Uma carta recebida de meu pai há mais de meio século; guardei-a. Releio-a vez em quando, principalmente em momentos difíceis da vida.
Eu tive uma bela, livre e solta infância nas praias de Maceió; roubando manga e cocos nos sítios vizinhos ao Salgadinho, jogando futebol, nadando no mar da Avenida da Paz. A juventude livre deu-me amor à liberdade.
Logo após a adolescência resolvi fazer vestibular para Escola Preparatória de Cadetes do Exército de Fortaleza. Ainda menino ingressei num regime de disciplina e hierarquia, internato rígido, aulas constantes, instrução militar. Foi um choque para aquele maloqueiro da Avenida. Mesmo com difícil adaptação, com todos os atropelos eu tinha maior orgulho em ser cadete do Exército. Nas minhas primeiras cartas a meus pais, descrevi a Escola e seus pontos positivos, dizia sempre estar gostando. Na verdade muitas vezes tive vontade de largar, de desistir, mas, me perguntava se não seria falta de fibra, de raça, enfrentar as dificuldades. O que muito contribuía pensar em desistência da Escola eram os trotes por parte de alguns veteranos.
Certa tarde de sábado, eu estava me preparado para sair, um encontro com uma namoradinha. Quando me vestia, banho tomado, perfumado; um veterano, de apelido Lamparina, negro de lábios protuberantes, ordenou-me com boçalidade.
– Onde pensas que vai? Coloque seu calção e venha ajudar arrumar o meu armário.
Perdi o sábado e a namorada arrumando o armário, engraxando sapato desse… Lamparina
Nessa noite chorei. Resolvi pedir desligamento da Escola. Na segunda-feira pela manhã falei com o capitão comandante da minha companhia. Ele desconfiou, achou que tinha sido trote, pediu para eu delatar. Delatar nunca, pensei. Insisti em falar com o Coronel comandante da Escola, queria me desligar da Escola Militar, teria outras opções de vida.
O Coronel pediu para que eu refletisse, ele tinha certeza que havia sido trote, era proibido, o veterano poderia ser expulso Na tarde de segunda-feira, numa coincidência extraordinária, recebi uma carta de meu pai. Li, reli várias vezes, e a guardo até hoje como se fosse meu tesouro pessoal e intransferível. Meu pai nessa época era Coronel do Exército, comandante do 20º BC de Maceió. Transcrevo a carta com orgulho.
“Meu filho
Meu afetuoso abraço. Recebemos a tua carta que nos encheu de alegria ao sabermos da sua satisfação aí na Escola, mas também de saudade do filho querido que tanta falta tem feito. Porém, Carlito velho, a vida é assim mesmo; é luta brava, principalmente na carreira que escolhestes. Temos absoluta certeza, e inabalável fé em Deus que serás muito feliz.
Não fraquejes ante nenhum obstáculo; enfrenta-o sempre de ânimo forte. Acostuma-te desde agora aos rígidos princípios da disciplina; aceita-a conscientemente, pois ela é a mais bela característica do soldado.
Estuda, dedica-te com muito esmero as tuas obrigações escolares; este hábito salutar será constante na tua vida profissional e fator decisivo em qualquer carreira. O valor de um oficial está em função de sua cultura, do seu saber, do seu carinho aos afazeres profissionais.
Procura desde já, meu filho, ser “caxias”. Mas “caxias” sem intransigência. Correto no cumprimento dos deveres, porém humano, delicado, sereno e leal no tratamento com subordinados e companheiros. O oficial que assim procede é respeitado, acatado e querido por todos.
Pensa sempre no bem do Brasil; sirva mesmo de rumo aos teus atos e ações o pensamento constante na grandeza da pátria querida. Porém, jamais te cumplicies aos aventureiros da política malsã, que infelizmente ainda infesta o Brasil. Seja sempre digno, mantenha sempre bem alto o alvo de tuas ambições e afetos; porém também sempre te lembres que são injustificáveis as “quarteladas” e as “ditaduras”
São esses, meu filho, os conselhos, que a experiência de mais de 30 anos de serviço do teu velho pai, que o carinho e o afeto que te dedico, que a vontade imensa de te ver vitorioso na carreira que escolhestes, me inspiraram. São advertências saídas no mais íntimo de meu coração.
Prepara-te, pois, para a vida, meu filho, certo de que nem tudo serão flores. Os espinhos e desilusões surgirão fatalmente. Mas que nada abata teu ânimo forte, o teu caráter, a tua dignidade, a tua coragem, o teu ardor cívico.
Esta é a única riqueza que teu pai pode legar. Guarda com carinho esta primeira carta que te escrevo e que a Divina Providência te faça feliz. Tua mãe e teus irmãos te abraçam. A saudade de teu pai. Mário Lima.”
Segui os ensinamentos de meu pai por toda vida, mesmo depois de deixar o Exército. Tenho orgulho de tudo que fiz por amor à minha terra, com convicção, acreditando na carta que meu pai escrita há tanto tempo. Transcrevo a carta pela vergonha que me causa o que está passando nosso amado Brasil. Vergonha dessa camarilha lutando nos tapetes de Brasília pelos podres poderes. Quero apenas um Brasil justo, próspero, a democracia reverenciada, a Constituição respeitada. Me dá nojo o que vejo acontecer.