MARCELO BERTOLUCI - DANDO PITACOS

Uma das palavras que definem nosso século é “pós-verdade”. Houve um tempo em que estar conectado com a realidade era indispensável. Quem acreditasse que as árvores dão flores no outono e frutas no inverno passaria fome. Mas o mundo se tornou tão complexo que o cidadão comum não tem a mais vaga idéia de como as coisas são produzidas. Isso permite que muitos optem por viver em uma “realidade alternativa”, já que não é necessário entender o mundo para viver nele. Como parte da criação desta “realidade alternativa”, pessoas e instituições se dedicam a substituir os fatos (a verdade) por teorias (pós-verdade) mais convenientes aos seus interesses.

Como exemplo, temos dois momentos importantes da história, conhecidas como “a crise de 1929” e “a crise de 2008”. Ensina-se nas escolas que são dois casos em que o capitalismo falhou e foi salvo pelos governos, o que prova que políticos são sempre sábios, bondosos e indispensáveis para nos proteger dos perigos da “falta de regulamentações”. O que há de verdade nisso? NADA. Que fatos são apresentados para justificar afirmações tão sérias? NENHUM.

Vamos dar uma olhada nos anos 1920 e tentar entender o que aconteceu. (2008 fica para a próxima coluna)

Começando do começo: até 1914, todas as moedas importantes do mundo eram fixadas ao ouro, e não se alteravam entre si. Por exemplo: a libra era definida como 1/4 de onça de ouro, e o dólar, como 1/20 de onça. Consequentemente, uma libra valia cinco dólares. Nesse sistema, governos não podem gerar inflação imprimindo dinheiro. Mas aí veio a 1ª guerra mundial, e o padrão-ouro foi para o lixo; era preciso imprimir dinheiro para pagar as despesas da guerra.

Os EUA entraram tarde na guerra e seus prejuízos foram bem menores que os países da Europa. Mas o governo seguiu o exemplo europeu e girou com gosto a maquininha de fazer dinheiro. A consequência foi que todo mundo parecia ter ficado rico num passe de mágica. Mas era apenas ilusão, criada pelo crédito fácil e pela expansão monetária, ou seja, uma bolha. Quando a economia “cresce” à base de crédito, acaba caindo em uma armadilha: é preciso cada vez mais crédito para manter a ilusão, mas não se pode aumentar o crédito infinitamente. Uma hora a expansão acaba e sobram as contas para pagar.

Observação: o seu professor de história contou que as bolhas são culpa do capitalismo, da ganância dos empresários malvados, da falta de regulação dos governos. Meu conselho é que você simplesmente o ignore: isso não se baseia na lógica nem na realidade, mas em um pensamento do tipo “eu queria tanto que fosse verdade”.

Voltando aos EUA, entre 1914 e 1919 a oferta monetária mais que dobrou. No fim de 1919, o governo americano percebeu que o ritmo era insustentável e começou a diminuir a fabricação de dinheiro, acabando com o crédito fácil e barato. Em 1920 o desemprego começou a aumentar, empresas começaram a falir, e a bolsa obviamente despencou. Por sorte, o presidente Warren Harding não acreditava que governos podem consertar a economia. Pelo contrário, Harding fez o governo atrapalhar o mínimo possível: reduziu os impostos e os gastos do governo (6.3 bilhões em 1920, 5 bilhões em 1921, 3.3 bilhões em 1922; neste período a dívida federal diminuiu 33%).

A crise de 1920 foi dura (12% de desemprego, queda de 17% no PIB), mas foi o remédio necessário. Afinal, para curar um viciado é preciso parar de lhe dar drogas, não dar a ele cada vez mais drogas. Em 1922, o desemprego caiu para 6,7%, e em 1923 era de apenas 2,3%. A crise acabou de forma tão completa que foi esquecida: praticamente ninguém hoje em dia ouviu falar no “crash de 1920”. Outro motivo para 1920 ser esquecido é que sua solução não agrada aos economistas pró-governo que são a maioria absoluta hoje em dia.

