O pé de fulô que Das Dores prantou
Faz tempo que usamos a fala popular de lugares, repleta de regionalismo. Ainda que passemos a morar em meio aos conglomerados urbanos, carregamos “a forma de falar” daqueles lugares onde nascemos e vivemos por décadas. Muitos chamam isso de cultura regional. Pode ser. Ninguém duvida.
Mas, isso não fica restrito apenas ao modo de falar. Estende-se, também, aos diferentes e ricos modos de vida. É comum o apego com a poesia do verde e do ter o que fazer todos os dias, ao acordar e levantar. Uma tarefa que ocupa a alma, lubrifica e norteia o ego.
– Diacho, eu prantei um pé de fulô meis passado, e inda num nasceu nadica de nada?
Maria das Dores viera do interior do Ceará, tangida pelas agruras da seca. Ali deixou algumas galinhas que sobraram e resistiram diante da morte de outras tantas, por conta da falta de alimentos. Dona Das Dores não suportava conviver com aquele sofrimento enfrentado pelas aves, e achava estranho ter que abater todas para o consumo. Até porque eram muitas. Também não dava para levar nenhuma daquelas aves para a nova moradia, uma casa num bairro diferente e cheio de pessoas da classe média alta. Ali, ninguém aceitaria dividir o sono do início das manhãs com o cantar de despertar de um galo. Teria que se adaptar a novos hábitos. Mas, outros, nem tanto.
Eis que, na noite daquele mesmo dia o tempo mudou. Nuvens negras apareceram no céu azul, pintando o firmamento de um cinza previsível que, no sertão, o relógio da vida garantia uns bons e generosos dias de chuva. E choveu bastante durante a noite. No dia seguinte, mais chuva, que continuou acontecendo no terceiro dia.
Felizmente, no quarto dia o sol voltou a brilhar, e aquela luz convidou Das Dores à abrir a janela do quarto onde passara a dormir e traquinar sexo com Assis, o marido.
– Deus dos céus, que maravia! O meu pé de fulô nasceu!
Naquela manhã o café foi diferente. A mesa farta com coisas sempre presentes no café da manhã da roça (tapioca, pamonha, batata doce cozida, ovos fritos na manteiga, cuscuz, coalhada e um café que, de tão cheiroso incomodava a vizinhança) era uma forma de dar graças à Deus, e agradecer à Natureza pelo nascimento do pé de fulô.
– Quem pranta, coie!
Das Dores não cabia em si de tanta felicidade. Todos os dias, por três vezes molhava o vaso onde plantara o pé de fulô que trouxera de onde morava. Presente de Deus pelas mãos de Raimundinha.
E todos os dias ela mesma observava que o pé de fulô crescia. Se espraiava tanto quanto as boas coisas.
A danisca da fulô nasceu, cresceu e se espaiou
– Aubrigado Deus, foi aquele pezim de fulô que prantei que tá ficano mais que bonito!
Era, realmente, uma poesia que a Natureza escrevia a partir da mão de Das Dores. Tudo tem uma semente. Até a bondade ou a maldade.
Mas como quase todos sabem, não existe bem que dure para sempre, muito menos mal que nunca acabe. Eis que, Dona Das Dores e Assis foram avisados que invasores do alheio estavam se abancando da roça deles.
O casal nem esperou pelo tempo bom. Arrumou aquela velha mala de madeira e pegou o caminho de volta para a antiga vida, agora renovada pela certeza das coisas boas. Um simples pé de fulô serviu para ensinar Das Dores.
A casa da roça tinha um aspecto de abandono. O trabalho árduo seria cansativo, mas valeria à pena para colocar tudo em ordem. E a primeira providência de Das Dores foi aproveitar um pote velho em desuso e um alguidá. O pote serviu de apoio e o alguidá serviu como vaso para plantar outro pé de fulô. Na verdade, rosas vermelhas, que para Das Dores nunca deixaria de ser mais um pé de fulô.
Ai eu plantei outra fulô dendicasa in riba do pote
Retomando a roça e expulsando aquele aspecto de abandono, Assis e Das Dores, de tão cansados com a labuta da limpeza da moradia, sequer banharam e foram para o catre como se vivessem uma nova lua de mel.
