VIOLANTE PIMENTEL - CENAS DO CAMINHO

Em 1962, o documentário italiano Mondo cane (Mundo Cão) foi lançado em Cannes e virou uma febre internacional, por inaugurar um novo gênero de narrativa. Parecido com documentário de ficção, e representando temas e cenas sensacionalistas, esse filme popularizou a expressão “mundo cão“.

É um documentário sobre coisas bizarras do mundo inteiro, e o primeiro “blockbuster”, palavra de origem inglesa, que indica um filme (ou outra expressão artística) produzido de forma exímia, sendo popular para muitas pessoas .do gênero na História. A partir de então, surgiram outros documentários chocantes mostrando coisas absurdas.

O cineasta Marcos Jorge, autor de Mundo Cão, traduziu a epígrafe desse documentário :

“As cenas que vocês vão ver são verdadeiras e filmadas sem truques. Se, às vezes, serão amargas, é porque muitas coisas são amargas nesta terra. O dever do cronista não é adocicar a realidade, mas descrevê-la objetivamente”.

Os temas de “Mundo Cão” são difíceis de digerir. A trama se passa quando ainda ocorria o extermínio de animais sadios no âmbito do município de São Paulo. “Santana é um funcionário do Departamento de Combate às Zoonoses e trabalha recolhendo cachorros perigosos das ruas. Com uma mulher evangélica e dois filhos, leva uma rotina tranquila, até que seu caminho se cruza com o de um rottweiler. Ele terá que se ver com o dono do cão, Nenê, envolvido com atos ilícitos”.

O conflito principal surge da impossibilidade do diálogo. “Os dois homens se encontram, um deles já está furioso, e o outro fica nervoso também. Eles trocam palavras, mas nenhum tenta entender o ponto de vista do outro. Tudo nasce disso, do diálogo que não se estabeleceu entre o Santana e o Nenê.”

Apesar de antigo, o documentário “Mundo Cão” reflete o momento atual do País, em que as pessoas estão “homologando” em vez de dialogar. Uma vez estabelecido o diálogo, você deixa de considerar o outro como um objeto, alguém sem importância. Ele assume subjetividade e personalidade. Dialogar faz com que você se aproxime do outro ser humano.

Pois bem. O Império Etíope, também conhecido como Abissínia, se enquadra muito bem nesse “Mundo Cão”. Ocupou os territórios da Etiópia e da Eritreia, existindo aproximadamente de 1270 (início da dinastia salomônica) até 1974, quando a monarquia foi deposta por um golpe de estado. Foi, na sua época, o mais antigo estado do mundo, e, além da Libéria, o único cuja independência resistiu com sucesso à Partilha da África pelas potências coloniais do século XIX.

Os Massais são um grupo étnico de seminômades, que vive no Quênia e no norte da Tanzânia. Devido aos seus costumes distintos e residência próxima aos parques de caça da África oriental, eles se situam entre os grupos étnicos africanos mais bem conhecidos internacionalmente. Famosos como pastores e guerreiros, preservam seus costumes e tradições culturais. A vida deles gira em torno do gado, como comprova a base de sua alimentação, leite com sangue.

É uma sociedade patriarcal em que o homem pode ter quantas mulheres conseguir sustentar. Suas vidas são marcadas pela passagem de diversos rituais, sendo o mais importante o da circuncisão, quando o garoto passa a ser considerado um homem. As meninas também vivenciam um ritual semelhante, em que seu clitóris é “retirado”, para serem consideradas mulheres.

Na tribo abissínia dos “massais”, o filósofo Ludwig encontrou um estranho costume: Durante as festividades, os chefes guerreiros fazem introduzir um boi vivo na sala do banquete, para carneá-lo, poupando-lhe as artérias e deixando-o esvair-se em sangue, sob os olhos estarrecidos dos convidados. Parece cena do “Mundo Cão”.

A descrição desta cena nos faz refletir se será mais cruel devorar uma nação viva, ou um animal que entra para o matadouro inconsciente do que o espera.

O Brasil, como nação livre e capaz de determinar-se por si mesma, está sendo tratado à semelhança do boi abissínio.

Condotiero (em italiano: Condottiere) é um chefe mercenário que controla uma milícia, sobre a qual tem comando ilimitado, e estabelece contratos com qualquer Estado interessado em seus serviços. Enquanto se julgam delfins e herdeiros, os chefes supremos estão carneando vivo o regime e só poupando as artérias para que estas, imprensa, parlamento e garantias constitucionais, deem ao povo a ilusão de que está viva a soberania nacional, quando, na verdade, ela morreu com a própria arma que lhe deram para defender-se.

8 pensou em “MUNDO CÃO

  1. Cara Violante, muito denso e reflexivo este seu texto. Fugiu das crônicas habituais, mas é muito importante para retratar os dias atuais.

    Como diz o nosso amigo Sancho, vou ter que rele-lo mais algumas vezes para poder digeri-lo. Farei ao longo do dia.

    Um beijo, minha querida.

    • Obrigada pelo comentário gentil, prezado João Francisco.

      O momento atual do País mexe com nossos sentimentos, fazendo-nos ver até que ponto .poderá ir a maldade humana.

      A ganância pelo poder e o desejo de dominar o seu semelhante tornam o homem o mais perigoso dos animais.

      Repetindo o pensamento de George Bernard Shaw:

      “Quando o :homem mata o tigre, é esporte. Quando o tigre mata o homem, é ferocidade.”

