DEU NO JORNAL

Paulo Briguet

Daniel Soares do Nascimento foi condenado a 16 anos e meio de prisão por participar nos atos de 8 de janeiro

Daniel,

O seu nome vem do hebraico Dannyel e quer dizer “Deus é o meu juiz”. O primeiro Daniel, do Antigo Testamento, foi jogado numa cova de leões e de lá saiu ileso. Eu pergunto: quando você sairá? Quando terminará esse pesadelo? Quantas feridas terá no corpo e na alma?

Hoje eu escrevo para lhe contar que ouvi sua história, e que essa história não se cala dentro de mim.

Há alguns anos, eu perdi minha mãe para o câncer, mas pude cuidar dela até o fim. Pude segurar sua mão, limpar seu rosto, escutar suas palavras mesmo quando já vinham misturadas com o silêncio. Pensei em você, Daniel, sendo impedido de fazer isso; em sua mãe morrendo a chamá-lo no leito do hospital; em você no chão da cela, desenhando com os olhos molhados.
E me doeu.

Você foi condenado a dezesseis anos de prisão por ter estado em um lugar errado, numa hora errada, com os aliados errados. Mas sua mãe era certa. Seu cuidado com ela era certo. Seu coração era certo.

A única coisa diferente que você fez no 8 de janeiro foi recolher os cacos de vidro no chão do palácio para que as pessoas não machucassem os pés. Esse ficou sendo o seu crime.

Ontem alguém me disse que você é a pessoa mais gentil e educada que já foi presa no Brasil. Que, desde muito novo, você cuidava de sua mãe doente e era o arrimo da família.

Mas não houve clemência. Quando pediram sua liberdade para cuidar dela no fim da vida, o pedido foi negado por “falta de justificativas”. Como se o laço entre mãe e filho fosse um documento que pudesse ser perdido. Dona Inês não pedia mais nada. Só chamava seu nome.

Ela morreu sem ver você. E isso é uma sentença que ninguém escreveu no papel. Mas eu escrevo, Daniel. O que posso fazer além de escrever?

Alguns heróis fizeram mais: lutaram por você. Diante dos tiranos indiferentes, eles foram seus defensores voluntários. Houve quem saísse de casa de madrugada, quem gastasse o que não tinha, quem deixasse de viver a própria vida para cuidar da sua.

Não sei se você sabe, mas ainda existem advogados que rezam com os pés descalços. Mulheres que sustentam causas como uma missão dada por Deus. Gente que não esquece, que não desiste, que reconhece a sua pureza, Daniel.

No fim, esses anjos conseguiram que você visse sua mãe pela última vez, ainda que com restrições, pressa e escolta. Depois de muita insistência, você a encontrou — um corpo já sem vida.

Soube que você gosta de desenhar, Daniel, e que tem desenhado a vista de sua cela. Você até escreveu embaixo do desenho: “Vista de um dos buracos de ventilação de um corredor aqui. A liberdade está próxima”.

Desenho de Daniel Soares do Nascimento, preso na penitenciária de Limeira (SP) desde junho de 2024

Em que hora do dia você gosta de desenhar? Você reza antes ou depois? Qual é a parte da prisão que você vê? Qual é a parte da liberdade que você imagina?

Por trás de seus desenhos, eu vejo homens arrancados do convívio familiar. Batalhadores que sustentavam a casa, cuidavam de mães, esposas, filhos. Indivíduos jogados em celas sem rosto, enquanto seus nomes eram riscados das certidões de humanidade.

Eles são os Daniéis deste país: filhos, trabalhadores, devotos. Gente comum, com fé simples, coração ferido e mãos calejadas. Reféns de um drama que a história ainda não registrou. Joguetes de uma justiça sem piedade. Personagens de um país sem perdão.

A sua história é a deles, Daniel. E a deles é a sua.

Enquanto não houver misericórdia, o país continuará sendo uma imensa cela, onde o crime sem castigo determina o castigo sem crime.

Esta carta-crônica, escrita com o coração nas mãos, é o que posso lhe entregar por enquanto no lugar da liberdade. Para que você saiba, Daniel: nós estamos ouvindo.

Ainda que a sua prisão tenha sido uma espécie de morte, espero que a anistia permita cumprir o que já está escrito no seu nome: Nascimento.

Que você nasça de novo, Daniel. Seus anjos não desistirão de libertá-lo — e este cronista de sete leitores também não.

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