Nas primeiras chuvas, agora com total assistência e trabalho da mão de Das Dores, a frente da casa tomou novo desenho, recebendo um aspecto europeu da Holanda. Flores por todos os cantos da propriedade, a ponto de chamar a atenção de quem por ali passava.
Nim todo lugá nasciam fulôres
Das Dores só tinha motivos para regozijo e se deliciava com tudo que a retina dos olhos alcançava. Até mesmo distante da primavera, o roçado de Das Dores deixava de ser uma simples roça para se transformar um jardim florido – e a qualquer época do ano.
Tudo a partir de uns simples “pés de fulô”!
– Quem pranta tem, e coie”!
Zé Ramos, dendicasa… é ótimo. Um show, como sempre.
Assuero, é melhor ainda ter o seu generoso elogio. Nesse caos de C-19, fique dendicasa, visse!
Um filme bom.
Manoel, a gente só aprende vivendo. Um bom roteiro, para dar certo, precisa de bons atores/atrizes, né não?
Um filme bom, uma vida mió, mutcho mió cuns pé de fulô…
Quem sabe faz, quem nao sabe, bate palmas….👏👏👏
Arthur: prantar uns pé de fulô, qualquer um sabe e pode. Né não? Aubrigado, parceiro.
Lendo esse deslumbrante texto bastante nordestinizado e fulorado, lembrei-me do grande músico alagoano além de poeta, cantor e compositor, quando há 50 anos nos presenteou com esse verso em seu disco intitulafo LUZ: “Que fim levou o amor. Plantei um pé de fulô deu capim”…
QUERO DIZER: HÁ 40 ANOS…
A propósito, quero parabenizar Luiz Berto por ter lincado o Blog do nosso querido Oliveira, aqui, no JBF. Para quem gosta de agricultura, verdura, fruta e legumes ou o agronegócio em geral, o bom blog é um prato farto e bastante saboroso…
Altamir: você o Berto serão meus futuros sócios. Obrigado! Kkkkkk
Fique calmo. Afinal, uma década não é tanta coisa assim. É só uma década mesmo.
Altamir: obrigado irmão querido. Continuo sendo seu fã, visse!
O POETA CHAMA-SE, DJAVAN!!!
Altamir: Djavan anda escreve letras movido pelo coração. Conhece. É de outra geração.
Bom dia ZéRamos! Começar o dia “dendicasa lendo esta belezura de texto, num tem coisa mió”, obrigado amigo e tenha um ótimo domingo e uma boa semana.
Marcos: Fico agradecido pela sua generosidade, Marcos. Mas, ficar “dendicasa” só pra nós aposentados. Os que ainda não são, tem que ir ao trabalho. Produzir alguma coisa útil para substituir pelo ódio.
Resolveu Sancho colocar Patativa neste furdunço:
Ispinho e fulô
É nascê, vivê e morre
Nossa herança natura
Todos tem que obedecê
Sem tê a quem se quexá
Foi o autô da Natureza
Com o seu pudê e grandeza
Quem traçou nosso caminho
Cada quá na sua estrada
Tem nesta vida penada
Pôca fulô e muito ispinho.
Até a propa criança
Tão nova e tão atraente
Conduzindo a mesma herança
Sai do seu berço querida.
Se passa aquele anjo lindo
Hora e mais hora se rindo
E algumas horas chorando,
É que aquela criatura
Já tem na inocença pura
Ispinho lhe cutucando.
Fora da infancia
No seu uso de razão
Vê muntas fulô caída
Machucada pelo chão,
Pois vê neste mundo ingrato
Injustiça, assassinato
E uns aos outros presseguindo
E assim nós vamo penando
Vendo os ispinho omentando
E as fulô diminuindo.
[…]
Patativa do Assaré. Ispinho e fulô. São Paulo: Hedra, 2005. p. 25-26.
Complemento:
Os falantes de tupi (e seus descendentes)
tem dificuldade para falar “fl”
e “or”.
Amor é pronunciado amô, senhor vira sinhô.
Na cultura do interior do nordeste a influência do tupi é grande. E flor é fulô
Sancho: é assim mesmo! Você sabe. Ainda bem não foi discípulo do método Paulo Freire.