VIOLANTE PIMENTEL - CENAS DO CAMINHO

Morava em Nova Cruz (RN) um rapaz de nome José Teixeira, filho de uma viúva, pertencente a uma ramificação de tradicional família daquela cidade.

Dizem que, desde criança, sempre demonstrou tendência feminina nos gestos, preferindo os brinquedos das meninas e desprezando carrinhos e bolas com que os meninos brincavam. Cresceu assim, e, dessa forma, tornou-se rapaz, passando a se dedicar às prendas domésticas.

Revelou-se um verdadeiro artista, aprendendo a bordar, pintar, confeccionar flores e chapéus femininos ornamentados.

Com o passar do tempo, José Teixeira dedicou-se completamente à decoração de ambientes e preparação de festas, difundindo cada vez mais suas habilidades artísticas. Com elas, passou a ganhar dinheiro, ajudando no sustento da mãe, viúva pobre, e suas duas irmãs.

Era religioso, educado, e sabia respeitar as pessoas, sendo por isso também respeitado. Nenhuma festa acontecia na cidade, sem que estivessem presentes a sua arte e o seu bom gosto. O preparo de altares na Matriz da Imaculada Conceição, Padroeira da cidade, os andores para as procissões, festas de casamento, aniversários, enfim, quaisquer acontecimentos festivos contavam com a sua indispensável participação.

Tornou-se o decorador oficial da cidade, nos eventos públicos ou privados, inclusive nas festas religiosas do final do ano, onde havia uma Quermesse para angariar fundos para a Igreja.

Eram frequentes os jantares, os saraus, os bailes, as procissões e novenas, como manifestações da realidade artística, religiosa e social da cidade. Em tudo, estava a presença marcante desse filho de Nova-Cruz.

Merece destaque, o fato de José Teixeira nunca ter escondido sua tendência feminina, mantendo, entretanto, uma conduta discreta e digna. Vivia para o trabalho, e nunca se meteu em fofocas. Seu excelente círculo de amizade incluía moças, senhoras casadas, senhores e rapazes. Até o Padre da Paróquia de Nova-Cruz lhe fazia elogios publicamente, em agradecimento pelo seu trabalho de embelezador e colaborador das festas e procissões.

Nessa época remota, o distúrbio genético apresentado por José Teixeira era raro, e a cidade que o viu nascer o aceitava como era.

Sua presença tornou-se indispensável nas festas de aniversários, casamentos e bailes. Também ocupava lugar de honra na vida familiar da cidade, sendo sempre convidado para almoços e jantares, e ainda para padrinho de crianças. Tornou-se amigo e confidente de todos.

A cidade se desenvolveu e passou a ter mais festas, aumentando também o prestígio de José Teixeira. Era um verdadeiro “patrimônio” artístico de Nova-Cruz.

Surgiu o primeiro bloco de carnaval da cidade, tendo José Teixeira como organizador, decorador e figurinista. Esse bloco saía às ruas de Nova-Cruz no tríduo carnavalesco, “assaltando” as residências de pessoas da cidade, onde era recebido com bebidas e salgadinhos, à vontade.

As calçadas e ruas transformavam-se em salões de festa e a alegria era imensa.

O nosso Tio Paulo, uma figura inesquecível, era um dos maiores incentivadores do bloco, e o “assalto” à sua casa era indispensável! Irmão do nosso pai, Francisco, as casas eram vizinhas, e o “assalto” era aproveitado por nós, ainda crianças. Dançávamos no meio da rua, jogando confetes e serpentinas, presenteadas por ele, num clima de felicidade sem igual.

Tio Paulo distribuía lança-perfumes para os seus amigos, compradas em Natal, que eram usadas para perfumar o cangote das moças. E o cheiro se espalhava pelo ar. Não havia porre, loló nem brigas. O carnaval era só alegria e higiene mental.

O Rei Momo e a Rainha do Carnaval eram eleitos, uma semana antes, por uma comissão apontada por José Teixeira, da qual fazia parte.

José Teixeira confeccionava a alegoria, porta-estandartes e as fantasias para o carnaval.

Pierrôs, Colombinas, Arlequins, Odaliscas (vem Odalisca do meu harém vem, vem vem… ) e Piratas eram as principais fantasias.

