MARCELO BERTOLUCI - DANDO PITACOS

Muitas pessoas estão acreditando que o mundo passa por um momento único em termos de saúde e doença, com a tal da COVID-19. Eu penso um pouco diferente. Estamos vivendo um momento importante da história, sim, mas não em termos de doença: epidemias sempre existiram e sempre vão existir (nos últimos cinquenta anos, tivemos Gripe de Hong-Kong, Gripe Aviária, Gripe Suína, H1N1, SARS, para ficar só nas doenças respiratórias). O que estamos vivendo é uma grande experiência mundial para mudar a referência que as pessoas comuns têm de conceitos como liberdade, governo, impostos, riqueza. Creio que no futuro os historiadores reconhecerão “o ano da pandemia” como um marco histórico tão importante quanto a Revolução Francesa no final do século 18 ou a I Guerra Mundial no início do século 20.

Qual é esta mudança tão importante? Basicamente, é fazer com que coisas que pareceriam absurdas antes sejam vistas como algo corriqueiro. Vejam, por exemplo, esta introdução de um decreto estadual do governo de Sergipe, de maio deste ano:

“Considerando que, em razão do Poder de Polícia, a Administração Pública pode condicionar e restringir o exercício de liberdades individuais e o uso, gozo e disposição da propriedade, com vistas a ajustá-los aos interesses coletivos e ao bem-estar social, em especial para garantir o direito à saúde…”

Note que isso não é um artigo acadêmico propondo ou opinando. É um ato do governo que coloca essa frase como um fato consumado, que serve de fundamento legal para as medidas tomadas pelo decreto. Até janeiro deste ano, qualquer pessoa sensata diria que o governo “restringir liberdades individuais” e ajustar o direito de propriedade a “interesses coletivos” é coisa de ditadura. Poucos meses depois, afirmações como essa aparecem por toda parte e os brasileiros estão não apenas achando normal, como pedindo mais. (E sempre é bom lembrar que “direito à saúde” é algo tão absurdo como “direito de não morrer”; se fosse verdade, bastaria que quem contraísse o vírus pedisse uma liminar na justiça determinando que o vírus fosse embora. O que existe, com o nome errado de “direito à saúde”, é o sistema em que o governo toma o dinheiro de todos para fingir que fornece tratamento médico de graça.)

Mas proibir pessoas de trabalhar, obrigá-las a ficar em casa ou a usar máscara no rosto mesmo que estejam caminhando em uma rua vazia são apenas efeitos colaterais, medidas de apoio, complementos à idéia principal, que como sempre é a economia:

Está em curso um agigantamento do estado que iniciará uma nova era econômica. O mundo não voltará a ser como foi até 2019.

Os efeitos econômicos das quarentenas e lockdowns ainda não estão sendo percebidos – afinal, estamos recém completando quatro meses desde o início de tudo. Mas os fatos já estão lançados. Destruição em massa de empresas e empregos; destruição da poupança de milhões de famílias; destruição do modo de vida de boa parte da população. A solução apresentada para tudo isso é a mesma: mais governo, mais governo, mais governo. Um governo enorme que vai fazer surgir dinheiro do nada. Um governo enorme que vai transformar pessoas que viviam de seu trabalho em pessoas que dependem de uma esmola estatal. Um governo enorme que vai “tomar dos ricos para dar aos pobres”, aquilo que os intelectuais chamam de “justiça social”.

Existem três formas de um governo fingir que dá coisas de graça para nós: aumentando impostos, fabricando dinheiro ou tomando dinheiro emprestado. Enquanto todos estão ocupados vendo o abre-e-fecha dos prefeitos e governadores, o Brasil está praticando os três com afinco:

– A criação de dinheiro pelo governo (chamada tecnicamente de expansão da base monetária) em maio foi a maior desde a criação do real em 1994.

– O déficit do governo, ou seja, a dívida, também vai de vento em popa. Cada brasileiro já nasce devendo vinte mil reais.

– A recriação da CPMF (com outro nome) de um dia para outro começou a ser falada como algo trivial, um mero “ajuste econômico” com a intenção declarada de estender o auxílio emergencial (apelidado “coronavoucher” por alguns).

Não pense, caro leitor, que isso tudo surgiu de uma hora para outra. São idéias que já são tratadas como consenso pelos amigos do governo faz muito tempo, e que estavam apenas aguardando a melhor oportunidade para sua implantação.

