MAGNOVALDO BEZERRA - EXCRESCÊNCIAS

Cuiabá, capital de Mato Grosso, em fotos antiga (Rua 13 de Junho) e moderna

Entre o segundo semestre de 1954 e o final de 1959 meu pai trabalhou em uma empreiteira que foi responsável pela construção do trecho da estrada que vai de São Vicente a Cuiabá (hoje parte da BR-364/163).

Um dos seus grandes amigos era o “seu” Generoso, um mato-grossense bagual característico daquele grande estado. Casado com Dona Linda, formavam um casal harmonioso que já havia posto oito filhos no mundo, todos gente honestíssima, trabalhadora e sempre disposta a ajudar os outros.

“Seu” Generoso criava gado na região de São Vicente, cerca de 90 Km de Cuiabá.

Para se ter uma ideia de como os negócios eram feitos naquele longínquo sertão e naquela época, costumeiramente “seu” Generoso vendia um lote de seu gado para o sr. José M., seu tradicional comprador em Coxipó da Ponte, ao lado de Cuiabá. Uma tropa de vaqueiros levava o gado e o pagamento do serviço era o chamado “quarto”, ou seja, 25% dos animais eram o pagamento da tropa. Normalmente um animal era abatido para comida dos vaqueiros (a viagem demorava vários dias), um ou outro morria e alguns bezerros nasciam. Tudo era contado corretamente. Quando o gado era entregue as contas eram acertadas e a palavra dos vaqueiros nunca era posta em dúvida, era um ponto de honra e o fio do bigode era a garantia.

– Saímos com tantas cabeças de gado, morreram tantas, nasceram tantas, e, portanto, estas que aqui estão são a sua parte.

Na maior parte das vezes o próprio comprador pagava em dinheiro o “quarto” que era devido aos vaqueiros e isso seria descontado do pagamento devido ao “seu” Generoso, mas alguns preferiam ficar com os animais.

A entrega do dinheiro do “seu” Generoso era outra questão. Claro, nada de PIX, DOC, TED ou outras facilidades naquela época.

Meu pai ia a Cuiabá quinzenalmente por razões da empresa em que trabalhava e, quando apropriado, passava na casa do sr. José M. com o recado do “seu” Generoso:

– O velho Generoso pediu para o senhor me entregar o dinheiro dele.

E assim era feito. O dinheiro era entregue ao meu pai em um grande envelope e em hipótese alguma era conferido no ato – isso era considerado uma ofensa. Em São Vicente meu pai entregava o envelope ao “seu” Generoso, recebia um pequeno agrado por isso e a missão estava cumprida. Ninguém conferia nada. Nenhum papel era envolvido na transação. A palavra era a honra de cada um, sagrada e inquestionável. Assim era a vida naqueles tempos, naqueles rincões.

Um dia, como vai acontecer a todos nós, D. Linda faleceu. O velho Generoso não suportou a solidão da falta da companheira de mais de quarenta anos. Vendeu suas terras e seu gado e, combinando com os filhos que moravam em Cuiabá, mudou-se para lá.

Os filhos compraram um bom lote de terreno nos arredores da cidade, construíram suas casas cercando o quarteirão inteiro e com isso tinham um grande quintal comum. Havia, inclusive, uma mina d’água no terreno.

“Seu” Generoso ficou com uma das casas. Simples que era, só tinha um armário, uma rede para se deitar e uma geladeira para gelar sua cervejinha. As noras cuidavam da sua comida e da roupa. Uma simplicidade que dava gosto.

Claro, os filhos pressionaram e convenceram o velho a mobiliar a casa, proporcionando-lhe um pouco mais de conforto. Que tal um sofá, uma cama com colchão de molas Epeda, mesa, cadeiras e, por que não, um rádio Philips e uma televisão Semp? E lá se foram, o velho Generoso e dois dos filhos, comprar tudo o que faltava na melhor loja da cidade.

Quando o vendedor viu o tamanho da venda que iria fazer seus olhos brilharam e sua alma se rejubilou. “É hoje que lavo a égua”, comemorou intimamente.

Venda acertada. Por sugestão do vendedor, tudo seria pago em 10 prestações, claro que com um pequeno juro, o que lhe renderia mais alguns trocados. Os móveis seriam entregues no dia seguinte sem nenhum custo adicional.

O velho Generoso já ia saindo todo satisfeito quando o vendedor o interpelou:

– O senhor precisa assinar esta nota promissória e alguns papéis do contrato!

