MARCELO BERTOLUCI - DANDO PITACOS

Andei conversando sobre protecionismo com o pessoal por aqui, então vou contar minha experiência. Entre 1985 e 1994, eu fui funcionário da maior empresa nacional de informática da época, chamada Cobra Computadores e Sistemas S.A.

Naquela época, existia uma coisa chamada Reserva de Mercado, que é o exemplo perfeito de política protecionista. A tal reserva nasceu nos anos 70, época dos militares, inspirada por impulsos “patrióticos” de um lado e teorias econômicas “nacionalistas” de outro.

Em que consistia? Era proibido importar computadores, exceto os grandes, e também era proibido fabricá-los aqui se a empresa fosse estrangeira. Aliás, um dos primeiros “grandes momentos” da reserva foi a pressão, bem-sucedida, para que o governo proibisse a IBM de fabricar aqui um equipamento chamado System /32. Além disso, quem quisesse fabricar aqui tinha que pedir a benção do governo, isto é, submeter seu projeto a um órgão chamado SEI (secretaria especial de informática) para ser “homologado”.

Como funcionava? Na teoria, o mercado reservado permitiria às empresas nacionais implantar uma infra-estrutura que lhes permitiria, no futuro, concorrer em pé de igualdade com o resto do mundo. Por trás do pano, havia gente querendo um país auto-suficiente e fechado por ideologia política (“setor estratégico” e “segurança nacional” eram suas expressões favoritas). Havia gente querendo um mercado fechado por ideologia econômica (para estes as expressões eram “balança de pagamentos” e “substituição de importações”). E havia gente que via nisso a chance de ganhar um bom dinheiro.

Os nacionalistas, se dermos razão às suas preocupações com soberania e independência, foram extremamente incompetentes, porque o resultado da reserva foi produzir computadores nacionais usando componentes importados, e meia autonomia é tão inútil como meia virgindade. Houve projetos, é verdade, de criar à força uma indústria nacional de microeletrônica, que terminou como sempre acontece com os projetos do governo: comitês, conselhos, grupos de estudo, reuniões, relatórios, muitas verbas daqui e dali, muitos planos que nunca viraram realidade.

O mercado nacional daquela época pode ser dividido em duas partes: computadores pessoais e computadores comerciais.

No lado dos pessoais, de menos tecnologia e maior volume, surgiram dúzias de indústrias nacionais produzindo cópias ilegais dos modelos mais famosos lá fora: Apple II, TRS-80, Sinclair ZX-80, TRS-Color, e finalmente o IBM-PC, que ocupou o lugar de todos os outros. Foi criado um vocabulário específico no setor: cópia não era cópia, era “compatível”. O processo de copiar virou “absorver tecnologia”. E a promessa de criar uma indústria auto-suficiente não se concretizava, porque a tal “absorção de tecnologia” não acabava nunca. Na prática o brasileiro era proibido de comprar um computador bom, e só podia comprar uma cópia bem mais cara de produtos já obsoletos.

No lado comercial, além da Cobra (estatal) surgiram Edisa, SID, Itautec, Sisco e mais algumas, que além de micros ofereciam minis. Os minis eram multi-usuário, ou seja, computadores mais complexos que executavam várias tarefas ao mesmo tempo. Até onde minha memória alcança, o único mini desenvolvido no Brasil era o da Cobra (a linha 500), que havia surgido de um projeto dentro da USP. Os demais eram projetos comprados de empresas estrangeiras.

Havia toda uma mitologia sobre “domínio tecnológico”, que dizia que projetar um computador era algo misterioso, uma espécie de bruxaria secreta que os malvados governos dos países ricos escondiam para dominar o mundo. Tudo lorota. A tal tecnologia era algo trivial, e as informações necessárias estavam nos manuais que os fabricantes de chips distribuíam de graça. Assim como um engenheiro civil tem a obrigação de saber construir um prédio, e um engenheiro mecânico tem a obrigação de saber construir uma máquina, qualquer faculdade que ofereça um curso de engenharia da computação, ou similar, tem a obrigação de formar engenheiros capazes de projetar um micro-computador do porte de um PC.

Para dar um exemplo prático: a Cobra lançou em 1984 um micro chamado Cobra 210, baseado no microprocessador Z80. O Z80 foi lançado em 1976, e já era tecnologia velha, bem como os disquetes de 8″ que a Cobra usava. Nos EUA, um sistema semelhante ao Cobra 210 podia ser comprado por menos de dois mil dólares. O 210, orgulho da indústria nacional, custava oito mil.

Em 1985 o Brasil mudou de um presidente militar (Figueiredo) para um civil (Sarney), e a política de reserva de mercado começou a sofrer pressões. Acontece que os brasileiros estavam cansados de pagar caro por produtos obsoletos. As indústrias do setor, que já se beneficiavam do mercado fechado há anos sem desenvolver nada de novo, disseram que precisavam comprar tecnologia de fora novamente. A desculpa era que os minis haviam virado superminis, e era preciso “absorver” esta nova tecnologia. Obviamente, não havia “nova tecnologia” nenhuma, havia simplesmente a evolução tecnológica, que é incessante, mas o governo fingiu acreditar que um “supermini” era uma coisa completamente nova, e ajeitou a reserva para que o grupinho de empresas pudesse novamente bancar os intermediários, e os consumidores fossem novamente obrigados a pagar o triplo do preço por computadores estrangeiros obsoletos que tinham os parafusos apertados aqui. Nos anos seguintes, a história se repetia, com as empresas sempre arranjando novas desculpas para importar “só mais um pouquinho”.

Ironicamente, o único setor em que surgiu uma legítima tecnologia nacional não precisava de reserva: o setor bancário. Como o sistema financeiro brasileiro tem muitas particularidades, a tecnologia estrangeira não atendia aos bancos daqui, que então criaram empresas que, não tendo de quem copiar, desenvolveram produtos próprios. Os líderes deste setor eram Bradesco e Itaú.

O resultado final: A Cobra sumiu. As empresas mais ligadas aos grandes bancos viraram uma espécie de “departamento de informática” dos mesmos. As dúzias de fabricantes de micros “compatíveis” desapareceram sem deixar saudade. O dinheiro que os consumidores pagaram durante duas décadas para “consolidar” a indústria nacional sumiu. A indústria nacional de informática, no sentido pretendido pelo governo, nunca chegou a existir. Nunca tivemos um único produto que pudesse concorrer com os produtos estrangeiros, seja em nível tecnológico, seja em preço, seja em qualidade. Ainda hoje, temos empresas “apertadoras de parafusos” que fabricam produtos supostamente nacionais, e ganham regalias fiscais por isso.

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