VIOLANTE PIMENTEL - CENAS DO CAMINHO

Péricles Maranhão, criador d’O Amigo da Onça

Às vezes, acontece da criatura superar o seu criador. Essa premissa é muito verdadeira e não é raro acontecer na vida real. Muitas vezes, o aluno é tão brilhante e inteligente, que ofusca o Mestre.

Péricles de Andrade Maranhão nasceu no bairro do Espinheiro, no Recife (PE), no dia 14/08/1924; estudou no Colégio Marista e fez sua primeira charge para o Diário de Pernambuco.

Foi um adolescente desenhista, daqueles com talento de enlouquecer qualquer professor. Ainda muito jovem, durante a fase áurea dos quadrinhos, várias vezes imitou os traços de Dick Tracy, Agente Secreto X-9 e Flash Gordon.

Em Recife, Péricles tomou conhecimento do concurso para a “Semana do Trânsito”, organizado pelo escritor Souza Barros. Resolveu concorrer, enfrentando alguns “cobras” do pincel, como Lula Cardoso Ayres, Manoel Bandeira (o pintor) e Eros Gonçalves. Ganhou o prêmio e a simpatia de Souza Barros, que lhe encomendou uma história em quadrinhos, sobre problema de trânsito.

Mas, o sonho de Péricles era ir para o Rio de Janeiro, a “cidade grande”, sonho da maior parte dos artistas da época.

Souza Barros deu-lhe duas apresentações para amigos do Rio de Janeiro. Mas foi uma terceira, de Aníbal Fernandes – então diretor do Diário de Pernambuco – endereçada a Leão Gondim de Oliveira, diretor de “O CRUZEIRO“, que o colocou nessa famosa revista.

Péricles começou a trabalhar como desenhista, em “O Cruzeiro“, em 6 de junho de 1942, então com 17 anos de idade. Era o mais jovem artista da grande revista.
Nesse mesmo ano, lançou em “O Guri” e num rodapé do carioca “Diário da Noite”, seu personagem “Oliveira, o Trapalhão”; para a revista “A Cigarra“, desenhou “Cenas Cariocas”, “Miriato, o Gostosão” e, ainda, o próprio “Oliveira”.
Foi quando a direção da revista “O CRUZEIRO“, que atravessava uma fase áurea, com suas reportagens empolgando o Brasil, resolveu criar um tipo humorístico só para si. O tipo, entretanto, deveria conter toda a verve do carioca. Seu criador teria que captar o estado de espírito daquele que vive no Rio de Janeiro, sem importar onde tivesse nascido.

Péricles aceitou o desafio. Depois de alguns esboços, apresentou o desenho definitivo. Ali estava o “sujeitinho irreverente”, que haveria de divertir o Brasil por muitos anos. Só faltava mesmo batizá-lo.

O nome “O AMIGO DA ONÇA” foi sugestão do então diretor da revista “O CRUZEIRO”, Leão Gondim de Oliveira, inspirado numa anedota brasileira, que diz assim:

“-Dois caçadores conversavam:

-O que faria você se estivesse na selva e uma onça aparecesse na sua frente?

-Dava um tiro nela.

-E se você não tivesse uma arma de fogo?

-Tentava furá-la com o meu facão.

-E se você não tivesse um facão?

-Apanhava qualquer coisa, como um pedaço de pau pra me defender.

-E se não tivesse um pedaço de pau por perto?

-Procuraria subir na árvore mais próxima.

-E se não tivesse nenhuma árvore no lugar?

-Sairia correndo.

-E se você estivesse paralisado pelo medo?

Aí, o outro, já aborrecido, retruca:

-Afinal, você é meu amigo, ou amigo da onça?”

Primeira charge do Amigo da Onça

Baseando-se nessa anedota, o diretor Leão Gondim de Oliveira sugeriu a Péricles o nome de “O Amigo da Onça”, para o personagem que ele havia criado recentemente. O nome foi aceito e o batizado ocorreu no dia 23 de outubro de 1943, data, também, da estreia do personagem em “O Cruzeiro“.

Com “O Amigo da Onça”, Péricles ficou famoso. Logo depois, foi feita uma pesquisa de opinião pública, para saber qual era a seção mais lida em “O CRUZEIRO”, e “O Amigo da Onça” venceu, com louvor.

Aos 20 anos de idade, Péricles já atravessava sua melhor fase artística. Mas, no seu entender, seu personagem ofuscava sua glória, e ele ouvia sempre este tipo de diálogo:

“- Este é o Péricles.

– Quem?

– Péricles, o criador de “O Amigo da Onça”.

E todos queriam parabenizá-lo, pela fabulosa criação.

Nem todos conheciam Péricles, mas todos conheciam “O Amigo da Onça”. Isso o incomodava.

Péricles sabia fazer amigos. Trazia sempre no rosto um sorriso franco e dava provas de bom caráter. Entretanto, dentro da aparente extroversão, escondia uma terrível timidez. A timidez do menino pobre do Recife, que vencera no Rio de Janeiro, aspiração sonhada por todos os artistas, e alcançada por poucos. Silenciosamente, Péricles era consumido pela depressão, que já era a doença do século, um monstro que age em silêncio.

Durante 18 anos ininterruptos, “O Amigo da Onça” fez gozação com todos os tipos de pessoas, inclusive com o leitor. Dessa forma, certo dia, quando o leitor abriu sua página preferida em “O CRUZEIRO”, encontrou o homenzinho sobre fundo branco, dizendo “Hoje não tem piada.”

Péricles estava morto. Suicidou-se na passagem do ano de 1961 para 1962, abrindo o gás, sozinho em seu apartamento. Morreu de solidão e tristeza, doenças da alma, muitas vezes disfarçadas em sorrisos e alegria forçados.