Por exemplo: alguém lembra do barulho que fizeram com o livro “O Capítal no século XXI”, do francês Thomas Piketty? O livro, um calhamaço de quase 800 páginas, recheado de dados e tabelas que supostamente provam que o capitalismo é ruim, injusto e perverso, foi recebido por todos os políticos e intelectuais progressistas como uma revelação divina, um digno sucessor da obra de Marx, com a qual, aliás, ele tenta acintosamente se associar através do título.

Os erros e a má-fé de Piketty merecem um longo artigo só para eles, mas vou colocar aqui apenas três pequenas citações para mostrar como o mundo “deles” já trata como fato consumado coisas que no “nosso” mundo ainda acreditamos não existir:

“Quando um governo tributa um determinado nível de renda ou de herança a uma alíquota de 70 ou 80%, o objetivo principal não é o de aumentar as receitas. O objetivo é abolir tais rendas e heranças vultosas, as quais são socialmente inaceitáveis e economicamente improdutivas…” (p. 505)

“Não é certo que indivíduos enriqueçam por meio do livre comércio e da integração econômica, obtendo lucros à custa de seus vizinhos.” (p. 522)

“Se alguém descobrir em seu quintal um grande tesouro, seria correto aprovar uma emenda constitucional para que esta riqueza seja redistribuída.” (p. 537)

Está escancarado: Enriquecer trabalhando é ruim. Tentar deixar um patrimônio para os próprios filhos é “socialmente inaceitável”. Riquezas devem ser tomadas pelo governo e “redistribuidas”. E não acredite que uma constituição serve para lhe dar “segurança jurídica”, pelo contrário: ela será usada para justificar a expropriação do patrimônio de qualquer um que seja vítima da cobiça do governo.

Estas idéias estão sendo, desde o século passado, disseminadas pelo meio acadêmico, pelos políticos, pelas cabeças pensantes da grande mídia, e enfiadas, gota a gota, na mente de todas as crianças que recebem educação estatal. Agora, governos de todo o mundo estão vendo o momento favorável para dar um grande passo adiante.

O futuro chegou.

14 pensou em “O COMEÇO DE UM NOVO TEMPO

  1. Com a síndrome da CPMF que ronda a cachola desse ainda presidente, vem a minha lembrança a frase de Margareth Thatcher que dizia: Não existe dinheiro público. Existe apenas dinheiro do pagador de impostos…

    • Senhor Altamir. Queria comentar na coluna do Sancho de hoje e não estou conseguindo. Dá mensagem de erro. O Berto censurou o Sancho?

  2. Esse ₢ pitaco ₢ merece um aforisma:

    “Eu vi o futuro, e vi o horror!” – Hel, Nikolai, o “Hades greco-fubânico”.

  3. O quinto dos infernos…Existem três formas de um governo fingir que dá coisas de graça para nós: aumentando impostos, fabricando dinheiro ou tomando dinheiro emprestado.
    Em todas elas o contribuinte morre no final, asfixiado por uma carga tributária cada vez mais “enforcante”.

    Durante o século 18, o Brasil Colônia pagava um alto tributo para seu colonizador, Portugal. Esse tributo incidia sobre tudo o que fosse produzido em nosso país e correspondia a 20% (ou seja, 1/5) da produção.
    Hoje a coisa está muito mais infernal, pois não!?

  4. Na verdade, a taxa de 20% era só sobre o ouro (e eventualmente prata). Os demais produtos pagavam 10%.

    Hoje nossa carga tributária está perto dos 40%, com o agravante da enorme burocracia envolvida. As empresas não só pagam um baita imposto, como gastam um dinheirão para calcular quanto devem pagar e para preencher a papelada.

  5. Antes de postar o comentário anterior, botei no google “impostos no brasil colônia” para conferir se a memória não me traía.

    O google me deu uma página de um tal de CESAD, feito por uma universidade federal. Me pareceu material didático para uso no primeiro grau. O negócio começa assim:

    “Nesta aula será apresentado as ações desenvolvidas pelo fisco português
    no Brasil Colônia e Império onde veremos que a opressão tributária que
    vivemos hoje, é uma herança do nosso passado.”

    Começa com errando a concordância de gênero e de número de uma vez só. Termina separando sujeito de predicado com vírgula. Pessoal da área, nossas universidades estão nesse nível?

