JOSÉ RAMOS - ENXUGANDOGELO

Acauã ave agourenta

A calçada alta com as bordas feitas de tijolos brancos desgastados com o subir e descer da gente. Arestas abauladas pelo sentar e pelo tempo, naquele momento se tornava confortável e parceira na tristeza normal do fim de dia e chegada da lugubridade da noite. João cuidava em preparar os candeeiros para amainar a noite.

“Vem-vem!……..”

Sem que ninguém estivesse para chegar, o vem-vem cantava em tiriça, entristecendo mais ainda aquele fim de dia, que ficava mais triste ainda com a chegada das mariposas perseguidas pelas andorinhas.

Uma ode poética num verso que nada dizia além da desesperança. Sim, por quê, longe dali, na grande capoeira duas, três, quatro e agora cinco vacas haviam morrido de sede, virando carniça e fazendo o banquete dos urubus. A natureza se fazia perversa, ainda que de forma passageira.

Mais escuro que claro, o silêncio do vem-vem parecia uma autorização para os sussurros lúgubres da coruja que sobrevoavam a área. Aquele “cantar”, diziam alguns, era o prenúncio da chegada da morte para alguém. Era, pelo assim dizer sertanejo, um “agôuro”!

João concluíra a tarefa da preparação dos candeeiros. Agora, segurando na mão firme e envelhecida de Raimunda – os dois – dobrava os joelhos e rezava o que mais parecia uma cantiga que oração:

“Pai celestial de todos nós. Minhas vaquinhas estão morrendo de sede. Onte morreu uma, onteonte morrer duas e mais uma novilha, e hoje perdemos ôtra”. Ajude nós, Sinhô de todos. Nem temos mais o que cumê, faiz três dias.”

Acauã – Gravação de Luiz Gonzaga e letra de Zé Dantas

“Acauã, acauã vive cantando
Durante o tempo do verão
No silêncio das tardes agourando
Chamando a seca pro sertão
Chamando a seca pro sertão
Acauã,
Acauã,
Teu canto é penoso e faz medo
Te cala acauã,
Que é pra chuva voltar cedo
Que é pra chuva voltar cedo
Toda noite no sertão
Canta o João Corta-Pau
A coruja, mãe da lua
A peitica e o bacurau
Na alegria do inverno
Canta sapo, gia e rã
Mas na tristeza da seca
Só se ouve acauã
Só se ouve acauã
Acauã, Acauã…”

Muito mais que o sono, o cansaço e a ansiedade pela chegada da chuva, adormeceram João minutos após a oração conjunta com Raimunda. Candeeiros acesos. Cessado o canto da coruja. Mariposas que conseguiram se salvar da gula das andorinhas, fugiram e se aquietaram. Com o fato seguinte, concluo mesmo que se esconderam ou se abrigaram.

A noite quente que traz aquele calor conhecido na roça, agora começava a se transformar. Uma neblina e em seguida uma chuva mais forte e cada vez mais forte fazendo barulho nas telhas, acordou João.

– Chuva meu Deus! “Aubrigado” por atender minha oraçãozinha mais cheia de Fé que de conhecimento”!

Agora mais intensa, a chuva continuava caindo. A forte ventania começou a preocupar João que, longe dali, escutava os chocalhos das vacas em movimento procurando abrigo. A ressequida sombra do juazeiro não protegeria todas.

A claridade do dia seguinte chegou. João levantou, tomou café acompanhado de farinha seca e foi pastorear as vacas, na esperança que elas tivessem se protegido durante a chuva. Algumas sobreviveram, outras tantas se afogaram nos lagos formados pelo excesso de chuvas nas capoeiras. Mas, havia a alegria do futuro garantido pela chuva.

Contrito e agora só, João mais uma vez dobrava os joelhos em oração. Não era oração. Era uma cantiga do vasto cancioneiro sertanejo:

“Oh! Deus, perdoe este pobre coitado
Que de joelhos rezou um bocado
Pedindo pra chuva cair sem parar

Oh! Deus, será que o senhor se zangou
E só por isso o sol arretirou
Fazendo cair toda a chuva que há

Senhor, eu pedi para o sol se esconder um tiquinho
Pedi pra chover, mas chover de mansinho
Pra ver se nascia uma planta no chão

Oh! Deus, se eu não rezei direito o Senhor me perdoe
Eu acho que a culpa foi
Desse pobre que nem sabe fazer oração”

2 pensou em “SÓ UM PÔQUIM DE CHUVA

  1. Sou super fã de Gonzagão. Mas, para mim, gravar essa canção diminuiu sua sensibilidade às coisas da natureza sertaneja que ele tão bem representa.
    Não bastasse o tremendo mal gosto nos versos, na versão gravada com Fagner, Gonzagão encerra a sua participação chamando a ave de “bicho agourento do diabo”.
    Se o autor dos versos acredita que o piado da ave possa ser “chamando a chuva pro Sertão”, eu me despi de toda falsa modéstia e me ponho mais compreensivo, quando reflito que nada mais é do que a dor da fome na barriga d’acauã. Ou seja, um lamento penoso, profundo e mal interpretado por sua sina e má sorte em vê, por cima, a força brutal da natureza na seca que mata quase tudo ao seu redor.

    Deixo aqui versos meus, em homenagem a essa ave, muito mais símbolo da resistência do sertanejo do que qualquer outra coisa.

    Admiro a acauã
    Uma ave abençoada
    Dando a asa para a cobra
    Que no bote morde nada
    E depois do seu cansaço
    É levada ao espaço
    Para de lá ser jogada.

    Pelas unhas agarrada
    Sobe sem saber voar
    Se debatendo todinha
    Sem poder envenenar
    Não sabe o que acontece
    E acauã só obedece
    Ao instinto de escapar.

    Solta a cobra pra matar
    Numa pedra, morre a cobra.
    A acauã vem com o bico
    Comer da bicha o que sobra
    E com sua paciência
    Nos mostra um quê da ciência
    Que Deus fez em sua obra.

    Jesus de Ritinha de Miúdo, escrito em João Pessoa, 14/11/22.

    • Jesus, também sempre pensei isso. Talvez, inconscientemente tenha iniciado meu texto citando o Vem-Vem, cujo canto está ligado à saudade. Mas, cada um vê com seus próprios olhos.

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