JOSÉ DOMINGOS BRITO - MEMORIAL

Darcy Ribeiro da Silveira nasceu em Montes Claros, MG, em 26/10/1922. Antropólogo, sociólogo, museólogo, educador. administrador, político e escritor. Foi um dos mais brilhantes pensadores (e fazedores) brasileiros destacado em diversas áreas. Passou a vida repensando o Brasil e suas mazelas; sua riqueza natural e cultural a partir da miscigenação entre brancos, negros e índios. Sua trajetória de vida daria belo documentário da história do Brasil durante a segunda metade do século XX.

Filho de “Dona Fininha” (Josefina Augusta da Silveira), professora que nomeia uma avenida da cidade, e Reginaldo Ribeiro dos Santos, falecido quando ele tinha 3 anos. Sem pai, virou moleque traquino e curioso. Na farmácia do tio, ouviu falar que a quantidade de “azul de metileno” que lá havia daria para pintar o oceano Atlântico. Ficou intrigado com a informação e despejou um pacote na caixa d’água da cidade. A água azul saiu em todas as torneiras, causando pânico na cidade. Aos 17 aos foi estudar medicina em Belo Horizonte, mas sem vocação para isso largou o curso no 4º ano. Em contato com o sociólogo Donald Pierson, diretor da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, ganhou uma bolsa de estudos e aí foi estudar, em 1944, graduando-se em antropologia, em 1946. No ano seguinte foi trabalhar no SPI-Serviço de Proteção ao Índio e conheceu Rondon e os irmãos Villas-Boas. A partir daí passou a viver 10 anos, alternadamente, entre os índios e no Rio de Janeiro. Seu primeiro livro –Religião da mitologia Kaiwéu – foi publicado em 1950, e lhe valeu o Prêmio Fábio Prado. Em 1953 criou o Museu do Índio. Mas, logo os irmãos Villas-Boas viram que, além do museu, os índios precisavam de um local para viver seguramente e idealizaram o Parque Indígena do Xingu, cujo projeto foi realizado por Darcy e inaugurado em 1961. Por essa época era um antropólogo completo: organizou o 1º curso de pós-graduação em antropologia (1955) e presidiu a Associação Brasileira de Antropologia (1959)

O Parque é a maior reserva indígena do mundo, onde vivem hoje cerca de 5.500 índios de 14 etnias. Afirma-se que sua criação evitou um grande genocídio no Brasil. Sua dedicação à estes povos, levou-o a elaborar para a Unesco um estudo sobre o impacto da civilização sobre os índios e, em 1954, trabalhou na OIT-Organização Internacional do Trabalho na edição de um manual sobre os povos aborígenes de todo o mundo. No ano seguinte, com a eleição de Juscelino Kubitschek, foi convidado a participar da elaboração do plano educacional do novo governo, junto com Anísio Teixeira, seu chefe e “guru”. Anísio, vendo que o rapaz prometia, entregou-lhe a Divisão de Estudos Sociais do CBPE-Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais. O “cabra” tornou-se um educador obstinado e produtivo. Em seguida, JK pede à Darcy e Anísio para planejarem a Universidade de Brasília-UnB, em 1959. Reuniram um seleto grupo de professores nacionais e alguns estrangeiros e a UnB foi inaugurada em 1962, com Darcy na Reitoria, tendo Anísio como vice. Pouco depois foi conduzido ao MEC-Ministério da Educação e deixou a reitoria com Anísio. O País passa por transformações profundas na Política com o governo de João Goulart e seu envolvimento vai se alargando. Em 1963 convidado pelo presidente para exercer a “eminência parda” do governo e assume a chefia da Casa Civil. Neste cargo, passou a coordenar as reformas estruturais à serem implantadas no Pais.

