JOSÉ DOMINGOS BRITO - MEMORIAL

João Francisco dos Santos nasceu em 25/2/1900, em Gloria do Goitá, PE. Cozinheiro, segurança, artista transformista e personagem da vida noturna e marginal da Lapa carioca em meados do século passado. Foi considerado o “homossexual mais macho” do Brasil, casado com mulher e pai de 6 filhos adotivos, que brigava com a polícia e defendia os mais fracos e prostitutas na rua. O apelido “Satã” surgiu no carnaval de 1938 e foi premiado num concurso de fantasia, promovido pelo bloco “Caçadores de Veado”, no Teatro República.

Criado numa família humilde de 18 filhos, perdeu o pai aos 7 anos, deixando a mãe numa situação precária. Para ajudar na manutenção da família, o garoto foi trocado por uma égua com um criador de cavalos, que lhe prometeu casa e estudo. Não cumpriu o prometido e empregou o garoto em sua fazenda. No ano seguinte, numa viagem até Itabaiana, PB, o garoto conheceu Dona Felicidade, que incentivou-o a fugir da fazenda e ir morar com ela no Rio de Janeiro, onde montou a pensão “Hotel Itabaiano”. Ai passou a trabalhar na condição de semiescravidão. Insatisfeito com essa vida, fugiu de novo em 1913 e passou a viver na Lapa. Vivendo na rua, pensões, bares etc., conseguiu emprego de vendedor ambulante de pratos e panelas, bem como serviços de cozinha, Foi também segurança, garçom, cozinheiro e capoeirista.

Nesse ambiente fez amizade com “Sete Coroas”, o maior malandro e “cafetão” da época. Em 1922 decidiu ser artista, influenciado pela companhia francesa “Ba-ta-clan”, que passou pelo Rio apresentando seu teatro de revista. Em 1923, com falecimento do malandro, Satã assumiu seu “posto” na Lapa e deu início a prodigiosa carreira de malandro e uma incipiente carreira de artista transformista nas boates e bares do bairro. Por esta época foi cozinheiro na “Pensão do Catete”, onde conheceu a atriz Sara Nobre, que o apresentou ao mundo do teatro. Trabalhou por algum tempo no espetáculo “Loucos em Copacabana”, interpretando a “Mulata do Balacochê”. Sua primeira briga deu-se com um vigilante chamando-o de “veado”, em 1928. O vigilante morreu ao cair e bater a cabeça no meio-fio da rua. Foi preso e passou mais de 2 anos na Ilha Grande. Absolvido, alegando legítima defesa, pretendeu mudar de vida e casou com Maria Faissal, em 1934, com quem teve 6 filhos adotados.

Mais tarde, um policial irmão do vigilante morto na briga, impediu-o de entrar na boate Pigalle, que resultou numa briga. O policial levou uma surra e Satã foi preso em flagrante, amargando mais 2 anos de prisão. Pouco depois de sair da prisão, foi tomar um aperitivo no Bar Canaã e encontrou um sargento do Exército, que forçou uma troca de copos: cada um deveria tomar a bebida do outro. Como Satã não gostava de militar, recusou a troca e o sargento não suportou a desfeita. Entraram em luta e o sargento disparou-lhe 6 tiros. Nenhum acertou-o e o sargento fugiu. Satã perseguiu-o e cortou-lhe a bunda com uma navalha. Por esta agressão pegou mais 4 anos de prisão. Ao ser libertado decidiu montar família; adotou uma filha e abriu uma lavanderia. Na ocasião um homossexual foi morto nas redondezas e ele foi preso como suspeito. Foi torturado por 3 dias para confessar um crime que não praticou e ficou 2 dias preso. Fechou a lavanderia e abriu uma pensão, onde abrigava prostitutas e foi se firmando no negócio. Logo, chamou a atenção da polícia alegando que ele estava praticando lenocínio.

Chamado a depor na Delegacia, foi interrogado e levou um tapa do delegado. Satã revidou; levou uma grande surra dos policiais presentes e ficou preso por um ano e meio. Em seguida houve mais uma briga com a polícia. Conta-se que o delegado Frota Aguiar o perseguia constantemente. Satã ligou para ele negando as acusações que lhe eram imputadas. O delegado reagiu dizendo que ia dar-lhe uma surra e prendê-lo. Enfurecido, Satã disse-lhe: “Tá bem, eu vou aí. Mas saiba que eu vou quebrar-lhe a cara”. Cumpriu a ameaça; quase morreu de tanto apanhar dos policias e foi preso de novo. Virou freguês da prisão em Ilha Grande e mantinha bom relacionamento com outros presos e a administração do presídio. Aí trabalhava na cozinha desde sua primeira passagem. Em 1943 resolveu fugir, atirando-se no mar e nadando até a praia do Leblon. Exausto, acabou sendo preso e voltou ao presídio, de onde saiu em 1946. No mesmo ano teve que enfrentar 12 soldados da Aeronáutica, a pedido de sua amiga Nilsa. Os soldados não queriam pagar pelo “serviço”. A briga se prolongou até a Taberna da Glória com golpes de capoeira e a navalha atemorizou os soldados. Na delegacia, o inspetor foi rude no inquérito e acabou levando uns socos, resultando em mais uma prisão de 19 meses.