A tarde entrava pela noite, com trombones, tamborins e outros instrumentos, executando os mais belos e tradicionais frevos e marchinhas de carnaval. A cidade era calma e o povo todo era conhecido.

Não havia o carnaval sensual/sexual de hoje, e os seios e nádegas eram guardados com recato.

As marchinha e frevos não tinham maldade. Tinham beleza e poesia.

Podemos dizer que, em Nova-Cruz, foi José Teixeira quem inventou o carnaval, o bloco, a alegoria e o estandarte, quando a maldade não tinha nascido.

Assim era José Teixeira. Totalmente feminino, amado, respeitado, e aceito por todos, sem sofrer exclusão pelo seu modo involuntário de ser.
Para mim, ele era um Anjo. E Anjo não tem sexo…

Hoje, desapareceu a pureza. Os Pierrôs, Colombinas, Arlequins, Odaliscas e Piratas se desnudaram. Restaram expostos, em abundância, seios, nádegas e tatuagens.

A modernidade nos deixou apenas o direito de nos fantasiarmos de PALHAÇOS!!!Palhaços das nossas ilusões!

Decepcionados, abafamos no peito a saudade dos velhos carnavais.

O cheiro de lança-perfumes sumiu! Roubaram as fantasias do nosso povo!

Roubaram o sorriso de felicidade, que existia nos rostos nos dias de carnaval.

Ó, abre alas, que eu quero passar!

14 pensou em “O ANJO

  1. Belo relato, Dama Violante.

    O talento de José Teixeira suplantou qualquer tentativa de discriminação. Fantástico!

    A marchinha do pernambucano Nelson Ferreira – Evocação Nº 1, já trazia em sua letra:
    “cadê teus blocos famosos… dos carnavais saudosos… (https://www.letras.com.br/marchinhas-de-carnaval/evocacao-no-1)

    Tenho um amigo/cliente que, no carnaval, aluga a casa dele em Olinda e vai para a casa de praia, longe do agito. São 15 turistas de Santa Catarina e Paraná, pagando 3.500, cada, à vista, que rende R$ 52.500,00. É como se fosse um salário de R$ 4.375,00 por mês/ano. Isto ocorre há mais de 4 décadas.

    A festa momesca virou negócio muito lucrativo com o passar dos anos. Só em 2019 o carnaval movimentou cerca de 6,78 bilhões de reais na economia do país em contratações de bens e serviços.

    A modernidade, tem o dinheiro como guia. Hoje, ele e quem abre alas, ele é quem deixa passar!

    Forte abraço!

  2. Violante, quem como nos teve a sorte de ver os velhos carnavais, ,hoje , parece que a alegria e os folguedos se acabaram, o Rodouro já não existe e a nossa juventude se esvaiu nas brumas do tempo, mas, ainda bem que a vida nos deixou as lembranças e a saudade. Obrigado por mais essa linda crónica. Um abraço

    • Obrigada pelo comentário gentil, prezado Paulo Terracota!

      Ainda bem que tivemos a sorte de conhecer a beleza dos antigos carnavais.
      O cheiro do lança-perfume é inesquecível. Usado como arma de conquista nos amores de carnaval, fazia parte do romantismo dessa festa maravilhosa. Era usado também para “porres” , o que culminou com a sua proibição (Decreto nº 51.211, de 18 de agosto de 1961).

      Do carnaval antigo, só nos restam os sonhos e a saudade matadeira.

      Grande abraço, e uma ótima semana!

  3. Obrigada pelo gratificante comentário, prezado Marcos André!

    José Teixeira deve ter sido um predestinado. Veio com a missão de fazer o bem a Nova-Cruz, sua terra natal.
    Era totalmente feminino, amado, respeitado, e aceito por todos, sem sofrer exclusão pelo seu modo involuntário de ser.
    Contribuiu muito para o desenvolvimento da vida social da cidade.

    Realmente, hoje, “quem abre alas e deixa passar é o dinheiro”.

    Grande abraço e uma ótima semana!

    • Obrigada pelo doce comentário, Jesus de Ritinha de Miúdo! Você acertou em cheio! Esse texto saiu do meu coração, ditado pela saudade dos tempos idos e vividos.

      Grande abraço, amigo.

      Uma ótima quarta-feira de Cinzas, início da Quaresma!

