Editorial Gazeta do Povo
No último fim de semana, a Primeira Turma do STF formou maioria para confirmar a aceitação de uma denúncia contra o senador Sergio Moro (União-PR) por suposta calúnia contra o ministro do STF Gilmar Mendes. A turma julgava embargos de declaração contra a decisão de junho de 2024 que tornou Moro réu; Cármen Lúcia, Flávio Dino, Alexandre de Moraes e Cristiano Zanin votaram para manter a aceitação da denúncia, faltando apenas o voto de Luiz Fux, que não tem mais como alterar o resultado. E, assim como ocorreu no ano passado, mais uma vez a principal corte do país consegue, em uma única votação, atropelar princípios básicos do direito, a própria jurisprudência, o calendário, o bom senso e o que mais houver em termos de correção jurídica.
Em abril de 2023, viralizou nas redes sociais um vídeo de menos de dez segundos, feito em uma festa junina na qual Moro parecia estar participando da conhecida brincadeira da “cadeia”, em que uma pessoa é “presa” e tem de pagar um valor para ser “solta”. Rindo, Moro afirma que “isso é fiança, é instituto, pra comprar um habeas corpus do Gilmar Mendes”. A Procuradoria-Geral da República, então, entrou em cena e ofereceu denúncia contra Moro, afirmando que ele imputava “falsamente [a Gilmar Mendes] o crime de corrupção passiva”, com as agravantes de crime cometido “contra funcionário público, em razão de suas funções” e “na presença de várias pessoas”, conforme os incisos II e III do artigo 141 do Código Penal. A PGR pediu que Moro fosse condenado a pagar uma indenização a Gilmar Mendes e a perder o mandato se fosse condenado a mais de quatro anos de prisão. Um erro do começo ao fim.
Para começar, tendo o vídeo aparecido nas mídias sociais no início de 2023, e tendo sido claramente filmado durante uma festa junina, era mais que óbvio que o evento tinha ocorrido no mais tardar em 2022, quando Moro ainda nem havia sido eleito senador. Por mais que o Supremo tenha alterado as regras do foro privilegiado não poucas vezes, ao menos desde 2018 a prerrogativa de foro não se aplica a supostos crimes cometidos antes da diplomação, ou seja, o caso jamais deveria ter sido encaminhado ao Supremo, e sim à primeira instância. Isso, claro, se de fato houvesse qualquer indício de crime, e aqui deixamos de analisar o “quem” e o “quando”, para examinarmos o conteúdo e o contexto das afirmações.
A jurisprudência a respeito do crime de calúnia é bastante clara ao afirmar que, para sua configuração, não basta uma afirmação genérica: seria preciso dar detalhes específicos sobre a “venda de habeas corpus”: quando ocorreu, em que processo, quem foi o beneficiado. Na pior das hipóteses, portanto, estaríamos diante de um caso de difamação, cuja pena corresponde a metade daquela prevista para a calúnia. Mas nem isso seria possível imputar a Moro, por outra razão também muito simples: ainda que o vídeo seja curtíssimo, é impossível fugir da conclusão de que tudo estava sendo dito em tom de brincadeira, o que no jargão jurídico chama-se animus jocandi. A melhor doutrina sobre a liberdade de expressão é enfática em afirmar que esse tipo de afirmação não constitui crime, e a jurisprudência brasileira o confirma: é o caso, por exemplo, da primeira das teses do Superior Tribunal de Justiça relativas aos crimes contra a honra, segundo a qual “para a configuração dos crimes contra a honra, exige-se a demonstração mínima do intento positivo e deliberado de ofender a honra alheia (dolo específico), o denominado animus caluniandi, diffamandi vel injuriandi”.
Apesar de um ou outro termo latino, estamos certos de que nada disso é grego para a PGR, nem para os ministros da Primeira Turma. Eles sabem – ou ao menos deveriam saber, já que nem é preciso ter “notório saber jurídico” para tal – que o juiz natural do caso não é o Supremo; que não há elementos para configurar o crime de calúnia; e que o animus jocandi é protegido pela doutrina e pela jurisprudência. Bastaria um desses itens para tornar inepta a denúncia; que ela tenha sido aceita mesmo contendo três erros grotescos não tem explicação jurídica possível.
A explicação, portanto, está em outro lugar, e também não exige muito esforço em encontrá-la: os integrantes do Supremo estão cada vez mais intolerantes a qualquer tipo de crítica. Quem diz pessoalmente a um ministro que ele e o tribunal são “uma vergonha” é obrigado a se explicar à Polícia Federal – como já ocorreu em um caso envolvendo o mesmo Gilmar Mendes, no aeroporto de Lisboa –; quem critica ministros em grupos de WhatsApp acaba processado. Cada vez mais a boa doutrina sobre a liberdade de expressão quando se trata de críticas a autoridades vai sendo esquecida pelo Supremo, e agora nem mesmo a simples piada está imune.