– O que? Você é besta? Eu assinar um papel dizendo que vou pagar? Nunca fiz isso na vida, meu jovem. Minha palavra basta! Eu não preciso disso. Você está me injuriando!

Breve bate-boca. Um filho interveio, convencendo o velho pai que isso era normal na cidade. Depois de muito latim e saliva o velho foi persuadido a assinar os papéis.

Parecia que tudo estava certo até que o vendedor voltou logo após conversar com o gerente financeiro:

– “Seu” Generoso, como o senhor não tem emprego com carteira assinada, é novo na praça de Cuiabá e não tem referências de crédito, precisamos que o senhor providencie um fiador.

Deu merda, e bem substanciosa!

O velho Generoso puxou a faca que sempre levava na cintura e partiu para eletrocutar as tripas e o fedegoso do vendedor ali mesmo. Nunca foi tão ofendido na vida. Só não conseguiu seu intento de fazer dele um picadinho porque foi imobilizado pelos filhos e pelos funcionários da loja.

Voltou para casa destilando os mais nobres sentimentos a respeito da santa genitora do vendedor e mais indignado que o notável e profícuo escritor Luiz Berto analisando as decisões dos ministros do STF.

Os filhos, escondidos, pagaram à vista os móveis do pai e os trouxeram depois de uma semana, prazo necessário para sossegar os brios do velho.

6 pensou em “OS MÓVEIS DO SR. GENEROSO

  1. Meu caro Magnovaldo, muito bom o texto. A credibilidade no mercado financeiro sem foi a palavra. Isso eu digo aos meus alunos. Quando se perde a credibilidade, acabou tudo. Ainda existe vendas por nota promissórias e por “vales”. No interior, acho que a caderneta ainda existe, talvez, agora uma planilha de excel, mas deve servir de controle de vendas.

    • Prezado Mauricio:
      Como sempre, sábias palavras.
      Manter a palavra empenhada é um ponto de honra extrema que meu velho pai nos passou.
      Outra frase dele, que nunca me esqueço, pronunciada após eu ter terminado um curso de pós-graduação em administração, em que comentava com ele a Lei da Oferta e da Procura:
      “Meu filho, só existe uma Lei que presta em Economia: nunca gaste mais do que você ganha”.
      Faça prestação somente para comprar algo que seja para aumentar o seu patrimônio, nunca para comprar um caixote de cerveja para uma festa. E pague rigorosamente suas contas, mesmo se tiver que passar fome para isso.
      Um grande abraço.

  2. Admiro muito a história do fio do bigode do matuto. Tenho até uma música (MATUTO) que fala disso. Diz assim, em um trecho: ‘todo dinheiro vale menos que o fio do seu bigode’.
    Admiro, também, o estilo de escrita do Magnovaldo. Enriquece as páginas do JBF.

    • Xico, meu ilustre guru:
      Claro que conheço essa poesia, que fala:

      “todo dinheiro vale menos que o fio do seu bigode
      ele fala ‘pro mode’ mas sabe mais do que qualquer doutor
      no terreiro do seu peito tem fartura de felicidade
      plantação de amizade, colheitas de amor”.

      Para mim, é um preito de honra à palavra do homem simples e honesto.
      Quando vim do Brasil em 1999 trouxe uma coletânea de mais de quatrocentas músicas brasileiras para matar a saudade quando ela me cravasse seu espinho no coração. Sempre que vou ao Brasil procuro adquirir mais algumas músicas, já que tenho paixão por músicas caipiras e, particularmente, pelas de origem nordestinas, além de ser fanático por música clássica (especialmente a música barroca). Assim, gravei um programa do Sr. Brasil (Rolando Boldrin) que aconteceu na TV Cultura em 3/11/2013, onde Janaina, Trio Sabiá e Joquinha apresentaram sua música “Se Tu Quiser”, uma preciosidade. Nunca imaginei que um dia poderia ter contato com o próprio Xico Bizerra e, muito menos, receber dele um elogio. Muito obrigado.
      Grande abraço,

      • Xico Bizerra em 31 de agosto de 2021 às 15:02 disse:
        Que honra suas palavras. Que coisa boa que vc conhece algo de minha modesta lavra. Isso é o combustível necessário para que prossigamos nessa lida de escrever as besteiragens e bobagices que escrevo. Muito obrigado.

  3. Que honra suas palavras. Que coisa boa que vc conhece algo de minha modesta lavra. Isso é o combustível necessário para que prossigamos nessa lida de escrever as besteiragens e bobagices que escrevo. Muito obrigado.

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