CARLITO LIMA - HISTÓRIAS DO VELHO CAPITA

Tinha de estudar muito, só passava quem soubesse. Não havia cola (o professor entregava a prova, saía da sala, só retornava para recolher na hora determinada, ninguém colava, era parte do nosso Código de Honra, não escrito). O dia do cadete estudante iniciava às seis horas da manhã com o toque da alvorada, imediatamente todos faziam a higiene pessoal, arrumavam as camas, limpavam banheiros e privadas. Vestiam a farda, ficavam prontos para mais um dia de estudo e instruções que só terminava com o toque de silêncio pelo corneteiro às 22 horas.

Havia momentos de lazer, principalmente nos fins de semana. Sem pai, nem mãe, nem irmãos, os colegas tornaram-se nossa nova família. Uma amizade fortalecida entre os irmãos de armas que conviveram juntos por seis anos, incluindo a Academia Militar das Agulhas Negras, conseguimos o objetivo maior: ser oficial do Exército Brasileiro. Essa irmandade entre cadetes da mesma turma é indissolúvel e respeitosa. Alguns colegas deixaram a carreira pelo meio, fui um deles, deixei a carreira militar como capitão. Porém, a maioria continuou com muito esforço e estudo cursando a Escola de Aperfeiçoamento de Oficiais, Estado Maior, Escola Superior de Guerra, entre inúmeros cursos. Difícil é chegar a general, dos 77 colegas de 1956 apenas dois galgaram ao posto de general.

Quando termina o curso da Academia Militar das Agulhas Negras os novos oficiais são distribuídos para servir nos mais diversos e longínquo locais do Brasil: Cucuí na Amazônia , Cruz Alta, Cuiabá, e outras cidades melhores e piores, dependendo da classificação. Eu fui servir no 19º BC em Salvador.

O tempo passou, os colegas dispersaram, até que em 1994 o General Rômulo Bini, comandante da guarnição de Natal resolveu organizar um encontro de nossa turma. A partir daquele ano, essas reuniões tornaram-se constantes trazendo alegria e muitas recordações, brincadeiras, passamos a ser cadetes novamente. Este ano haveria uma reunião em Maceió dos OITENTÕES, a maioria daqueles meninos de 1956 completa 80 anos em 2020, mas a pandemia não deixou, ficou adiada para 2021.

Foi numa dessas reuniões que Rocha, aluno 108, laureado primeiro de turma, Porta-Bandeira da Escola Preparatória, contou-me a história da bomba. Confirmada pelo coronel Wanderley, o maior goleiro que passou pela Academia Militar.

Wanderley, paulista de Lorena, foi um dos colegas da Escola de Fortaleza. No tempo de Ceará ele apaixonou-se pela comida nordestina: carne de sol, peixe frito, frutas regionais, mangaba, pinha, e principalmente a rapadura.

No final dos anos 60, eram capitães. Rocha de Engenharia servia na Fabrica de Material Bélico em Piquete e Wanderley de Infantaria, servia no 5º RI de Lorena, cidades próximas. O fato se deu na época de repressão e terrorismo em alta escala, principalmente em São Paulo, onde aconteceram vários ataques terroristas a quartéis do Exército e o caso da fuga do Capitão Lamarca, nosso contemporâneo na AMAN.

Rocha depois de uma viagem de férias ao Jati no Ceará, onde mora, trouxe, como sempre, deliciosas rapaduras para o amigo Wanderley.

Era um dia de quarta-feira à tarde, não havia expediente no 5º RI. Rocha, apressado, parou o carro em frente ao quartel, chamou um soldado e entregou-lhe o pacote de rapaduras embrulhadas em palha de milho, envolta em papel de jornal, pediu para entregar ao Capitão Wanderley. Deu partida no carro rumo a Piquete.

Nesse momento o tenente, oficial de dia observava o movimento pela janela, percebeu quando o soldado recebeu o pacote. O tenente saiu da sala correndo, ordenou ao soldado colocar o embrulho no chão do pátio, mandou tocar alarme geral e gritava: Cuidado é uma bomba !

Soldados que estavam dentro do quartel, tomaram posições estratégicas, atrás de colunas e paredes, vigiando, ao longe, a ”bomba”, imóvel, soberba no meio do pátio.

O quarteirão foi interditado, o transito desviado, ninguém podia se aproximar do quartel. Logo a mídia tomou conhecimento, encheu os prédios vizinhos de câmara de televisão de onde filmavam a bomba no meio do pátio, esperando especialista de São Paulo para desativá-la.

Naquela tarde, o Capitão Wanderley vinha de uma pescaria e notou um movimento estranho, se dirigiu ao quartel. Os soldados contaram o que estava ocorrendo ao capitão. Wanderley entrou no quartel, ao olhar o pacote da bomba, reconheceu os abençoados pacotes que o Capitão Rocha lhe trazia. Contou sua versão sobre a rapadura ao tenente, que nessa altura não admitia outra hipótese, era uma bomba.

Os soldados abrigados por trás das colunas ficaram apavorados com a aproximação do capitão em direção ao pacote. Wanderley nem ligou os gritos de atenção, só pensava na deliciosa rapadura. A expectativa e o silêncio tomaram conta dentro e fora do quartel nos edifícios. Wanderley chegou junto, acocorou-se segurando o pacote, foi abrindo pelos lados, tirou as palhas de bananeiras até aparecer algumas barras douradas de rapadura, o ouro nordestino. Com os dedos quebrou um pedaço, levou-o a boca, saiu mastigando, andando devagar, com o pacote no sovaco, deixando a plateia pasmada e a imprensa frustrada.

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