JOSÉ RAMOS - ENXUGANDOGELO

“A saudade mata a gente – João de Barro

Fiz meu rancho na beira do rio
Meu amor foi comigo morar
E na rede nas noites de frio
Meu bem me abraçava pra me agasalhar
Mas agora, meu bem, vou me embora
Vou me embora e nem sei se vou voltar
A saudade nas noites de frio
Em meu peito vazio virá se aninhar

A saudade é dor pungente, morena
A saudade mata a gente, morena
A saudade é dor pungente, morena
A saudade mata a gente”

Os dias correm ligeiros. Provavelmente açoitados pelos ventos produzidos pelos moinhos que Don Quixote tanto procurou. Passam rápidos. Tão rápidos que, às vezes, nem percebemos. Mas sabemos que estão passando.

Pois, pelos idos e levados pelos ventos, dias dos anos 50 e 60 passaram tão rápido que, hoje, tendo vivido pela graça de Deus e, quase sendo levado por ventos mais fortes, minhas raízes, tão profundas quanto as raízes dos ipês, resistiram às ventanias. Quase ciclones.

Zé é o meu nome. Zé, filho de um homem e de uma mulher, nascido de parto normal, “aparado” por parteira sem nenhum preparo (minha Avó), que mereceu o privilégio divino de ainda estar vivo.

Zé nunca foi diferente dos meninos daqueles anos. Entretanto, muito diferente dos meninos dos dias atuais.

Foi criado, desde cedo, a aprender que pai e mãe, quando menos a gente espera, voltam ao barro – lugar de onde vieram. Diferente de como os pais/mães atuais criam os filhos. Facilitam tudo, dizendo que é para o (a) filho(a) não passar as provações que eles, pais, passaram. Roubam dos filhos o direito às conquistas. Não aprendem o valor da vitória, e vivem pensando que viver é algo que o smartphone ensina nos aplicativos.

Eis que, aos 12 anos, Zé não era diferente dos daqueles anos. Também lia gibis, ia aos cinemas, e, colecionava figurinhas de artistas e jogadores de futebol.

O pai de Zé, Alfredo, entendia que não tinha o direito de roubar do filho o direito de ganhar seus mil réis, comprar suas revistas e figurinhas com o dinheiro ganho com o suor do rosto. Com o trabalho, mesmo que formal. Só assim daria valor às suas coisas.

Foi quando Zé, alertado pelo dono da bodega da esquina, passou a fabricar sacos de papel com folhas da revista O Cruzeiro – separava apenas a página da charge do O amigo da onça, de Péricles. A princípio Zé fabricava os sacos onde o bodegueiro colocava arroz, feijão, café em grãos, milho.

Eis que um anjo chamou a atenção de Zé com o bater das asas, dizendo:

– “Zé, melhore a qualidade dos sacos. Use um material melhor e vá vende-los na praia, na chegada das jangadas. A recompensa será melhor”.

O anjo nem precisou repetir. Nas férias escolares, Zé acordava cedo, saía procurando construções de casas, edifícios que usassem cimento. Cimento “Portland”. Às vezes, na ânsia de ficar com o saco, Zé até se propunha a ajudar o Servente de Pedreiro. Não queria ajudar. Queria mesmo era os sacos.

O cimento era envolto em três camadas de papel. Papel bom. Resistente. Zé separava tudo e levava para casa a parte que usaria para fabricar os sacos.

Saco de papel de cimento para acondicionar peixes

Feitos os sacos, sempre numa boa quantidade, Zé, às vezes “pegava bochecha” nos ônibus e, na hora que imaginava que as jangadas estavam retornando ao Mucuripe, fazia esforço hercúleo para estar presente. Com o passar dos dias, Zé foi aprendendo mais e mais. Passou a levar, além dos sacos de papel de cimento, molhes de coentro e cebolinha. Passou a levar também tomates.

As jangadas estão voltando da pescaria

Zé fez isso por muito tempo – sempre nas férias escolares. Tinha clientes que entendiam sua necessidade. Faziam tudo para ajudá-lo. Até passaram a procura-lo pela alcunha de “Zé do Saco”, ou, “Menino do saco e do cheiro verde”.

Quando a claridade do dia estava indo embora com a promessa de voltar no dia seguinte, Zé caminhava cerca de 15 Km, da Praia do Mucuripe até a Rua São Paulo, na Praça José de Alencar, no Centro; ou na Praça dos Voluntários. Ali, durante anos funcionou também a venda de peixes frescos.

Nos dias atuais, pessoas continuam comprando peixes na praia

Zé, nos dias atuais, gosta de comer peixes. No tempo da venda de sacos, era um sonho quase impossível. Sonhar em comer biquara, cavala, pargo, xaréu – e dávamos graças, quando Alfredo levava pirarucu salgado ou camurupim para casa. A farofa com baião-de-dois era garantida. A gente acabava de encher a barriga com água de pote.

Eis que, hoje, quase tudo mudou. Fortaleza que, naqueles idos tinha apenas as praias de Iracema, Náutico, Meireles e Mucuripe – onde alguns ganhavam dinheiro alugando calções de banho e o próprio banho com água “da boa” – hoje ostenta e oferece aos turistas uma bela Avenida Beira-Mar, com hotéis e bares de luxo e da moda. Para 2024 já tem a garantia de sediar a COP24. Antes, a própria Praia do Futuro nada mais era que uma praia, no futuro.

Biquara a preferência cearense

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