MARCELO BERTOLUCI - DANDO PITACOS

Tudo começa com a idéia de que um grupo de políticos deve ter o poder de decidir o quê cada pessoa pode ou não fazer, e como deve fazer, e onde deve fazer. No mundo das intenções, os políticos são seres iluminados, de infinita sabedoria e que só querem o bem de todos. Na prática, todo mundo descobre que os políticos são apenas humanos como nós, e que sua posição não incentiva o bom comportamento: os políticos tem muito poder e pouca chance de serem responsabilizados pelos seus atos.

Em países com governos menos intrometidos, a iniciativa privada costuma criar bairros planejados para a classe alta, quase sempre afastados do centro. Em inglês, são os chamados “suburbs”. Já as classes menos favorecidas preferem morar perto do trabalho, ou seja, perto do centro.

Nosso país, como sempre, é o país do contrário. Aqui os políticos decidem como deve ser cada bairro da cidade: aqui moram os ricos, ali adiante a classe média, deste lado o comércio, etc. Especial cuidado é dedicado aos chamados “bairros nobres”: todos os cuidados são tomados para garantir que tais bairros sejam lugares agradáveis e valorizados: comércio e atividades menos nobres são proibidos, regulamentações inviabilizam moradias mais baratas, o trânsito é planejado para evitar ônibus e caminhões desagradáveis, etc. O “slogan” dos políticos para justificar tudo isso é “garantir a qualidade de vida da população”. Obviamente, qualidade de vida significa coisas muito diferentes para os ricos e para os pobres. Obviamente, também, estas regulamentações agradam em cheio tanto os felizes moradores de tais bairros, como as empresas que constroem e vendem os prédios e condomínios destes bairros.

Em geral, estes bairros circundam o centro, longe o bastante para se afastarem dos inconvenientes mas não tão longe que o deslocamento se torne cansativo. Com os preços propositalmente altos, resta aos mais pobres ir atrás do que sobrou: os bairros mais distantes, os menos apreciados, os de geografia mais inconveniente.

São muitas as consequências ruins, sendo a pior delas o chamado “movimento pendular”: enormes quantidades de pessoas se deslocam em conjunto, pela manhã em um sentido (casa-trabalho), no final da tarde no sentido inverso (trabalho-casa). A necessidade de atender a este contingente, às vezes de centenas de milhares de pessoas, exige uma infra-estrutura de transporte coletivo cara e complexa, muitas vezes agravada pela existência de um “cinturão” de bairros ricos que têm que ser atravessados no deslocamento entre a periferia e o centro, sem que este deslocamento perturbe a paz e a “qualidade de vida” dos tais bairros.

Fica assim estabelecido que a “qualidade de vida” dos pobres consiste em morar a dezenas de quilômetros de seus empregos, e passar três ou quatro horas por dia espremido em um ônibus. Mas há mais um problema: transportar milhares ou milhões de pessoas por dezenas de quilômetros é bem mais caro que transportá-las por três ou quatro, e isso faz com que seja considerado inviável que tal transporte seja pago por quem o usa. A prefeitura, então decide que o transporte público será subsidiado, ou seja, o prejuízo será pago por todos. Claro que em consequência, todo o transporte coletivo será controlado, regulamentado e planejado pela mesma prefeitura, ou seja, pelos políticos.

Assim, a prefeitura se torna refém de vários grupos: de um lado, quem pagou uma fortuna por um apartamento em “bairro nobre” não aceita que seu patrimônio seja desvalorizado, e exige que os privilégios destes bairros sejam mantidos. Além destes, as construtoras também pressionam para que as regras sobre o que pode e o que não pode ser feito em cada bairro atendam aos seus interesses. De outro lado, o transporte público subsidiado e regulamentado pela prefeitura será invariavelmente alvo da cobiça de muitos, e será muito difícil evitar que amigos, parentes e compadres dos políticos transformem o prejuízo público em lucro privado. Na prática, em todas nossas grandes cidades hoje, o poder de construtoras e empresários de ônibus varia entre grande e absoluto. Resta aos prefeitos fingir que bicicletas e patinetes podem resolver alguma coisa.

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