JOSÉ RAMOS - ENXUGANDOGELO

E Deus ordenou – “faça-se o sol” – e tudo saiu das trevas

Havia algumas horas, a noite chegara com aquela escuridão pesada como se transportando chumbo. Eu, deitado na rede, na tentativa de minimizar o cansaço e o sofrimento físico do corpo, era embalado pela sinfonia das cigarras, dos grilos e, como se fosse um instrumento de percussão a marcar o ritmo, aquela sinfonia era completada pelo coaxar de um ou mais sapos – não havia como identificar a quantidade deles.

E eu tacava o pé na parede, para impulsionar e firmar o bom balanço da rede. Era bom ficar ali, escutando o som que o silêncio fazia. Dava para distinguir, lá longe, o barulho que as folhas faziam ao tocarem umas nas outras.

De repente, como se mandadas por alguém de espécie diferente, as cigarras pararam de cantar. Os grilos continuaram, e agora, cantando mais alto, como se para compensar a parada intempestiva das cigarras.

Voltei a tacar o pé na parede. Agora a rede estava mais embalada, permitindo escutar, também, ao mesmo tempo que a cantata dos grilos, a ranger das escápulas enferrujadas.

Intempestivamente, da mesma forma que pararam, as cigarras entraram no tempo e na hora certa na sinfonia. E o silêncio da noite, a cada momento, ficava mais audível, nos transportando para a realidade do enfrentamento de um novo dia na manhã seguinte.

O horizonte parecia mostrar um novo sol por estar repleto de esperanças

Na roça, quando o galo canta como se estivesse tocando o berrante de um vaqueiro, não adiante mais tentar ficar na rede. É nessa hora, que também começam a tocar os chocalhos dos bodes e cabras no chiqueiro – todos mancomunados como se estivessem caminhando para o embarque na Arca de Noé.

É, mal comparando, a cada dia que amanhece, uma verdadeira “Revolução dos bichos” (ainda bem que George Orwell já faleceu e nunca vai ter chance de ler essa citação). É, também, mais alguns minutinhos, que a gente se prepara para receber o rei. O rei sol!

E lá vem ele. As nuvens ficam vermelhas no horizonte do céu. Em fração de segundos vão amarelecendo, numa mágica poética cujos versos nem precisam de rima. Ele, o sol, nos penetra pelos poros e se abriga no coração.

Poeticamente, muitos já cantaram que, a cada dia um sol diferente nasce para todos. Uns o aproveitam. Outros, nem tanto. O sol, queima uns na medida exata – mas acaba queimando outros além da necessidade e da conta.

Aqui podemos ver que o sol “queimou” além da conta

O dia amanhece, parecendo ser igual ao de ontem. Não é. É tudo diferente – e existe a necessidade vital de continuar vivendo como se tudo fosse igual. Não é. É um novo dia, embora os propósitos e objetivos sejam os mesmos.

E, quando o dia amanhece, o sol é outro. É o sol de hoje. O outro sol, era o sol de ontem e, com certeza aquecerá e até poderá queimar pessoas que não são as mesmas. E a única coisa que parece ser igual hoje como ontem é o chão. O chão tórrido, com ranhuras provocadas pelo calor – a água evapora e, de longe parece estar em ebulição. Como larvas vulcânicas.

Queima. Enegrece a pele.

Na roça, resseca o milho se as espigas tiverem sido “viradas”. Há momentos que a os espantalhos parecem suar. Suar um mínimo que tenha acumulado nos dias anteriores – quando chovia e o sol permitia.

É o sol.

É o rei sol – que nunca conseguirá se encontrar com a rainha lua.

O homem procura entender a necessidade e o calor abrasador do sol

A gente anda. O sol parece nos acompanhar, mas aonde for, ele chegará primeiro, alegre por ter deixado em nós as suas marcas e impressões digitais – levou a nossa fotossíntese.

E ele pode. Pode, porque é o rei. Somos os súditos que por ele derramamos o suor.

Eis que finalmente o sol está indo embora para retornar amanhã

Eis que, não mais que de repente, o rei mostra que gastou boa parte das suas calorias. Precisa de recarga e, no sertão, começa a se esconder por detrás de uma montanha de nuvens que se misturam com a terra. Amarelas que começam se transformar e escuridão, como uma poesia que diz tudo e ao mesmo tempo não diz nada.

Por alguns estantes o rei sol muda de cor. Parece fugir do contato com a rainha lua.

Vai-se escondendo, escondendo e escondendo. Até que, finalmente desaparece.

E no dia seguinte, quando o galo cantar com o som e a força de um berrante, as nuvens voltarão a ficar avermelhadas, depois amarelecidas para louvar e ceder reverência ao rei. O rei sol.

E aí será um novo dia. Os chocalhos voltarão a tocar estridentemente, avisando que, mais tarde, haverá uma nova audição dos grilos e cigarras.

8 pensou em “O SOL NASCE PARA TODOS – MAS QUEIMA APENAS UNS POUCOS

  1. Zé Ramos, o cabra procura palavras para agradecer por esse seu texto, mas não encontra alguma à altura do seu escrito.
    Então, só digo obrigado.

    • Jesus, obrigado por você existir entre nós e muitos anos antes de nós. O que seríamos de nós, sem você? Com certeza, um sol sem ter o que iluminar e aquecer – a vida é o nosso processo de fotossíntese.

    • Beni, a Natureza é perfeita. Os humanos é que são defeituosos e provêm de sementes que não deveriam brotar. Exemplo: Madre Teresa de Calcutá, Cora Coralina, alguma das duas pode ser comparada a Rosa Weber, Carmen Lúcia?

      • “Eu sou aquela mulher que fez a escalada da montanha da vida, removendo pedras e plantando flores.” Cora Coralina (tal frase também caberia como uma luva para Madre Tereza).

        Fiquemos com as primeiras, pois as outras duas “nunca nem vi”.

        • Sancho parece que já te vi matando dois coelhos com uma cajadada só, num certo filme. Tu eras o “caçador de coelhos” da história – e da fita. Carne de coelho deve ser boa, né não?

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