Com o Golpe Militar de 1964, articulou uma resistência armada, mas não encontrou apoio suficiente e foi obrigado a fugir em direção ao exilio no Uruguai. Em 4 de abril o deputado Rubens Paiva conseguiu um pequeno avião Cessna e um acordo com o pessoal da torre de controle do aeroporto de Brasília. Levou Darcy e Waldir Pires até a cabeceira da pista e ficaram agachados num capinzal aguardando a chegada do avião. O piloto não sabia quem eram e foi orientado apenas a recolher os dois passageiros e levantar voo. Alguém na torre percebeu o rápido embarque e passou uma ordem pelo radio para retornar. O piloto quis obedecer, mas uma contra ordem incisiva de Darcy fez com que o voo prosseguisse até uma fazenda de Mato Grosso, e daí noutro voo até Montevideo.

No Uruguai foi bem recebido e logo foi nomeado professor de antropologia da Universidad de la Republica. Ficou, também, encarregado de presidir um seminário de reformas na universidade, com base no trabalho feito na UnB. Aí tem inicio sua função de “sapateiro remendão” de universidades na Am. Latina, como ele mesmo definia. Com passaporte uruguaio pode viajar pela Europa, Rússia e Cuba, onde manteve encontros com Fidel Casto e Che Guevara em longas conversas. “Sempre me lembrarei dessa conversa com Che. Ele suave e duro como ninguém. Eu me desmanchando, palavroso, em argumentações”, disse mais tarde em suas Confissões (1997). Por essa época começou a escrever seus “Estudos de antropologia da civilização em 5 volumes: O processo civilizatório (1968), As américas e a civilização (1970), O dilema da América Latina (1978), Os brasileiros (1972), Os índios e a civilização(1970). Publicou também A universidade necessária (1970), sintetizando sua experiência em reformas universitárias e, para “espairecer”, fez o primeiro esboço do romance Maíra (1976), com o qual se fez romancista.

Em Montevideo participou da vida cultural junto com Angel Rama e Eduardo Galeano entre outros; escreveu artigos para a revista “Marcha” e participou da edição da Enciclopedia de la Cultura Uruguaia, vendida em capítulos em bancas de jornal. Em meados de 1968, os processos que lhe eram movidos foram anulados pelo STF-Supremo Tribunal Federal. Após 4 anos de exílio e sabendo da “Marcha dos Cem Mil” (26/6/1968) no Rio de Janeiro, se animou a voltar achando que a anulação dos processos lhe favorecia. Mesmo advertido por Jango e Brizola, pediu ao seu advogado Wilson Mirza que avisasse o governo brasileiro que estaria voltando em tal avião, dia tal, no aeroporto do Galeão. Ao chegar foi avisado, ainda no aeroporto, que deveria se apresentar no DOPS-Departamento da Ordem Política e Social. Lá respondeu um longo questionário e foi liberado. Como era o primeiro cassado e exilado que voltava, a imprensa não deu sossego. Passou 3 meses se esbaldando em jantares com os amigos e falando, “pelos cotovelos”, bem do governo deposto e mal da ditadura em diversas entrevistas. Foi advertido pelos amigos: “Isso não se faz na ditadura, Darcy. Ninguém fez isso aqui”. Não demorou para que a polícia batesse na sua porta; mas não o levaram com a promessa de se apresentar ao Superior Tribunal Militar. A ordem era para prender, mas seu advogado apelou para o STF e continuou livre, porém vigiado de perto pelos agentes do DOPS. Até que em 13/12/1968 veio o AI-5 e foi aconselhado a fugir. Mas não admitiu “voltar com minhas próprias pernas para o exílio”. Foi preso no dia seguinte e levado para o batalhão blindado do Rio, numa cadeia que logo ficou lotada de “subversivos”. A prisão durou 9 meses.

