A PALAVRA DO EDITOR

Foi o beato Antônio Conselheiro quem, em 1833, profetizou: “o sertão vai virar mar”. Isso aconteceu na fundação do Arraial de Canudos, no sertão da Bahia, que se tornou palco da celebrada Guerra de Canudos entre seguidores do devoto e as forças do Império, na segunda metade do século XIX.

O sertão não virou mar, pelo contrário, está mais para desertificação. Entretanto, uma área do oeste do Rio Grande do Norte, literalmente, virou mar. Trata-se do município de São Rafael, situado no Vale do Assú, que foi inundado pela Barragem Armando Ribeiro Gonçalves, dando vida a projeto elaborado pelo Departamento Nacional de Obras Contra as Secas-Dnocs, em 1983.

A cidade de São Rafael resultou de um conglomerado indígena denominado Caiçara, em meados do século XVIII. Consta que o nome adveio de um capuchinho, Frei Serafim de Catânia, missionário na região, entre 1840 e 1880. Em 1938, o polo habitacional passou à condição de distrito de Santana do Matos, obtendo a sua emancipação política dez anos depois.

Sacrificada a velha cidade, os seus habitantes – cerca de 730 famílias da zona urbana e outras 1.852 da zona rural – foram transferidos para a nova sede do município construída à margem da barragem. Porém, não foi fácil perpetrar a mudança por conta da série de obstáculos e exigências impostos pela população inconformada com a transferência. Uma delas, a mais significativa, foi a construção de réplica da Igreja Nossa Senhora da Conceição, santa padroeira da comunidade, na nova cidade.

A Igreja N. S. da Conceição, no início da inundação, e a sua réplica na nova São Rafael

Durante anos, o aumento ou a diminuição do nível de água da barragem, decorrente de bons ou maus invernos, escondia ou descobria a torre da velha igreja, criando expectativa na vida do povo da nova São Rafael. Os assistentes do espetáculo obtinham uma visão surrealista de um campanário solitário e altaneiro no meio da imensidão do açude, onde se destacava a cruz, símbolo da fé e da devoção de são-rafaelenses à santa padroeira Nossa Senhora da Conceição

O campanário que ruiu em 2010

No dia 12 de dezembro de 2010, o campanário ruiu, e com ele o último vestígio visível da antiga cidade de São Rafael. Enquanto se manteve em pé, a torre funcionou como um ponto turísticos da nova cidade, que agora permanece gravada apenas na lembrança de antigos residentes do município e nos escritos de memorialistas.

A Barragem Armando Ribeiro Gonçalves é o maior reservatório do Estado com capacidade para armazenar 2,4 bilhões de metros cúbicos de água e, realmente, impulsionou a economia do Vale do Assú. Já a nova cidade não apresentou a mesma pujança da anterior, haja vista que o município de São Rafael, em 1983, abrigava 7.363 habitantes, enquanto na atualidade, quase 40 anos depois, estima-se uma população de não mais que 8.192 vidas.

Guardo boas lembranças da antiga cidade e do tempo de criança quando, eu e meus irmãos, usufruíamos férias escolares na casa de nossos avós paternos ali residentes. Adulto acompanhei, condoído, a cidade ser engolida pela gigantesca barragem, criando o mar de água doce profetizada pelo “peregrino” de Canudos.

2 pensou em “ONDE O SERTÃO VIROU MAR

  1. Foi o primeiro texto (e que texto) que me animei a ler após recuperar o ânimo pela leitura, que a COVID tentou castrar.
    Parabéns, Narcélio! Esse texto merece lugar especial no Instituto Histórico.
    Já o fez publicar nos jornais?

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