ESSA CARA NÃO ME É ESTRANHA
Vi meu amigo ao longe
E ele também me reconheceu
Nos aproximamos alegremente
E cada um arrefeceu:
Eu vi que não era ele
Ele viu que não era eu.
OBSTINAÇÃO DOS OUTROS
Deixamos de beber
E em cada esquina
Abriram um novo bar.
Abandonamos o fumo;
Passam homens, crianças
E navios
A fumar.
A rua, como nunca, está cheia de mulheres
Jovens, lindas de corpo, sedutoras de andar.
Ah, mas já deixamos de amar.
AOS QUE NÃO TÊM VEZ
Até mesmo na ciência
O pobre sente ironia
Pois toda alta de preços
Se estuda em Economia.
POESIA DE SAUDADE AUDITIVA
Se eu achasse uma locomotiva
A traria para minha solidão de monge
E enquanto ela ficasse aqui, sozinha,:
Eu apitaria, lá longe.
COMPETÊNCIA GERAL
Que nada é impossível
Não é verdade:
Todo mundo faz nada
Com facilidade..
SÓ SEI QUE NADA SEI
Poesia com Autocrítica
Há os que não sabem antropologia
E os que ignoram trigonometria.
Só de mim ninguém pode falar nada:
Minha ignorância
Não é especializada.
Milton Viola Fernandes (1923 – 2012). Autor e tradutor. Descobriu na adolescência que havia sido registrado erroneamente, graças a uma caligrafia duvidosa, como Millôr. De humor singular, humanista e moderno, com visão cética do mundo, Millôr Fernandes foi considerado uma figura de proa do panorama cultural brasileiro: jornalista, escritor, artista plástico, humorista, pensador. Destacou-se em todas essas atividades. No teatro, empreendeu uma transformação no campo da tradução, tal a quantidade e diversidade de peças que traduziu. Escreveu, com Flávio Rangel – Liberdade, Liberdade – uma das peças pioneiras do teatro da resistência à ditadura militar, encenada em 1965. Em seus trabalhos costumava-se valer de expedientes como a ironia e a sátira para criticar o poder e as forças dominantes, sendo em consequência confrontado constantemente pela censura.