MARCELO BERTOLUCI - DANDO PITACOS

Pensando bem, até que demorou. Nossos excelentíssimos congressistas voltaram a colocar na lei que empresas aéreas devem transportar bagagem de graça, seguindo o exemplo de Rússia e Venezuela. Explicar que “de graça” significa, na verdade, “embutido no preço”, seria inútil: o congresso está refletindo com precisão o pensamento do brasileiro médio. Quem quiser outro exemplo pode ver o caso dos telefones da Apple e Samsung que eram vendidos sem o carregador incluído, quer dizer, “grátis”.

Destes dois casos podem-se observar três coisas:

– Décadas ou séculos de doutrinação eliminaram a capacidade de raciocínio econômico de boa parte da população. Basta ver a repercussão do caso da “bagagem grátis” para constatar que a maioria que está comemorando não está dizendo que prefere ter o custo da bagagem incluído no preço: eles realmente são incapazes de compreender este conceito. Eles realmente acreditam que o governo pode fazer que algo seja grátis simplesmente escrevendo isso em um papel e chamando de “lei”. Eles realmente acreditam que o governo pode fazer coisas surgirem do nada. Muitas dessas pessoas estão nas escolas ensinando (ou doutrinando) as crianças a pensar da mesma forma.

– A desorganização do funcionamento do estado brasileiro acaba sempre cobrando seu preço, nem que seja através de detalhes burocráticos. Embora todos falem muito nos poderes “independentes e harmônicos”, na prática os três (quatro se contarmos o ministério público, que também age como um poder) tentam ser tudo: todos querem legislar, querem governar e querem julgar. No caso específico: o executivo quis implantar uma série de alterações na legislação do setor aéreo. Poderia (e deveria, na minha opinião) ter enviado um projeto de lei ao congresso, mas preferiu editar uma medida provisória, que deveria ser um instrumento para situações excepcionais, mas é usado rotineiramente pelo executivo para legislar. O congresso “enxertou” o assunto da bagagem na MP. Ocorre que quando o congresso altera uma MP, o presidente não pode vetar artigos específicos como nas leis comuns: só pode vetar tudo ou sancionar tudo. Se sancionar, volta a bagagem de graça para mais uma vez irmos na contramão do mundo. Se vetar, todas as boas intenções do projeto original vão para o lixo.

– O caso dos carregadores de celular conseguiu mais uma vez ultrapassar as barreiras do absurdo. Sobre o mérito da questão, é só lembrar que em toda a Europa nenhum celular é vendido com carregador. Se a pessoa quer um celular, ela compra um celular. Se ela quer um carregador, ela compra um carregador. Ninguém acredita em coisas grátis, e todos acham interessante reduzir o desperdício. Já por aqui, os órgãos de defesa do consumidor acharam que as fábricas estão “lucrando” ao não vender os dois juntos, e fizeram um verdadeiro carnaval sobre o assunto. Mas quando eu achava que não dava para ficar mais ridículo, surge a notícia de que o ministério da justiça “orientou” todos os PROCONs do país a abrirem processos administrativos contra a Apple e a Samsung. Sim, o ministério não quer uma ação nacional, nem uma ação em conjunto: ele quer mais de 900 processos separados sobre a mesma coisa. Explicação? Talvez a única plausível seja a que se intui da notícia de onde tirei a informação: “se metade dos PROCONs do país multasse em dez milhões as duas empresas, o fundo de recursos do PROCON receberia nada menos que nove bilhões”. Eu entendi que o governo quer simplesmente arrecadar o máximo possível, já que os funcionários que vão fazer 900 vezes a mesma coisa são pagos pelo contribuinte. O que o consumidor ganha? Nada. Nem um centavo das multas vai para o consumidor, fica tudo para o PROCON. O que o consumidor pode “ganhar” é um aumento no preço dos telefones para cobrir o prejuízo, já que a Apple e a Samsung ainda são livres para definir o preço dos seus produtos. Resta esperar que nenhum gênio resolva criar a Applebrás e a Samsungbrás para fornecer celulares “públicos, gratuitos e de qualidade” para nós.

4 pensou em “O PAÍS DA BAGAGEM GRÁTIS

  1. Bom dia, Marcelo.
    Já postei sobre isto no Twitter: “Na verdade é a derrota do consumidor. Não existe bagagem grátis. No final ela entra nos cálculos dos custos da cia. aérea e o consumidor que viaja sem bagagem termina subsidiando o que viaja com bagagem”.
    Ademais, é um incentivo para que as pessoas levem coisas desnecessárias na viagem.
    Anteriormente havia feito também uma analogia: pense em um míssil com uma carga de 23 kg. Ele tem que elevar essa carga a 10 mil metros de altitude e transportá-la por (suponhamos) 1 mil quilômetros de distância. Quanto combustível seria necessário para transportá-la?

    • Bom dia, Osnaldo.
      É isso mesmo. Se não me engano, li algo como “cada kg de carga a mais exige mais 0,3 kg de combustível por hora de vôo”.
      E o maior problema será para as cidades pequenas que a Azul atende com os ATR-72: simplesmente não há espaço para tanta bagagem.

  2. Outra notícia na mesma linha: a Secretaria Nacional de Defesa do Consumidor (SENACON) multou a empresa aérea IBERIA em 1,3 milhões.

    Em dezembro, um erro de digitação colocou na internet um anúncio de passagem aérea Rio-Paris por 180 dólares, ao invés do valor correto 1180 dólares.

    O anúncio foi retirado três horas depois, mas quase 4000 pessoas compraram a passagem neste intervalo. As compras foram canceladas três dias depois.

    A SENACON fez a tradicional “recitação” de artigos do Código de Defesa do Consumidor, não faltando o indefectível “respeito à dignidade”.

    Quando eu era criança e meus pais me ensinavam a importância de ser honesto, uma das lições é que não é correto se aproveitar do erro dos outros para levar vantagem. Parece que hoje a opinião oficial é diferente. (lembrando que, como no outro caso, os consumidores supostamente “lesados” não ganham nada com essa decisão. O dinheiro da multa fica para a SENACON)

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