Conheci Dedé, pratrasmente, no tempo quando ele tinha seus 12 anos. Moleque sambudo, seco como taquara prestando vassalagem aos desmandos do vento. Passarinhista da melhor qualidade, desabusado da boca, mentiroso e invencioneiro. Tinha todos os sintomas do povo da política; não via a hora dele se tornar um deputado, ou um senador.
Vivia nos atrasos dos ermos, enterrado igual moirão em terra de pasto e boi, um lugarzinho mimoso, de grandes águas e vastos pastos chamado Remanso. Desde moleque dizia que cidade era coisa inventada por Satanás. O seu barulho dava, nele, câimbras nos olhos e deixava roncolho seu ouvido de ouvir.
Apaixonado por caça desde o gosto do primeiro leite, não tinha semana que sua mesa não estava desprovida de munição de boca, principalmente carne de capivara, ou mesmo onça, que ele tinha na mais alta qualidade de ser sustanciosa e revigorativa. Dedé estralava a língua quando falava em carne de caça e vivia sempre com sua lazarina encangalhada nos ombros. Passou caça alentosa, chumbo nela. Caça desimportante como preá, tatu, cotia, ou mesmo sariguê, ele deixava passar.
Voltei a reencontrá-lo dez anos depois, pardavasco troncudo, voz grossa de entulhar sala e saleta, já no depois dos seus vinte anos, liso como veado catingueiro, mais rápido que bacurau na boca da noite. Contou-me que o progresso foi chegando no seu paraíso de mato e bicho, e ele, Dedé, foi ficando desimportante no mato. Assim, tristento e cacarejoso fechou sua casinha, deu adeus a seus pés de pau e teve que ir para a cidade.
Instalado lá, não se cansava de praguejar o lugar, um oco do mundo chamado Sossego, terra que o que mais dava era assombração de cemitério, visage de menino pagão e assobiar de lobisomem no depois da meia noite. Terra que Belzebu renegou! Lugar que Satanás esconjurou, gritava ele! Mato era sempre melhor, mas teve que se adaptar.
Sempre fornido de coragem e valentia, como se tivesse acabado de ganhar a guerra dos Lopes, só queria que um desses empestiados viesse tirar farinha, ou desfazer de sua pessoa, nas noites de breu, sem lua, ou em sexta feira de lua cheia. Jurava para si mesmo que iria desfazer a audácia do desabusado a poder de safanão e grito! Toma sem-vergonha! Toma filhote de alisador de tamborete, com alma de dez por cento ao mês! Toma safardana!
Mas, de tudo isso, o que deixava Dedé tristento era a falta de um dia vadio para uma caçada de bicho portentoso no mato. Fazia para mais de ano e meio que o gatilho de suas carabinas estava em licença prêmio, sem ter o gosto de pólvora na ponta do cão. Dedé praguejava contra a cidade: Criadouro de vermina e febre palustre, morada de caburé e todos os atrasos da noite, isso sim é a cidade!
Mas, como nem tudo na vida é só sofrimento, recebeu de seu melhor amigo e vizinho, convite cerimonioso para um fim de semana no mato, para uma caçada especial, de uma capivara afamada, para mais de três arrobas, que fazia vadiagem no fim de tarde num brejal de um conhecido fazendeiro. Convite recebido e contratado em despacho de desembargador jubilado Dedé passou o resto da semana como se tivesse achado o seu Potosi. Era só alegria, a ponto de todos os seus dentes virem a gozar de felicidade, como se fosse negro cativo libertado.
Dia aprazado, caça contratada de morte, com atestado lavrado em cartório dentro da lei e da pragmática, saíram os nossos caçadores de madrugadinha, com o céu ainda compromissado com a noite, mas já querendo se divorciar dela. Aos poucos, o dia ia colocando para fora dos pés de pau a sua vida. Um ajuntamento de anuns carrapateiros já iniciava a sua faina carrapatista, enquanto uma sociedade de morcegos já bocejava no recolher do sono da manhã.
Para ajustar a mira e delimpar a trabucada, os dois vizinhos iam, meio que adernado na caminhonete, atirando sem compromisso, apenas para ajustar o cangote ao peso das armas e sentir o gosto de pólvora nas ventas. Dedé esfarelou um comício de caburés que teve o desplante de caçoar de sua pessoa, o vizinho espantou um ajuntamento de quero-quero que olhava todo pescoçoso para os caçadores. Atiravam a esmo, já que caça desimportante não os interessava. Queriam caça alentosa, dessas de destroncar balança de comércio.
Iam os amigos nessa vadiação quando Dedé viu um vulto correndo ao lado da caminhonete. Sem pestanejar, sacou sua lazarina e lá foi um tiro, certeiro, com endereço registrado e carimbado na dita caça. O gatilho da arma chegou a pular de alegria no gozo da pólvora. Parado o carro, os dois amigos desceram contentes como se fossem caçadores afamados e refamados, cobrindo o terreno para encontrar a caça abatida.
Para azar dos nossos caçadores, a caminhonete, dessas quem tem a caçamba feita de madeira, levava o estrepe amarrado na lateral. Um solavanco mais firme do carro fez o nó do estrepe partir e ele se soltou, correndo ao lado da caminhonete. Ao chegarem ao local da caça abatida, para constrangimento mútuo, Dedé e o vizinho encontraram o estrepe falecido, com um tiro certeiro na banda de rolagem.
Dessas que a gente lê e relê.
Só bobagens amigo Jesus…coisa de mente vadia
É impressão minha ou o Dr. Roque tava “rosianado” quando escreveu esse texto?
Guimarães Rosa aplaudiria de pé e já estou faz tempo!
Show!
Parabéns e obrigado, Dr. Roque!
Nonato….coisa de Caetano que fuma tabaco estragado e baixa o espírito do Rosa…..kkkk
Bom “demais da conta”, querido Roque Nunes. Sua linguagem é um relax e o texto ninguém supera! Adorei!
Como sempre, seus escritos são maravilhosos. Verdadeiros “remédios para os nervos”.
Grande abraço!
É uma honra ser sua amiga!