pedidos de impeachment de Alexandre de Moraes tramite no Senado, ao menos enquanto Davi Alcolumbre for presidente da casa, os ministros do Supremo Tribunal Federal e seus aliados já começaram a se mexer para dificultar ainda mais qualquer tentativa de cassar um membro da suprema corte – até porque um dos principais objetivos da oposição em 2026 é o de construir uma maioria qualificada no Senado para romper o atual impasse. Duas ações que estão em análise no próprio Supremo têm o objetivo de construir uma blindagem aos ministros – que, em declarações à imprensa, também já entregaram sua estratégia caso tudo o mais falhe e os senadores, pela primeira vez na história do país, resolvam destituir um integrante do STF.

As ações foram propostas em setembro pela Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) e pelo partido Solidariedade, do deputado federal Paulinho da Força, que tem proximidade com vários ministros do STF. Sob a alegação de “harmonizar” a Lei do Impeachment (1.079/50) com a Constituição Federal, elas podem criar desigualdades que tornariam praticamente impossível cassar um ministro do Supremo. A legislação prevê que qualquer cidadão pode apresentar um pedido de impeachment do presidente da República, de ministros de Estado, de membros do Supremo e do procurador-geral da República por crime de responsabilidade, mas o Solidariedade pretende que apenas o procurador-geral possa denunciar um ministro do STF, criando o filtro mais estreito possível para que um membro do Supremo possa responder por seus atos; se esse filtro de uma pessoa só estiver “fechado” com os ministros, eles poderão cometer qualquer barbaridade e a chance de responderem por ela será zero.

Tanto o Solidariedade quanto a AMB ainda pretendem mudar o número de senadores necessários para a abertura de um processo por crime de responsabilidade contra um ministro do STF. Hoje, basta a maioria simples dos votos dos senadores presentes à sessão; se as ações forem aceitas, esse número subiria para 54, o correspondente a dois terços do Senado – a mesma quantidade que já é exigida para a cassação definitiva do ministro. Aqui, é útil fazer um paralelo com o processo de impeachment de um presidente da República. De fato, a aceitação da denúncia exige dois terços da Câmara dos Deputados, enquanto a cassação do mandato requer dois terços do Senado. No entanto, o próprio STF resolveu bagunçar o processo em 2015, quando inventou uma etapa intermediária, não prevista em lei, pela qual o Senado também teria de analisar a admissibilidade da denúncia contra o presidente, que só então seria afastado – esse passo exigiria a maioria simples dos votos. Como a Câmara não participa do impeachment de ministros do Supremo, uma comparação que usasse apenas as etapas que correspondem ao Senado resultaria em uma nova desigualdade, pois a aceitação da denúncia, com afastamento temporário, passaria a exigir mais votos no caso de um ministro do STF que no caso de um presidente da República.

Além disso, o Solidariedade também quer invalidar qualquer pedido de impeachment de ministros do STF apresentado “em razão de votos e opiniões proferidos no exercício da função jurisdicional”. O partido alega que isso criaria “crimes de hermenêutica” e violaria a independência do Judiciário, abrindo portas para a perseguição por discordância em relação a determinadas decisões. A esse respeito, no entanto, a Advocacia do Senado respondeu de forma muito certeira: a legislação atual é suficiente, pois ela não permite retaliações movidas por “divergência de teses ou fundamentos jurídicos”, e sim a punição de “situações excepcionais em que a atividade jurisdicional seja utilizada como instrumento de desvio funcional ou abuso deliberado contra a própria Constituição”.

Eis aqui o ponto-chave. Votos e decisões são a forma ordinária pela qual um ministro do Supremo age (deveriam ser a única, se nossos ministros também não se empenhassem tanto em fazer articulação política e comentar todo tipo de assunto na imprensa). E tais votos podem, sim, ser flagrantemente contrários à Constituição, podem constituir abuso de autoridade, podem abolir direitos e garantias constitucionais, podem caracterizar perseguição política – na verdade, tanto podem que é exatamente isso que temos visto com muita frequência, ao menos desde 2019. Se um ministro não pode ser responsabilizado por nada disso simplesmente porque o abuso se deu por meio de uma decisão ou um voto, isso significa que tais decisões e votos se tornam infalíveis, inquestionáveis, a única fonte de poder no Brasil, acima inclusive da Constituição.

Por fim, se por algum milagre os ministros do Supremo rejeitarem as ações que blindam sua atividade, ou se algum pedido de impeachment acabar aprovado mesmo com as novas regras, a carta na manga já está pronta: ao menos dois ministros, Gilmar Mendes e Luís Roberto Barroso, já afirmaram publicamente que a corte teria o poder de derrubar uma cassação aprovada pelo Senado – tudo, claro, a pretexto do “controle de constitucionalidade”, a ferramenta de que o STF abusa quando pretende fazer ativismo judicial. Guardadas as devidas proporções, é como se um presidente da República julgasse poder vetar uma decisão do Senado que cassasse seu mandato, e sem a possibilidade de o Congresso Nacional reverter o veto. Se isso parece ridículo aos olhos do leitor, é porque de fato o é, e o mesmo raciocínio vale para a suprema pretensão de ser o validador de um impeachment aprovado conforme as leis que regem esse processo.

Em resumo, o objetivo não declarado é o de acabar formalmente com o sistema de freios e contrapesos quando se trata de coibir excessos do Supremo Tribunal Federal – que, nem seria preciso dizer, continuaria a exercer tranquilamente o papel de contrapeso dos demais poderes. É verdade que o Brasil já vive, na prática, uma situação na qual o Judiciário se tornou um superpoder acima do Executivo e do Legislativo, mas isso se deve em boa parte porque o Senado, que tem a atribuição constitucional de ser o freio aos abusos do STF, tem se omitido nessa tarefa. Uma vez que a blindagem seja institucionalizada, nem mesmo um Senado disposto a fazer o que é certo seria capaz de se impor diante de um Supremo protegido por todos os lados. E, quando a igualdade entre poderes é subvertida dessa forma, bem sabemos que o resultado está muito longe de poder ser chamado de “democrático”.

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