DEU NO JORNAL

Francisco Razzo

Lula falou na ONU, em Nova York. Depois de abrir a Assembleia Geral, participou também de uma reunião paralela, batizada de “Em defesa da democracia, combatendo extremismos”. A ocasião, mais simbólica que diplomática, serviu de palanque para um discurso previsível: a democracia apresentada como patrimônio da esquerda, e toda oposição reduzida ao rótulo conveniente de “extrema direita”.

Esse é o truque mais antigo da retórica partidária: revestir-se da palavra “democracia” como se fosse um dom exclusivo. Em uma aparente autocrítica, Lula pergunta onde “os democratas erraram”, mas logo identifica os tais democratas com a própria militância progressista. Conservadores, liberais, moderados? Não existem. São todos absorvidos na caricatura da extrema direita, convertidos em inimigos de um regime que, paradoxalmente, também os inclui.

Democracia não é monopólio ideológico – exceto se você já tem algum tipo de apego emocional a Lula. Democracia é cultura. Cultura de convivência, de aceitação da existência do adversário, da administração de ódios públicos, de reconhecimento do outro como legítimo, mesmo se for uma pessoa desagradável. Democracia não se resume a regras formais de voto e separação de poderes; ela se entranha nos costumes, nas práticas, na disposição pública de administrar ódios e consensos.

No primeiro erro, quando Lula insiste que “sem organização popular a democracia perde”, ele comete um deslize conceitual grave. Mobilização popular é importante, porém não é sinônimo de democracia. Um país pode ter multidões nas ruas e mesmo assim escorregar para o autoritarismo, se não houver freios institucionais e cultura cívica. O que garante a saúde democrática não é a intensidade da militância. É, para ser generoso com os termos, o temperamento público. A capacidade de transformar divergências em conflito administrável, e não em guerra civil permanente. Lula não inventou a lógica do amigo-inimigo, mas é um dos seus principais gerentes.

É curioso observar como a autocrítica presidencial também funciona como expediente de liderança. Lula se pergunta onde a esquerda errou. A partir daí, formula a questão de modo a reforçar a sua própria centralidade. É o clássico gesto da contrição performática: reconhece falhas ao mesmo tempo em que reafirma que só ele e sua facção ideológica podem conduzir a reparação. A esquerda teria sido negligente, a extrema direita cresceu, e cabe ao ex-líder sindical reorganizar a militância.

Esse movimento tem efeitos corrosivos. Ao sequestrar a palavra “democracia” para uma agenda ideológica específica, Lula esvazia a própria noção de espaço comum. A democracia cultural, aquela que se expressa no respeito mútuo entre grupos divergentes, é substituída por uma versão plebiscitária demarcada por uma única concepção de mundo: quem está com a esquerda é “democrata”; quem discorda é “extremista”.

A direita democrática – e ela existe, com suas correntes liberais, conservadoras ou cristãs – fica encurralada entre duas acusações: ou se dissolve na narrativa de extrema direita, ou se adapta ao léxico progressista para não ser expurgada do debate. O discurso de Lula só tem um objetivo: um plano político para destruir tudo o que não seja esquerda.

Há ainda outro aspecto que merece atenção. Lula fala em democracia como o movimento de “organização para o bairro, para o local de estudo, para o trabalho”. O vocabulário revela uma concepção em que o Estado, sob o comando de um partido, se confunde com a sociedade civil. Em vez de promover instituições justas que atendam a todos, o Estado, sob o comando da esquerda, se apresenta como o motor da organização popular. Não se trata do conceito cívico-republicano de participação, em que a sociedade se fortalece de forma autônoma e plural. A fronteira entre Estado, partido e sociedade se torna nebulosa. O risco é a criação de um paraestado militante, em que a cidadania se mede pela adesão à narrativa oficial.

Esse tipo de discurso é eficaz para animar plateias já ideologicamente comprometidas. Por outro lado, é pobre como diagnóstico político. O crescimento da direita no mundo não se explica apenas pela “incompetência” da esquerda. Há causas sociais, econômicas e culturais que exigem exame: insegurança, estagnação, corrupção, mudança de valores. Reduzir tudo à virtude deles ou à falha da esquerda é simplificar para aterrorizar, criar um clima de crise e, por fim, oferecer um salvador: o líder carismático. Ou seja, o próprio Lula.

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