  4. O negócio hoje tá brabo. O cabra efeminado não existe mais. Agora é trans. Pra se ter uma idéia, um casal entrou na justiça contra uma maternidade porque no lugar do nome da mãe escreveram o nome do pai, mas quem pariu foi o pai, que é mãe. O pai é um uma mulher que virou homem e a mãe é um homem que virou mulher. Se deixasse tudo no lugar não daria certo?

    • Obrigada pela gentileza do comentário, prezado Assuero!
      Concordo com você. O negócio, hoje, tá brabo mesmo. Igual ao “Samba do Crioulo Doido”, de Stanislaw Ponte Preta (Sérgio Porto).
      O homossexualismo deixou de ser deficiência hormonal, pra ser opção.
      Sou do tempo antigo e não consigo aceitar essa modernidade…Engulo como comprimido …rsrs

      Um abraço e uma feliz semana, iniciando a Quaresma!

  5. Violante,

    A crônica faz um retrospecto dos carnavais antigos, além de homenagear um talentoso artista de sua cidade natal. Aproveito para fazer uma consideração sobre a história do carnaval.
    O Carnaval foi trazido ao Brasil pelos colonizadores portugueses entre os séculos XVI e XVII, manifestando-se inicialmente por meio do entrudo, uma brincadeira popular. Com o passar do tempo, o Carnaval foi adquirindo outras formas de se manifestar, como o baile de máscaras. O surgimento das sociedades carnavalescas contribuiu para a popularização da festa entre as camadas pobres.
    A partir do século XX, a popularização da festa contribuiu para o surgimento do samba, estilo musical muito influenciado pela cultura africana, e do desfile das escolas de samba, evento que acabou sendo oficializado com apoio governamental. Nesse período, o Carnaval assumiu a sua posição de maior festa popular do Brasil.

    Saudações fraternas,

    Aristeu

    • Obrigada pelo comentário gentil, prezado Aristeu!

      O Carnaval, a festa popular mais bonita do Brasil, passou de evento religioso a uma festa profana. O progresso tecnológico trouxe a televisão, e a globalização divulgou a nudez das mulatas, dando lugar às bebidas e às drogas.
      Hoje, o Carnaval é uma festa violenta, que gera medo e faz com que boa parte da população brasileira procure assistir aos desfiles das Escolas-de-Samba na televisão, em casa mesmo.
      Com relação à inspiração que o Carnaval trouxe aos poetas e compositores, nada mais bonito do que a obra-prima de Chiquinha Gonzaga, a marcha-rancho “Ó Abre-Alas”, composta em 1899. Foi a primeira marchinha de carnaval da história.
      A canção foi feita para o Cordão carnavalesco “Rosa de Ouro”, citado na letra.

      Na época, Chiquinha Gonzaga morava no Andaraí, e já era compositora consagrada, quando integrantes desse Cordão a procuraram, com o pedido de um “hino” para as folias momescas daquele ano. Apesar de sua posição, não recusou o pleito, o que resultou na vitória do “Cordão Rosa de Ouro”, no carnaval.
      Entre os anos de 1901 e 1910,

      “Ó Abre-Alas” foi grande sucesso nos carnavais, tornando-se símbolo do carnaval carioca.

      Grande abraço e uma ótima semana, início da Quaresma.

      Violante

  6. Donde se encontra na poeira das estrelas, querida cronista Violante Pimentel, José Teixeira está se contorcendo de saudade do carnaval que ele deixou quando se encantou e foi viver em outras Galáxias.

    Belíssimo retrato do carnaval de uma época que não existe mais. Está apenas nas nossas lembranças saudáveis de meninos inocentes se divertindo com a Inocência da Época.

    Valeu a crônica querida Violante. Velhas e boas lembranças que não voltam mais.

    Fraternais saudações e ótimo final de semana para toda família.

    • Obrigada pelo carinhoso comentário, querido cronista Cícero Tavares!

      José Teixeira é uma figura inesquecível! Com certeza, no lugar sublime onde se encontra, ele se emociona com as lembranças dos antigos carnavais em Nova-Cruz.
      Ele não alcançou a modernidade, onde o carnaval sofreu uma grande metamorfose, passando de folguedo popular de entretenimento a uma festa, onde predominam a nudez e as drogas, dando margem à proliferação da violência.

      Os antigos carnavais existirão sempre na nossa saudade!

      Um grande abraço e um feliz fim de semana!

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