Em princípios dos anos 50 passou a viver numa rotina mais tranquila e voltou a trabalhar em shows imitando Carmen Miranda. Mas em seguida foi acusado de receptação e pegou mais 4 anos de cadeia. Esta prisão foi emendada com outras acusações e falhas no sistema carcerário, prolongando a prisão. Em 1955 deu-se a famosa briga com o sambista Geraldo Pereira. Conta Satã que foi ofendido e chamado para a briga. Com apenas um soco e uma queda o sambista veio a falecer. Laudos médicos inocentaram Satã da morte do sambista, alegando que a causa foi um derrame cerebral. Mas a lenda –que ele havia matado um cara com apenas um soco- se espalhou rápido e ampliou ainda mais sua fama de valente. Esta foi, talvez, sua última prisão, que durou até 1965, quando decidiu largar de vez a “vida bandida”, abandonar a Lapa e passou a viver com a família num lugar conhecido: a Ilha Grande, na Vila do Abraão. Ao longo da vida Satã passou quase 28 anos (intercalados) na prisão. Passou por 29 processos e foram lhe atribuídos cerca de 100 assassinatos e mais de 3 mil brigas.

Já envelhecido, voltou a fazer o que sabia: cozinhar para fora a pedido dos clientes, fazer faxina na casa de ex-policiais e funcionários do presídio etc. Tempos depois, em 5/5/1971, foi entrevistado em sua casa pela turma do “Pasquim”: Millôr Fernandes, Paulo Francis, Sergio Cabral, Jaguar, Fortuna, Chico Júnior e Paulo Garcez. Os interessados na entrevista podem acessá-la clicando aqui. A longa entrevista “ressuscitou” sua fama e recolocou-o no “palco”, vindo a fazer parte de algumas peças de teatro e shows. Na esteira da entrevista, foi lançado em 1972 o livro Memórias de Madame Satã, escrito por Sylvan Paezzo e, em 1974, o filme “Rainha Diaba”, dirigido por Antonio Carlos Fontoura, com Milton Gonçalves no papel-título. Outro filme, -“Madame Satã”-, abordando sua vida antes de receber o famoso apelido, foi lançado em 2002 dirigido por Karin Aïnouz, com Lázaro Ramos no papel-título. Em 2015 este filme entrou na lista, da Associação Brasileira de Críticos de Cinema, dos 100 melhores filmes brasileiros.

O epílogo de sua vida se deu princípios de 1976, quando foi encontrado num hospital de Angra dos Reis, internado como indigente. Ao saber do fato, Jaguar resgatou-o e levou para um hospital em Ipanema, mas veio a falecer em 12/4/1976, devido a um câncer pulmonar. Porém, Jaguar disse em entrevista que ao encontrá-lo “ele estava com 47 quilos, metade de seu peso normal. Naquele tempo, em 76, não se falava ainda disso, mas tenho certeza de que ele morreu foi de Aids”. Em 1985 foi lançada sua biografia Madame Satã: com o diabo no corpo, escrita por Rogério Durst. O autor conta que este livro caiu nas mãos de Chico Buarque, que anos depois lançou sua “Opera do Malandro”. Em 1990, a Escola de Samba Lins Imperial desfilou com samba-enredo “Madame Satã”.

11 pensou em “OS BRASILEIROS: Madame Satã

  1. Este “Memorial dos Brasileiros” já foi bom. Como é que pode incluir um sujeito dessa categoria, com um nome que já diz tudo? Avacalhou o Memoria!!!

  2. Logo no inicio do Memorial, em 2019, inclui “Lampião”, para muitos, o famigerado bandido e ninguém reclamou.
    Depois inclui Maria Baderna, cujo nome sobrenome tornou-se conhecido adjetivo brasileiro e ninguém reclamou.
    Agora há pouco inclui Dona Beja, a prostituta e dona de bordel mais famosa do Brasil e, de novo, ninguém reclamou. Pelo contrário, até foi elogiada.

    Ô Reginaldo: você poderia me dizer qual seu problema com Madame Satã?

  3. Madame Satã foi um ícone preto do século XX que impôs sua personalidade ímpar aos puritanos pela sua bravura!

    Fez história, e até hoje é estudado pela sua vida controversa, o que já é um feito grande na sua trajetória de vida.

    • É isso aí, Cicero
      Você me ajudou na resposta ao Reginaldo reclamando da inclusão de Satã no Memorial, que visa o resgate dos brasileiros e brasileiras com grandes trajetórias de vida. .

      Grato pelo apoio.

  4. Li, bem devagarinho: – MADAME SATÃ – e aproveitei para apreciar a narração do Repórter por um dia, com Lázaro Ramos, onde vimos imagens movimentadas do personagem.

    Numa de minhas crônicas citei um veado, macho que só a porra, que vivia no bairro portuário do Recife LOLITA.

    Você mostrou um BRASILEIRO.

    Se teve méritos ou não, “…que se dane o mundo que não me chamo Raimundo!”

    Obrigado por ter nos apresentado a história de um cabra valente.

  5. Carlão
    Você nos lembra de Lolita, da zona do Cais de Santa Rita, que, ouvi dizer, era uma bicha macho que só vendo. Não sei se mais macho que Satã, mas é interessante o fato de realçar a “macheza” pernambucana mesmo na homossexualidade.
    Grato pela pela lembrança e por sua postagem

  6. Desperdiçou 28 anos da vida em uma cana atrás da outra.

    Devia ter ido pra um terreiro de macumba pra espantar esse encosto atrator de confusão. Tá é doido…!

  7. Caro cronista: comentário atrasado, mas a leitura da crônica alegrou um senhor nonagenário que frequentava a Lapa daquela época e conheceu pessoalmente o controverso homenageado. Parabéns!!!

  8. Grato Miriam
    Pela manifestação. Fico contente em ter alegrado o domingo do Dr. Martiniano, lembrando-lhe dos bons tempos passados na Lapa do Rio de Janeiro.

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