  2. Querida Violante Pimentel. Vivi – para Sancho e todos os seus admiradores.

    Sigo o relator João Francisco, e acrescento: brilhante!

    Quando filmava Apocalypse Now nas Filipinas, país situado no Sudeste da Ásia, certamente o filme mais fantástico da história da filmografia bélica de todos os tempos, Francis Ford Coppola, pediu a esposa, Eleonor Coppola que realizasse um documentário sobre Apocalypse Now.

    O que ela fez com extrema competência, e o documentário Hearts of Darkness: A Filmmaker’s Apocalypse, (Coração das Trevas – O Apocalypse de um Cineasta) – tornou-se uma obra-prima para se compreender a complexidade que foi filmar Apocalypse Now.

    No final de Coração das Trevas – O Apocalypse de um Cineasta há uma cena bizarra em que os nativos sacrifica um boi para refeições. É inacreditável o semblante e os olhos do boi quando percebe que vai ser sacrificado.

    Sua extraordinária crônica me veio à mente o sacrifício do boi que, passivo, apesar da força, não reagia. Foi sacrificado sem berrar.

    Triste, mais real.

    Desse dia em diante, passei a gostar mais dos animais!

    “Jumento é bom!” O homem é cruel!” – resumiu Luiz Gonzaga.

    Abraçaço para você, querida, com ótimo final de semana extensivo à família.

    • Obrigada pela gentileza do comentário, querido colunista Cíço Tavares!

      Gostei muito dos detalhes da sua explanação, sobre o filme Apocalypse Now, um filme épico de guerra norte-americano de 1979, dirigido por Francis Ford Coppola, e com um elenco fabuloso, incluindo o inesquecível Marlon Brando.

      Quanto ao documentário filmado pela esposa de Francis Ford Coppola, a pedido dele, Hearts of Darkness: A Filmmaker’s Apocalypse, (Coração das Trevas – O Apocalypse de um Cineasta) – como você disse, “tornou-se uma obra-prima para se compreender a complexidade que foi filmar Apocalypse Now.”

      A cena do sacrifício do boi é chocante!!!

      Abraçaço para você também e um excelente final de semana, para você e

      sua familia!

  3. Violante,

    A sua crônica faz uma comparação do documentário italiano Mondo cane (Mundo Cão), realizado em 1962, com o mundo atual do Brasil. O seu argumento é que deixamos de dialogar, não temos capacidade de ouvir o outro e isso provoca sérios danos a convivência sadia.

    A capacidade de dialogar serve de termômetro para avaliar a vivência da fraternidade e do respeito ao outro. A recusa ao diálogo pode expressar fechamento sobre si e a recusa de escutar. O diálogo exige primeiramente a escuta, a disponibilidade em aprender com o outro que pensa diferente.

    É importante mencionar que diálogo é uma conversação entre duas ou mais pessoas. Embora se desenvolva a partir de pontos de vista diferentes, o diálogo propõe um clima de boa vontade e compreensão recíproca. Tolerância é entendida como a permissão e o respeito para com a maneira de pensar e a forma de viver dos outros.

    Gostei demais da conta da sua crônica e da sua didática de usar um filme para demonstrar que não evoluímos no século XXI e sim progredimos. Estamos na era da informática e desaprendemos a nos comunicar de forma presencial, Há necessidade de uma reflexão para estudar se o mundo está adoecido!

    Desejo um final de semana pleno de paz, saúde e felicidade

    Aristeu

  4. Obrigada pelo excelente comentário, prezado Aristeu!

    Concordo com você:
    :
    “:A capacidade de dialogar serve de termômetro para avaliar a vivência da fraternidade e do respeito ao outro. A recusa ao diálogo pode expressar fechamento sobre si e a recusa de escutar. O diálogo exige primeiramente a escuta, a disponibilidade em aprender com o outro que pensa diferente”.

    .Na verdade, o progresso tecnológico, que tantos benefícios nos traz, é uma faca de dois gumes nas relações humanas. .

    As costumeiras visitas aos familiares e amigos se tornaram raras . E quando isso acontece, os celulares continuam ligados,

    .Há pessoas que não conseguem tirar os olhos do celular, onde quer que estejam, inclusive os políticos, como se vê na televisão. rsrs..

    Um final de semana pleno de paz, saúde e felicidade para você também!…….

  5. A musa do JBF, chegou chegando.

    Avisa lá, avisa lá… que o “supremo” pode muito mais não pode tudo.

    O povo já não mais se comporta, tal qual um sapo que é colocado num recipiente que vai aquecendo aos poucos até alcançar 100º, e fica lá, estático… até morrer pela fervura, sem qualquer reação.

    O povo tá reagindo, sim.
    Não aceitamos ser sacrificados como boi de piranha.

    Ai reside o desespero (STF, corruptos, consórcio de veículos de imprensa funerária) pelo “controle da mídias sociais”.

    Quando um fato notório abala os alicerces de uma dominação, diz-se que o mundo não dá voltas, ele capota.
    O mundo capotou, “literalmente” quando Elon Musk adquiriu o Twitter. Passando a ser considerado pelos progressistas como persona non grata.

  6. Obrigada pelo comentário gentil, prezado Marcos Cavalcanti!

    “Quem com muitas pedras bole, alguma lhe cai na cabeça”, diz o ditado popular..

    É o que está acontecendo agora com os “supremos”.
    Realmente, o “mundo supremo” capotou, literalmente”, com a aquisição do Twitter, por Elon Musk,
    E o riso sardônico do “manda-chuva” amarelou..

    Uma ótima semana!

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