As dores da alma são piores do que as dores do corpo e matam na surdina.

João Martins, amigo de Péricles, escreveu:

“O Amigo da Onça” satirizou costumes e situações, lançou tipos e expressões populares, criou tal personalidade que se incorporou, como uma pessoa real, à realidade de cada dia em todos os quadrantes do nosso território.”

Sobre Péricles, escreveu o poeta Carlos Drummond de Andrade: “A solidão do caricaturista seria talvez reação contra a personagem, que o perseguia, que lhe era necessária e que lhe travara os meios de comunicar-se e comungar com outros seres”.

Por sua vez, escreveu o jornalista e escritor Glauco Carneiro:

“O Amigo da Onça” persiste na memória como uma catarse coletiva, que, semanalmente, prestava seu auxílio terapêutico a milhões de habitantes das grandes cidades, agradecidos pela oportunidade de projetar muitos momentos sarcásticos e ferinos de suas vidas estressadas.”

Em sentido figurado, o criador foi vítima de sua criatura, que, ao mesmo tempo, era seu melhor amigo.

Nós, pobres seres viventes, não somos capazes de penetrar nos mistérios da vida. Como pode haver, ao mesmo tempo, tanta gloria e tanto desatino?!!!

Apoiado no vidro de nanquim, em cima da prancheta de caricaturista, que o olha boquiaberto, o “Amigo” recusa-se a entrar no desenho incompleto: “Só conte comigo quando terminar a piada!…”

Depois da morte de Péricles, o “Amigo da Onça” passou a ser desenhado por Carlos Estêvão, sendo publicado até 1972.

12 pensou em “O CRIADOR E A CRIATURA

  1. Violante, você como sempre, leva este humilde admirador seu, das altas nuvens, ao mais negro abismo, ao misturar alegria, tristeza, riso e choro em um mesmo assunto. Belíssimo texto, acalma e tortura a alma deste ledor seu….

    • Obrigada pelo comentário gentil, prezado Roque Nunes!
      Suas palavras massagearam meu ego, e me deixaram feliz.
      É muito gratificante ter um amigo do seu nível: inteligente, culto, amável e distinto.
      Bom final de semana e um grande abraço!

    • Obrigada pela gentileza do comentário, prezado escritor José Domingos Brito!
      Fiquei feliz com as suas palavras!
      Grande abraço e um excelente final de semana!

  2. Fui transportado para o passado. Meu pai comprava O Cruzeiro e tinha um ciúme da gôta serena no folhear das paginas mas liberava pra nós, filhos, ver e ler. principalmente ver o Amigo da Onça. Valeu a lembrança!

    • Obrigada pelo comentário gentil, prezado nilson araujo!
      Fiquei feliz com suas palavras.
      Um passado feliz, a gente nunca esquece.
      “O Amigo da Onça” era impagável!!!
      As charges de Péricles marcaram época, e são inesquecíveis!.

      Bom final de semana!

  3. Cara Violante!

    É muito estranho esta história de o personagem engolir o criador.

    Angeli teve que matar a Rê Bordosa no auge, pois ela lhe tomava a personalidade.

    Já Laerte virou um personagem caricatura de si mesmo.

    Tem que ter muita terapia para lidar com isso.

  4. Obrigada pelo comentário, prezado João Francisco.

    Realmente, é estranho esta história de o personagem engolir o criador.
    Mas acontece.
    Freud deve explicar.
    Pesquisando a literatura de quadrinhos, encontramos os casos que você citou.
    Rê Bordosa é uma das personagens mais famosas de Angeli criada em 1983 para a revista do próprio cartunista.
    “morte da Rê Bordosa – Ocupação Angeli (2012) | Itaú Cultural
    A contragosto de muita gente, em dezembro de 1987 Angeli matou RÊ BORDOSA. Homicídio não, cirrose também não, aids tampouco. A porra-louca …”

    Laerte, chargista brasileira, considerada uma das artistas mais importantes da área no país, após a perda de um filho de 22 anos num acidente de carro, em 2005, abandonou vários personagens.

    Em entrevista à Folha de S.Paulo, em 2010, revelou por que abandonou alguns de seus personagens, começou a praticar crossdressing e a se identificar como transgênero. Nessa nova fase, participando de vários programas e matérias na mídia impressa e eletrônica. Já em 2012, tornou-se cofundadora de uma instituição voltada a pessoas com essa nuance de gênero, a ABRAT – Associação Brasileira de Transgêneros.

    O caso é sério. Conta a história, que Péricles passou a odiar “O Amigo da Onça.”
    São os mistérios da vida.

    Bom final de semana!

  5. Parabéns e obrigado, Violante!
    Personagem realmente marcante.
    Nasci em 1969 e é impressionante a longevidade: vi muito desses desenhos d’O amigo da Onça”. E olha que devo ter visto nas décadas de 80 e 90.
    Parabéns, mais uma vez!

    • Obrigada, prezado Nonato, pelo comentário gentil!
      Fiquei feliz com suas palavras.
      “O amigo da Onça” marcou época. Foi a criação mais importante de Péricles, o grande cartunista. Deu ainda mais vida à revista “O Cruzeiro”.

      Bom final de semana!

  6. Olha aí, Violante, você também é uma criadora. De saudades. Meu pai assinava “O Cruzeiro” e era a primeira página que eu abria, a do Amigo da Onça. Mas te agradeço sinceramente!

  7. Obrigada pelo gratificante comentário, prezado Flávio Feronato!
    Fiquei feliz com suas palavras. Uma “criadora de saudades” caiu em mim, como uma luva.
    “O Amigo da Onça” marcou época e ainda hoje é lembrado.
    Grande abraço!

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