  6. Marcelo
    ” Até janeiro deste ano, qualquer pessoa sensata diria que o governo “restringir liberdades individuais” e ajustar o direito de propriedade a “interesses coletivos” é coisa de ditadura.Poucos meses depois, afirmações como essa aparecem por toda parte e os brasileiros estão não apenas achando normal, como pedindo mais. ”

    Este apoio irrestrito não é feito por ” jornalistas ” com menos de 40 anos e todos ” educados ” por anos de petismo ?
    O outro ramo que o apoia é o grupo de políticos envolvidos em corrupção , junto com um grupo de advogados que defendem bandidos da mais variada gama .

    • Airton, infelizmente não é só isso. Vejo a toda hora gente aplaudindo os prefeitos que mandam a polícia fechar lojas ou prender pessoas que andavam por uma praça deserta.

      O medo da pandemia, que nunca saberemos até que ponto é real ou fabricado pela dupla governo/mídia transformou muitos adultos em crianças assustadas, que aceitam qualquer coisa que um político faça, desde que ele jure que é para o bem de todos.

  7. A questão do imposto não é a quantidade, que incomoda bastante, é a qualidade. O estado poderia arrecadar de forma mais eficiente. Por exemplo: sou funcionário público e recebo um salário no qual o governo vai tirar imposto. Então, porque não negociar direto comigo uma renda líquida? Pra processar isso quantas pessoas são necessárias? No debate do tamanho do estado resolvi escrever um livro e estou escrevendo um capítulo sobre isso. Fico rindo com essa análise que se faz olhando apenas uma face. Um colega sugeriu um livro O Brasil privatizado I e II. Quando Márcio Pochmann defende as ideias, significa que você deve olhar na outra direção.
    Em 2018 eu pedi a aluno que estudasse o equilíbrio do modelo do cara, usando equações diferenciais ou de diferenças finitas. Nunca mais mexi nisso. No modelo de marx, Mario Henrique Simonsen colocou isso como uma questão no livro Dinâmica Macroeconômica

    • São duas questões, Maurício.

      A primeira é: “Se o governo precisa de X milhões, qual a melhor forma de arrecadar X?” Essa questão pode (e deve) ser analisada com ferramentas matemáticas.

      A segunda é “Por que o governo precisa de X milhões, e não X/2 ou X/3?” Aí fica mais difícil, porque para muitos esta questão está no campo dos dogmas, não da ciência.

      Quando acontecem coisas como o covid, a maioria corre para pedir um estado grande achando que vai sair no lucro.

      Como disse Bastiat, “o estado é a ficção pela qual todos acreditam que podem viver às custas dos outros”.

      • O governo precisa de X milhões porque os políticos em geral , os jornalistas , os militantes acham que se deva aplicar Y% do X na educação , depois mais um percentual na saúde , depois mais outro ´percentual na segurança e quando se soma tudo sobra Zero para investimentos . Os descritos acima gostam de engessar todo e qualquer orçamento e depois pedem que o governo gaste , não interessa como – não foi isso que deputados do PT , do PSOL exigiam que Weintraub fizesse com o dinheiro recebido dos USA por causa do roubo da Petrobras –

      • A segunda eu acho mais fácil. Se houvesse controle da despesa, seria mais simples. O problema é que os caras detonam nis gastos e estimam um receita que não chega nunca. Ou seja, fixa despesa com base na receita. Aqui é o contrário. Meu caro, com a universidade fechada não tem como pegar livro. Se tiveres esse, manda por e-mail que eu quero retomar questão do equilíbrio. Abraços

  8. É desanimador saber que mais de 40% do salário de um trabalhador vira impostos – contribuição previdenciária, Imposto de Renda, impostos patrimoniais e tributos embutidos..
    .
    Conforme a metodologia do Instituto Brasileiro de Planejamento e Tributação (IBPT), 43,27% de tudo que o trabalhador ganha e gasta (e gera impostos) é destinado a engordar as contas públicas.
    O que sobra para investimentos é menos de 3% do que o Estado tem para gastar (com os provedores de impostos).

    A arrecadação tributária, PIB, inebria e fascinam os nossos políticos “principais acionistas” da arrecadação – se autodeterminam preferenciais e ordinárias – cujos dividendos são distribuidos e categorizados em desperdício, corrupção e privilégios do setor público. Esta roda viva se retroalimenta infinitamente em seus universos.
    Até quando???

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