Ali passou 3 dias e foi levado para o clube dos cabos. A acomodação melhorou bastante, tanto que deu para fazer a 2ª versão de Maíra. Depois levaram-no para a Fortaleza de Santa Cruz, onde havia muitos estudantes presos e podia conversar com eles no “banho de sol”. Mas isso durou pouco, um oficial do dia proibiu a conversa. Às vezes a proibição não era cumprida e foi advertido: “Se o senhor continuar a falar com os presos, eu tiro o banho de sol deles”. Em seguida foi transferido para a Ilha das Cobras, sob os cuidados da Marinha. Ao chegar foi avisado que devido ao fato de ter sido agraciado com a ordem do mérito naval em grau de grã-cavalheiro, teria direito a prisão de almirante. Aí ficou alguns meses bem melhor instalado. Na Marinha, o pessoal era mais educado e com o tempo passaram a respeitá-lo pelo fato de ter convivido com os índios e ser discípulo de Rondon, herói das forças armadas. Assim, passou a receber visitas semanais de sua esposa Berta e de alguns amigos. Foi convencido pela esposa e amigos a escrever uma carta ao presidente Costa e Silva, pedindo-lhe um passaporte para deixar o País, quando saísse da cadeia, pois havia um convite da Universidade de Columbia, para dar aulas como professor visitante. Concluiu a carta com “Saudações republicanas” e recebeu o passaporte.

Em 1969 foi julgado por um tribunal de oficiais da Marinha e foi absolvido. Em liberdade, ficou alojado na casa de seu advogado e no outro dia, soube que o Exército, em desacordo com a sentença da Marinha, ordenara sua volta à prisão. Desesperado, correu para a Embaixada Americana para conseguir um visto de entrada nos EUA. Teve uma conversa ríspida com o Cônsul, que relutava em lhe dar o visto. “Não estou convencido. Não o vejo como mero professor visitante”. Vendo que não conseguiria o visto, retrucou: “Claro. Sou um eminente antropólogo. Fui honrado com um convite para lecionar na Columbia, coisa que nunca sucederia ao senhor”. A troca de farpas se prolongou com o cônsul dizendo que ele estivera em Cuba em conversas com Fidel e Che. “Tenho aqui uma foto sua em viagem para lá. Aliás, seu arquivo é um dos maiores que temos”. Darcy encerrou a a conversa: “Cuide bem dele. Vai ser útil para meus biógrafos”. Na ocasião, seu amigo José Augustin Michelena, sociólogo venezuelano de passagem pelo Rio, foi acionado para lhe conseguir um visto consular para entrar em Caracas. Junto com Berta, foram para o Aeroporto e deixaram um amigo na fila de embarque, enquanto ficaram dispersos entre as pessoas até a chamada do voo.

Em Caracas foi contratado pela UCV-Universidad Central de Venezuela como professor de antropologia, orientador de teses e a direção de um seminário de renovação da UCV. Posteriormente deu aulas também na Universidade de Mérida. Durante um ano conviveu com a intelectualidade local e viajou pelo Caribe. Se deu bem em Caracas, inclusive com uma namorada de 22 anos, filha de um ricaço. O único problema que teve foi com um adido militar do Brasil, que, na condição de amigo do Ministro da Justiça, impedia que lhe dessem o visto permanente. Foi obrigado a obter visto de turista em Curaçao. Na terceira vez que foi renovar o visto, se aborreceu e reclamou numa entrevista de programa de TV. A apresentadora passou a reclamar que o presidente Caldera estava expulsando da Venezuela um dos maiores intelectuais da Am. Latina, professor contratado pela UCV, devido à pressões da ditadura brasileira. A bronca deu certo e o visto permanente saiu no dia seguinte. Tudo ia muito bem, até a vitória de Allende no Chile, em 1970, seu amigo quando vivia em Montevideo.