Em 1922 ocorreu a Conferência de Gênova, onde os países europeus e os EUA adotaram, sob a liderança da Inglaterra, um novo arranjo monetário, conhecido como padrão ouro-câmbio, que dava a impressão de manter a estabilidade da moeda mas na verdade permitia aos governos imprimir dinheiro à vontade. Pode-se dizer que de 1922 até hoje os países ocidentais (com exceção, talvez, da Suíça) nunca mais tiveram dinheiro de verdade, mas apenas papéis pintados, que as pessoas são obrigadas pelo governo a acreditar que valem alguma coisa.

Após a Conferência de Gênova, o governo dos EUA recomeçou a expansão que havia causado uma enorme crise poucos anos antes. Este período entrou para a história como “os loucos anos 20”. O FED fabricava dinheiro e entregava para os bancos, estes emprestavam o dinheiro a juros baixos, e as pessoas, além de consumir como loucas, investiam na bolsa. Com o fluxo contínuo de dinheiro, a bolsa não parava de subir. Gente da classe média, sem nenhum conhecimento do mercado financeiro, fazia empréstimos nos bancos para comprar ações de empresas que nem conheciam. Era outra bolha nascendo.

De 1928 para 1929, a coisa saiu de controle. Em 1929, mais de um milhão e meio de pessoas negociavam na bolsa americana, dois terços delas com dinheiro emprestado. Fundos de investimento surgiam literalmente todos os dias e cresciam absurdamente (a United Founders Corporation foi criada por um investidor falido com um capital de 500 dólares, e em menos de um ano atingiu um valor de quase 700 milhões).

As pessoas que conheciam o mercado financeiro sabiam que aquilo não poderia durar. Em 1928, o governo havia aumentado três vezes a taxa de juros, um sinal óbvio de que a farra do crédito iria acabar. Mas a grande maioria acreditava que a prosperidade seria para sempre.

Muita gente nos EUA tira férias no mês de agosto, auge do verão. Em setembro, na volta das férias, os investidores mais espertos começaram a tirar seu dinheiro da bolsa. Muita gente que havia investido mal quebrou. Muitos perceberam que só faltava uma faísca para explodir tudo. A faísca veio do governo: em 29 de outubro, noticiou-se que o presidente Hoover iria sancionar a lei Smoot-Hawley, que aumentaria enormemente as tarifas de importação de quase todos os produtos. Um executivo do banco J.P.Morgan declarou “eu quase me ajoelhei na frente do presidente implorando que ele vetasse essa lei asinina”. O presidente da General Motors na Europa telegrafou a Washington alertando que esse aumento de tarifas levaria “à mais severa depressão que o mundo já vira”.

No dia em que a notícia se espalhou, a bolsa caiu 12%. Em quinze dias, a queda chegou a 50%. Foi o começo de uma recessão que só acabou com o fim da 2ª guerra mundial. Se a crise de 1920 durou um ano, porque a de 1929 durou quinze? Na verdade, a crise de 1929 poderia ter sido bem menor que a de 1920; os maiores afetados foram os que especulavam na bolsa, mas a maioria das empresas continuava sólida. Seria preciso apenas “reorganizar o mercado” como havia acontecido em 1921.

Infelizmente para a humanidade, em 1928 Herbert Hoover havia sido eleito presidente. Hoover era um fanático por governos grandes e planejamentos centralizados. Ele pensava que desemprego e falências são a causa da crise, e não a consequência. É como se um médico dissesse que o paciente não está fraco por estar doente, mas está doente por estar fraco, e ao invés de repouso recomendasse sessões diárias de musculação.

Hoover usou toda a força do governo para impôr às empresas e ao mercado seu plano: de um lado, aumentar os gastos do governo para “estimular a economia”. De outro, pressionar os empresários a não demitir nem reduzir salários. Novas leis deram enormes poderes aos sindicatos para negociar salários e benefícios com as empresas.

