VIOLANTE PIMENTEL - CENAS DO CAMINHO

Na sua venda, que na verdade era um armazém de Secos e Molhados, Francisco, meu pai, vendia em grosso e a varejo.

No grande depósito, entre diversas mercadorias, ele estocava açúcar da Usina “Estivas”, comprado em sacas de 60 quilos, feitas de tecido de algodão rústico. À medida que o açúcar ia sendo despejado num depósito de madeira com tampa, para ser vendido a granel, ou seja, no peso, as sacas vazias eram levadas para nossa casa por dona Lia, minha mãe, que as colocava de molho e depois de bem lavadas, secas e passadas, as transformava em panos de chão, para serem usados na limpeza doméstica.

Como eram muitas sacas, minha mãe costumava doá-las, ainda sujas de açúcar às pessoas que lhe pediam. Algumas donas de casa usavam essas sacas, para confeccionar lençóis e fronhas, para uso da família, e ainda panos de prato, tudo isso ornamentado com bonitos bordados, feitos pelas donas de casa habilidosas nessa arte. Segundo elas, não havia lençóis mais macios do que esses feitos com sacas de açúcar, de puro algodão.

Nesse tempo, a roupa de cama era costurada em casa, numa máquina de costura, quase sempre da marca “Singer”, movida a pedal. Não havia máquina a motor, já que ainda não havia energia elétrica na cidade. Comprava-se em peças um tecido de algodão, apropriado para esse fim (bramante).

Antigamente, últimas décadas do século passado, quando ainda não havia chegado o estrondoso desenvolvimento tecnológico, os armazéns ou “vendas” existiam em cada esquina. Esses pequenos mercados eram a maior, e, às vezes, a única fonte de venda de mantimentos para a população, principalmente nas cidades do interior do Estado.

Nesse tempo, os dias eram calmos e não havia violência. As mães podiam mandar um filho sozinho a alguma venda, comprar alguma coisa de última hora e pedir ao dono para anotar na caderneta.

Esse era o único sistema de crediário que havia na época. Era muito seguro e, dificilmente, um freguês não cumpria a obrigação de pagar a caderneta, no dia em que recebia “o ordenado”.

Era um tempo em que a desonestidade ainda não tinha nascido. A palavra empenhada valia mais, do que o papel e a letra.

O dono da venda, geralmente, sabia de cor os dias em que cada freguês recebia seu ordenado (palavra usada para “salário” ou “vencimento”, naqueles tempos). Com tranquilidade, esperava o pagamento das dívidas do mês, para aquela data.

As crianças iam àquelas vendas aconchegantes, “compravam” o que a mãe havia pedido, e mais um chocolate ou um drops, com a sua autorização. Ficava tudo anotado na “caderneta”.

Nas cidades do interior, todos se conheciam pelo nome, e todos confiavam uns nos outros.

Nas vendas, ou “armazéns de Secos e Molhados”, havia sempre uma balança sobre o balcão, para pesar as mercadorias, que seriam vendidas a granel.

Com o tempo, as balanças antigas foram substituídas pelas da marca “Filizola”, mais modernas e bonitas, com o marcador do peso à mostra, em ponteiros. Os antigos “pesos”, aos poucos, foram abolidos.

A “Caderneta”, portanto, era o “cartão de crédito” de antigamente. Todas as pessoas da cidade tinham conta corrente em alguma venda ou armazém. Compravam o mês todo e pagavam quando saía o “ordenado”. Os calotes quase não existiam. Também não existia o supérfluo, que hoje, com as “parcelinhas” do verdadeiro “cartão de credito” “enlouquece” os compradores compulsivos e desordenam as finanças da família.

12 pensou em “OS LENÇÓIS

  1. Delícia de crônica, querida Violante Pimentel.

    A nobre cronista escreve delicioso por temas deliciosos.

    Parabéns.

  2. Cara Amiga Violante

    Creio que o dito “Eu era feliz e não sabia” surgiu de uma pessoa rememorando o tempo, agora há pouco, que você tão bem descreveu na sua crônica.

    Grato e parabéns

    Brito

    • Obrigada pela gentileza do comentário, prezado Brito.

      Esse cenário que descrevi é um retrato da minha infância, em Nova-Cruz (RN), a minha “aldeia”. Realmente, cabe o dito “Eu era feliz e não sabia”. E o mais importante é que todos estavam vivos.

      Grande abraço, amigo! Muita Saúde e Paz!

  3. Obrigada pelo comentário gentil, querido cronista Cícero Tavares! Você me deixou envaidecida.

    Um grande abraço e um feliz final de semana!

    Muita Saúde e Paz!

