DEU NO JORNAL

Editorial Gazeta do Povo

Na tarde de segunda-feira, o ministro Edson Fachin tomou posse como novo presidente do Supremo Tribunal Federal, substituindo seu colega Luís Roberto Barroso. Para um tribunal que se agigantou a ponto de se tornar um superpoder, acima do Executivo e do Legislativo, governando de facto o Brasil, algumas das palavras do discurso de posse de Fachin mereceriam ser saudadas como sinal do que poderia vir a ocorrer nos próximos dois anos. Mas, por outro lado, quando confrontadas com a prática recente da corte, com outros trechos do discurso e com o próprio perfil de Fachin, não há como esperar pela tão necessária mudança no principal tribunal brasileiro.

“Assumo não um poder, mas um dever: respeitar a Constituição e apreender limites”, disse Fachin. Uma escolha de palavras muito peculiar; os dicionários mostram que “apreender” significa, entre outras coisas, “assimilar” ou “compreender”. E, de fato, se há algo que o Supremo não tem assimilado nos últimos anos é a ideia de que a atuação da corte tem limites: eles estão, por exemplo, na Constituição Federal, no princípio da tripartição de poderes, nos códigos que regem o comportamento dos magistrados, e no respeito aos direitos e garantias democráticas como a liberdade de expressão e o devido processo legal – todos esses elementos que, em diversos momentos ao longo dos últimos anos, ministros do STF, individual e coletivamente, julgaram ser dispensáveis ou subordinados a suas vontades e opiniões.

De que estamos falando? Das inúmeras ocasiões em que a liberdade de expressão foi abolida por meio de censuras inconstitucionais, aplicadas sem a menor cerimônia e em número que até hoje o Supremo se recusa a informar. Das vezes em que parlamentares tiveram sua imunidade “por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos” ignorada, sendo investigados, processados, condenados e presos. Das vezes em que ministros falaram fora dos autos e fizeram pressão política sobre parlamentares para a aprovação ou rejeição de projetos de lei. Das centenas de réus e condenados do 8 de janeiro que foram denunciados “no atacado”, sem a necessária individualização da conduta, e condenados sem provas que os ligassem aos crimes de que eram acusados – e tudo isso em julgamentos virtuais sem nem sequer a garantia de que suas defesas fossem ouvidas, já que a sustentação oral dos advogados de defesa foi substituída pela gravação de vídeos. De todas as vezes em que a corte subverteu o conceito de “controle de constitucionalidade” para escrever ou alterar leis, tomando o lugar do Poder Legislativo, ou para determinar políticas públicas, atropelando o Poder Executivo.

Se Fachin tivesse se referido, em seu discurso, a uma única dessas situações, qualquer uma delas, admitindo que a corte havia extrapolado e que era preciso corrigir rumos, haveria razões para esperança. Mas ele não o fez, e por um motivo infelizmente muito simples: para o novo presidente do Supremo, a corte não precisa mudar porque não tem feito nada de errado. “O tribunal que integro e que passo a presidir não falta à Constituição nem deslustra a sua tradição”, afirmou ele ainda na parte inicial de sua fala. Antes mesmo disso, já havia elogiado Alexandre de Moraes, que agora se torna vice-presidente do Supremo, com termos que devem ter soado especialmente dolorosos para todos os que têm sofrido na carne as injustiças cometidas pelo ministro – mas também para qualquer brasileiro ciente do grau de abuso que ele tem aplicado nos inquéritos de que é relator. Moraes, afirma o novo presidente do STF, é um “magistrado que engrandece este tribunal”, um “juiz feito fortaleza” que “merece nossa saudação e nossa solidariedade” – uma referência velada às sanções que têm sido aplicadas pelo governo norte-americano ao ministro e sua família. Diante de todas as controvérsias que têm envolvido a atuação de Moraes, não se pode alegar que a enxurrada de elogios seja mera gentileza protocolar; ela passa um recado, e ele não é nada bom.

Em vários momentos, Fachin se referiu à credibilidade das instituições. “Só há autoridade verdadeira quando há confiança coletiva no que é justo”, afirmou, acrescentando mais adiante que “as pessoas precisam querer e ter razões para confiar no sistema de justiça”. Mas o novo presidente do Supremo não compreende que, se essa confiança não existe hoje, o motivo não está em nenhuma campanha de desinformação ou fake news, mas na forma como o STF conduz seus trabalhos. Uma corte que revê jurisprudências com ligeireza, não raro de forma casuísta; uma corte que optou pelo justiçamento em vez da justiça em nome da “defesa da democracia”; uma corte com membros incapazes de suportar qualquer crítica e que partem para a grosseria quando confrontados; uma corte que se entende como “poder político” (capaz, inclusive, de “derrotar o bolsonarismo”) e concede a si mesma funções como a de ser “editora de um país inteiro” e “poder moderador”. Não surpreende que parte substancial dos brasileiros veja o Supremo com desconfiança.

Tampouco vemos perspectiva de redução do ativismo judicial, por mais que Fachin tenha afirmado, no discurso, que se deve dar “ao direito, o que é do direito. À política, o que é da política”. Seu antecessor fez o possível para convencer o país de que o ativismo judicial era um “mito”, enquanto conduzia julgamentos em que a corte assumia papéis que cabem ao Legislativo e ao Executivo. Fachin se mostrou adepto da mesma postura, e o fez com votos, especialmente na chamada “pauta de costumes”. Ele esteve no lado vencedor no julgamento que descriminalizou o porte de determinada quantidade de maconha. Embora sua divergência tenha saído derrotada, ele foi favorável ao reconhecimento, na prática, de uniões estáveis simultâneas. Fachin também seguiu Barroso quando este, em 2016, resolveu “sequestrar” o julgamento de um habeas corpus para afirmar que a legislação brasileira que criminaliza o aborto era inconstitucional. E, como relator da ADPF das Favelas, sua liminar restringindo operações policiais em 2020 constituiu uma interferência brutal nas políticas de segurança do Rio de Janeiro, cujas consequências incluíram o fortalecimento do crime organizado.

Por tudo isso, será muito surpreendente se, ao longo dos próximos dois anos, o Supremo partir para um reconhecimento público de seus abusos e exercer qualquer tipo de autocontenção. Para que o Brasil pudesse sonhar com isso, precisaríamos ter ouvido, na segunda-feira, algo mais parecido com o famoso discurso “Sobre o culto à personalidade e suas consequências”, em que Nikita Kruschev expôs os crimes de seu antecessor, Josef Stálin, no comando da União Soviética; em vez disso, ficamos com uma menção a “apreender limites” – limites esses que muito provavelmente continuarão a ser ignorados em nossa autocracia judiciária.

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