MARCELO BERTOLUCI - DANDO PITACOS

Você conhece o filme “E o vento levou”? Se não conhece, a partir de agora ficou mais difícil conhecer. A HBO está retirando o filme de sua plataforma de streaming (equivalente ao Netflix). Por quê? Ora, porque o filme é racista.

E quem decide que um filme de oitenta anos atrás, e que deu o primeiro Oscar a uma atriz negra na história, é racista? As redes sociais, obviamente. No mundo de hoje, tuítes têm o mesmo peso e repercussão que decisões da suprema corte quando se trata de condenar alguém.

É inevitável, quando se fala nesse assunto, lembrar do livro “1984”, de George Orwell, de onde aliás vêm o título deste pitaco. A expressão completa é “Quem controla o passado, controla o futuro. Quem controla o presente, controla o passado”. A primeira frase explica que quem manipula a história pode moldar o comportamento da população; a segunda, que o privilégio de manipular a história pertence a quem está no poder, e isso é que torna o conceito tão importante: se alguém se torna tão poderoso a ponto de reescrever a história, cria as condições para se perpetuar no poder.

Naturalmente, o que está em jogo aqui não têm nada a ver com o filme da Scarlett O´Hara. Como comentou alguém, nem mesmo os mais descerebrados podem pensar que alguém vai assistir “E o vento levou” e dizer “nossa, esse filme me mostrou que ser racista é bacana”. Por trás de coisas como essa estão interesses muito poderosos (embora não tão organizados como sugerem algumas teorias da conspiração).

O que está em jogo, então? Duas coisas:

A primeira é reforçar o espírito de manada, ou seja, levar as pessoas a não se ver como indivíduos, mas como membros de um grupo, sem idéias que não sejam as deste grupo. As multidões repetem as palavras de ordem que as redes sociais mandam, e se sentem poderosas ao acharem que estão sendo obedecidas. Ou seja, o sujeito vai na passeata, carrega cartaz com a frase copiada do facebook, repete as frases que lê no twitter e vai para casa se achando o máximo. É o que eu chamo de “poder do porteiro”: o sujeito não manda em nada, apenas obedece ordens, mas ao barrar a entrada de alguém se sente como se fosse o dono do prédio.

A segunda, mais importante: solidificar a idéia de que censurar filmes, livros e pessoas é algo normal, e transformar o ato de reescrever a história em algo corriqueiro. Os verdadeiros alvos não são filmes como esse, mas tudo que mostre e documente a verdadeira história, para que possa ser substituída por algo mais conveniente. A bem da verdade, este filme, assim como os livros de Mark Twain nos EUA ou de Monteiro Lobato aqui no Brasil, não está sendo criticado por ser racista, mas por ser inconveniente para a “nova realidade” que se pretende criar. São apenas distrações, cortinas de fumaça para disfarçar o trabalho principal, que é substituir os fatos históricos por versões inventadas, condenando ao esquecimento ou banindo as opiniões indesejadas e ao mesmo tempo promovendo e enaltecendo as opiniões desejadas. Quando bem sucedida, esta tática cria verdades “do nada”, através de lugares-comuns que todos repetem e acreditam, baseados no argumento “todo mundo sabe disso”.

A tática do “dividir para conquistar” é tão antiga quanto a humanidade. Foi citada (e usada) por Napoleão, Júlio César e Filipe da Macedônia. Marx pregava a divisão de classes. Hitler, a divisão de raças. Mussolini, e vários outros políticos, a divisão de nacionalidades. No mundo moderno, a luta pelo poder instiga a luta entre grupos que se contrapõem alegando diferenças de cor, raça, opção sexual ou classe social, mas que no fundo diferem entre si apenas nos líderes que seguem.

Deixando um pouco de lado a realidade dos outros países e pensando na nossa: quando um jovem brasileiro semi-alfabetizado quer saber algo sobre a história do Brasil, que fontes ele buscará? Um livro de história que ele mal consegue compreender ou um filme do Wagner Moura? Irá constatar que a história é algo complexo, que pode ser visto sob muitos pontos de vista, ou vai preferir acreditar em uma versão arrumadinha, onde os “bons” e os “maus” estão pré-definidos e claramente rotulados? A resposta é óbvia e mostra a importância de se tentar combater este processo, que por aqui já está bem adiantado: na escola brasileira de hoje, o que se ensina como “história” é na verdade uma coleção de mitos, criados e cultivados para colocar em prática uma velha máxima: quem não conhece o passado não pode entender o presente. E quem não entende o presente e o mundo em que vive, não é dono de seu destino.

8 pensou em “QUEM CONTROLA O PASSADO CONTROLA O FUTURO

  1. Escreve o brilhante autor: Quando um jovem brasileiro semi-alfabetizado quer saber algo sobre a história do Brasil, que fontes ele buscará? Um livro de história que ele mal consegue compreender ou um filme do Wagner Moura?
    Infelizmente para facilitar (a juventude em sua maioria adora tudo já mastigado) as pesquisas andam se resumindo a rápidas googadas na internet, que fazem “ser verdade” fontes pouquíssimo confiáveis.

  2. Meu caro Bertoluci.

    Excelente análise e que me deixa muito preocupado. A nau dos insensatos esqueceu-se, ou nunca leu um aforismo famoso do filósofo norte-americano George Santayanna: “Quem esquece o passado,está pronto para repeti-lo”.
    E eu já vi isso antes… apesar dos meus parcos 48 anos de idade. Vi gente com esse mesmo fogo de ódio nos olhos, queimando livros, destruindo pinturas, derrubando estátuas, abandonando faculdades em que alguns professores davam aulas, censurando filmes, queimando películas, marchando dia e noite e, nessas marchas destruíam lojas, comércio, propriedades particulares e prédios públicos. Vi gente do mesmo naipe condenando livros, gravuras, quadros, esculturas e estátuas em cidades.
    aliás, todo mundo conhece essa história e sabe muito bem o resultado disso: Falo da Alemanha entre 1930 e 1945. Parece que a lição de Santayanna não foi aprendida e caminhamos rapidamente para repetir os mesmos erros do passado.

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