  4. Cara e divina Violante!

    Esta sua crônica fez passar um filme na minha cabeça, onde eu vi atentamente a minha infância refletida nas suas palavras. Bons tempos perdidos na memória.

    Muito obrigado por me proporcionar este devaneio.

  5. Violante,

    A sua crônica foi um belo filme de um passado recente que teima em se tornar presente na minha memória afetiva. O local dos secos e molhados, que se convencionou chamar bodega, ou mercearias, para os espaços mais organizados, sofreu o impacto dos produtos vendidos no atacado e a preços mais em conta. Mas, a existência das velhas cadernetas ou bloquinhos de anotações das contas, a confiança nos fregueses antigos, ou simplesmente a compra de pequenas quantidades de produtos em papel de embrulho, ainda sobrevive em alguns desses lugares onde há um pouquinho de tudo.Em Iguaraci/PE, presenciei uma cena hilária de um senhor que era cleptomoníaco, apesar um agricultor bem sucedido. As pessoas conversavam animadamente quando de repente o senhor, que sofria do transtorno de controle de impulsos que resulta em um impulso irresistível de roubar, levantou-se para ir embora, então o dono do boteco perguntou-lhe:”Já vai? Ele rapidamente respondeu: “Tenho compromisso inadiável. O bodegueiro argumentou:”Antes disso devolva o bacalhau que está dentro da sua camisa, cujo o rabo está próximo do seu pescoço.”

    Desejo um final de semana pleno de paz, saúde, serenidade e alegria

    Aristeu

    • Obrigada pelo amável comentário, prezado Aristeu.

      Meu pai só chamava o armazém de “venda”. Dia de feira, a família toda ajudava no balcão, inclusive eu, a caçula dos cinco filhos. Pra mim, era uma folia.

      Saí de Nova-Cruz, mas Nova-Cruz não saiu de mim.
      Essas doces lembranças, carregarei sempre comigo.

      Achei hilária, o caso do “ladrão” de bacalhau… Além de ladrão, era burro, pois o forte cheiro do bacalhau não dava pra esconder…kkkkkkkk

      Grande abraço! Um fim de semana com muita Saúde e Paz!

      Violante

  6. Obrigada pelo gratificante comentário, prezado João Francisco.

    Esse cenário que descrevi, carrego dentro de mim. .É o retrato da minha infância, no chão da minha “aldeia” (Nova-Cruz-RN). Um tempo em que a maldade nem tinha nascido..

    Grande abraço, e um feliz final de semana!.

  7. Violante, você é uma fada que com sua caneta mágica, tem o dom de nos conduzir para um mundo em que vivemos os melhores anos de nossas infâncias. Lá em casa, no sertão de Minas Gerais, sacos brancos, depois de alvejados ficavam branquinhos e serviam para fazer calças curtas com suspensórios para a meninada, vestidinhos para as meninas , ceroula para o vovô, lençóis e fronhas. Naqueles tempos de recursos escassos, nada se perdia, tudo se aproveitava. Uai, eta tempo bão, sô !.kkkkkkkkkkkk.

    • Obrigada pela delicadeza do comentário, prezado Paulo Terracota!

      Fiquei feliz em saber que, na sua terra, sacos brancos, depois de alvejados, também eram bem utilizados por mãos habilidosas..
      Realmente, “naqueles tempos de recursos escassos, nada se perdia, tudo se aproveitava”.
      Minha Mãe costurava para nós todos e também remontava as roupas antigas, dando-lhes aspecto de novas.
      Foi o tempo melhor da minha vida….

      Bom final de semana!

  8. A bela nave da recordação é bem pilotada por você, Violante.

    Nela, sou passageiro privilegiado.

    E saiba que aqui no bairro onde moro, ainda vigora a velha, boa e infalível cadernetinha. Principalmente com a advento da pandemia. O verdureiro é eclético e moderno: Legumes, frutas, ovos, bolos, temperos… numa caminhonete com altofalante (aos berros) ofertando suas mercadorias.

    No sábado ou domingo ele vem de moto com a maquineta na mão e um sortiso maroto na cara, na porta do freguês.

    Maravilha de crônica.

  9. Obrigada pelo comentário gentil, prezado Marcos André!
    Saber que você é passageiro “da nave da recordação” pilotada por mim, me deixa orgulhosa,
    Gostei de saber que, no bairro onde você mora ,.”ainda vigora a velha, boa e infalível cadernetinha”, como consequência da Pandemia.,

    Acredito que no interior, algum bodegueiro antigo ainda venda fiado, mas somente aos “compadres”. Aos forasteiros, jamais…..”Seguro morreu de velho”…kkkkkkk.

    Bom fim de semana! Muita Saúde e Paz!

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