Enquanto isso, as novas tarifas de importação desencadearam uma onda de protecionismo no mundo, causando um colapso no mercado mundial. As exportações dos EUA caíram de 5.5 bilhões em 1929 para 1.7 bilhões em 1932. A agricultura americana, que exportava metade de sua produção de algodão, tabaco e suínos, entre outros itens, entrou em colapso. Sem ter para quem vender, milhares de agricultores ficaram na miséria. Sempre intervencionista, o governo decretou leis de moratória, perdão de dívidas ou proibição de execuções. Aí quem começou a quebrar foram os bancos. Sem poder cobrar suas dívidas, mais de dois mil bancos fecharam entre agosto de 1931 e fevereiro de 1932. A economia toda não parava de encolher. As empresas vendiam menos, mas eram impedidas pelo governo de reduzir suas despesas com funcionários, até que quebrassem e deixassem todos desempregados de uma vez só.

Em 1930 o desemprego foi de 7,8%, bem menor que na crise de 1920. Mas com o governo tentando controlar toda a economia, em 1932 o desemprego chegou a absurdos 24% – uma em cada quatro pessoas estava desempregada. Enquanto isso, o governo aumentou seus gastos em 87% e aumentou impostos por todos os lados; o imposto de renda médio simplesmente dobrou. A carga tributária total (federal, estadual e municipal) passou em poucos anos de 16% para 29%.

Como se fosse pouco, o próximo presidente, o famoso Franklin Roosevelt, foi mais além. Sua primeira medida após assumir foi proibir a posse de ouro pelos cidadãos: todo ouro deveria ser entregue ao governo. O dólar foi desvalorizado em 40%. Um novo órgão federal chamado NRA (Administração da Recuperação Federal) recebeu poderes para tabelar preços e salários, praticamente estatizando toda a economia. Em meio ao maior desemprego da história, o governo se preocupava em impedir que as empresas reduzissem os preços (isso mesmo!!) porque acreditava que preços menores “desaceleram” a economia.

Alegando que havia “excesso de produção” no setor agrícola, e que isso causava redução nos preços, o governo criou um novo imposto que foi usado para pagar aos agricultores para que estes não plantassem nada, o que na idéia do governo faria subir os preços e melhoraria a economia. Vou repetir: na maior recessão da história, com milhões passando fome, o governo se esforçava em diminuir a produção de alimentos e aumentar os preços.

Em paralelo a tudo isso, o governo continuava gastando o que não tinha em obras públicas, pagas com dinheiro fabricado e impostos cada vez maiores. Em 1934 o imposto sobre a propriedade, que dez anos antes sequer existia, era o maior do mundo, mas em 1935 foi elevado de novo, com a alegada intenção de “distribuição de riqueza”.

No final de 1935 a Suprema Corte decidiu, por unanimidade, que os atos do NRA eram inconstitucionais. No ano seguinte, os subsídios agrícolas também foram derrubados. Livres dos controles estatais, da burocracia e das constantes imposições dos tecnocratas do governo, as empresas puderam respirar. O desemprego em 1936 caiu para 14,5%.

Mas 1936 era ano de eleição, e o governo reagiu à decisão da Suprema Corte com o Wagner Act, que criou o Conselho Nacional das Relações Trabalhistas (algo como nossa Justiça do Trabalho, mas muito pior!). Com esta medida, qualquer decisão relativa a questões trabalhistas foi afastada da justiça comum e centralizada no CNRT, que atuava como promotor e juiz ao mesmo tempo. Todas as empresas se tornaram reféns do conluio entre sindicatos, conselho e governo, e as empresas que não seguissem à risca as ordens recebidas eram castigadas com greves e punições por “práticas trabalhistas desleais”. Entre paralisações, depredações, confiscos e todo tipo de violência, a economia voltou a declinar e o desemprego voltou aos 20%. Roosevelt foi re-eleito.