Em contatos com o Instituto de Estudos Internacionais da Universidade do Chile, mudou-se para Santiago, em 1971, procurou Allende e se colocou à seu serviço. Na condição de assessor especial redigia os discursos do presidente. Foram 2 anos de trabalho em conduzir o país pela via do socialismo em liberdade, com democracia e desenvolvimento da economia nacional. O único país aliado era Cuba, cuja longa presença de Fidel no país acirrava a esquerda radical, desagradava a elite e alimentava o complô que se armava nos EUA. A situação chegou num ponto em que a esquerda declarou: “A economia deu tudo o que podia dar. Cabe agora à ação política abrir caminhos”. O MIR-Movimiento de Izquerda Revolucionária ganhou força e passou a conspirar querendo dar o golpe para “cubanizar” o processo chileno. A elite passou a conspirar; a classe média perdia o emprego; o povo passou a sofrer com filas até para comprar pão. Faltava alimentos em todos os mercados e alguns itens de consumo diário passaram a ser controlados. O caos se instalou a partir de 1973. Nesta ocasião, Luis Echeverria, presidente do México, achando que Darcy corria risco de vida naquela situação diante de um golpe, designou o escritor Juan Rulfo para ir até Santiago, procurá-lo, levá-lo até a Embaixada e trazê-lo para o México. Rulfo passou alguns dias procurando-o e não encontrou. Outro presidente –Velasco Alvarado, do Peru- havia se antecipado, enviando à Santiago Carlos Delgado com um convite à Darcy para “ajudar a pensar revolução peruana”. Diante da situação chilena, o convite foi aceito de imediato.

No Peru trabalhou junto ao gabinete da Presidência na construção do Centro de Estudos da Participação Popular, com ajuda de Oscar Varsavsky, matemático argentino, inventor da simulação computacional. O Centro resultava de uma parceria com o PNUD-Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento e contava com ajuda da OIT-Organização Internacional do Trabalho. A partir de uma grande base de dados projetou-se um sistema de informações para implementar políticas sociais, que Darcy chamou de “socialismo cibernético”, pois “não se fundava em nenhuma ideologia, mas num jogo de números dentro do computador”. Suas ideias combinavam a implantação de uma modernidade tecnológica com o renascimento da cultura incaica. Porém encontrou resistências entre a intelectualidade peruana, que relutava em admitir um estrangeiro na formulação do novo Peru. Percebeu também que não havia interesse da área acadêmica em estudar o quéchua como uma língua nacional, uma de suas propostas. Mesmo assim, conseguiu a edição de um dicionário geral da língua nativa.

Neste ambiente apreensivo, aproveitou para tirar férias e viajou para Portugal. Lá manteve encontros com amigos lusitanos e o ex-deputado Marcio Moreira Alves, proferindo palestras em Coimbra e Porto. Certa noite acordou mal com muita tosse e expelindo sangue. Ficou assustado; procurou o médico; fizeram exames e pela cara do médico viu que era câncer, mas o médico negou. Encaminhou-o à um oncologista, que também negou: “trata-se de uma tuberculose antiga que voltou”. Darcy não acreditou e Marcio levou-o à Paris para fazer exames no “Cretuil”, o melhor hospital de câncer da Europa. Era um câncer pulmonar. “O senhor tem uma bomba no peito, pode explodir a qualquer momento”, disse-lhe o médico. A cirurgia tinha que ser marcada para os próximos dias. Foi um abalo e tanto; passou por uns perrengues revisando a vida passada e refletindo sobre o que fazer diante do pouco tempo de vida que restava. “Envelheci mais nesses últimos dois meses do que nas últimas duas décadas”, confessou. Recebeu uma oferta para fazer a cirurgia nos EUA e recusou. Para espanto dos médicos franceses, recusou também fazê-la em Paris, dizendo que ia fazê-la no Rio de Janeiro. Fez do câncer seu “cavalo de Tróia” para poder voltar ao Brasil em dezembro de 1974. (Continua)

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No próximo domingo concluiremos a biografia concisa de Darcy Ribeiro com sua volta ao Brasil; seu retorno à política como vice-governador do Rio de Janeiro; como senador; sua luta contra o câncer e seu papel na configuração de uma identidade nacional e latino-americana do Brasil.

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