O desemprego só iria diminuir com o começo da 2ª guerra, em 1939, com o governo contratando milhões de pessoas para a produção de armas. Em 1942, o envio de 2 milhões de soldados para a Europa e outros 2 milhões para o Pacífico acabou de vez com o excesso de mão-de-obra. Com o fim da guerra, a indústria dos EUA, intacta, foi “presenteada” com o mercado da Europa, cuja indústria havia sido destruída. Foi preciso a maior guerra da história da humanidade para resolver a crise causada por dois presidentes intervencionistas. O tamanho do estado nunca mais diminuiu, e os impostos também não.

Para nós, da América Latina, não deveria causar espanto saber que quando o governo se mete a “regular” a economia, a consequência é escassez, recessão e miséria. Basta lembrar dos congelamentos do Sarney e do Collor, do Chile de Allende ou da Argentina dos Kirchner (a Argentina está estreando um “remake” este ano). Também não deveria ser novidade que quando o governo fabrica dinheiro e expande o crédito, surge uma bolha que cedo ou tarde estoura, como fizeram Sarney e Dilma. Mas mesmo assim, muita gente acredita, de tanto ouvir as mesmas mentiras, que Hoover e Roosevelt “salvaram” o mundo das desgraças que teriam sido causadas pelos “defeitos do capitalismo”.

É importante lembrar da frase famosa: Aqueles que não conhecem a história estão condenados a repeti-la.

8 pensou em “REESCREVENDO O PASSADO

  1. Segundo a esquerda caviar brasileira o o presidente Warren Harding estava errado! Devia ter aumentado as ajudas sociais, estatizado a maior parte das empresas e dado emprego nas estatais à toda a mesa diretora do seu partido! Essa ideia me faz lembrar de uns governos brasileiros recentes.

  2. Dom Marcelo Bertoluci:

    Meus melhores parabéns!!!

    Mais um excelente artigo!

    Me esclareceu muito!

    Devia ser distribuído às “otoridades”, para que aprendessem o – e com o – que aconteceu e não repetissem – nunca, jamais – os mesmos erros.

    Aliás, esta é a única razão do ensino/aprendizagem de HISTÓRIA (com letras maiúsculas, mesmo) e não de “estória” – um lixo não-recicláel, manipulado e maquiado “ad nauseam” pela canhota.

    Infelizmente, é isso que tem sido feito, nas últimas décadas, pelos “profs” zumbis – membros voluntários (e caninamente obedientes!!!) da manada de descerebrados discípulos de Gramsci e de uma fraude, chamada Freire.

  3. Parabéns grande Marcelo Bertoluci

    Mais um excelente texto, claro como o Sol, que engrandece ainda mais este grande site do grande editor Luiz Berto.

    Ficamos aguardando ansiosamente agora a análise sobre 2008.

  4. Professor Marcelo,
    QUE AULA ESTUPENDA!!!! Tiro o chapéu para o senhor.

    Por que será que a humanidade não aprende e fica repetindo os mesmos erros???°

  5. Mestre Berto:
    Tenho um amigo, publicitário de sucesso com larga vivência em campanhas eleitorais, que sempre me falava que todo governo deveria ter um Ministro da Merda.
    Cuméquéisso? Ministro da Merda?
    Sim. Todo governo deveria ter um sujeito culto, inteligente, centrado, honesto, sem ideologias extremadas e com um bom senso descomunal para dizer ao Presidente e a seus colegas Ministros uma simples frase quando viessem com alguma idéia de jerico, nas quais nossas “ôtoridades” são tão pródigas:
    “NÃO FAÇA ISSO QUE VAI DAR MERDA!!!!”
    Acho que dois colaboradores do JBF cumpririam esse papel com maestria: J. R. Guzzo e Marcelo Bertoluci.

    • Concordo com bem bolado ministério proposto
      pelo comentarista, apenas acrescentaria mais um
      ministro altamente qualificado, o excelente colunista
      professor Adonis de Oliveira.

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