JOSÉ RAMOS - ENXUGANDOGELO

Todo dia era assim. Do início do ano de 1953, até o fim do ano 1957, chovesse ou fizesse sol, a rotina era a mesma: acordar e levantar, tomar café com nada (o pão era levado para a merenda na escola), vestir a roupa e caminhar 8 km na ida, e mais 8 km na volta.

Às vezes precisava andar muito rápido e, noutras vezes, uma corridinha se fazia necessária – tudo para não chegar atrasado, pois o portão de entrada era fechado quando a oração terminasse e todos entrassem para as salas de aulas.

Grupo Municipal São Gerardo. Curso Primário de quatro anos, hoje denominado Fundamental ou Básico. O quinto ano, às vezes desnecessário, era denominado Curso de Admissão. Admissão à quem pretendia cursar o ginasial e científico, hoje chamado de ensino médio. Era tudo quase que a mesma coisa.

“Quase”, eu escrevi. Havia uma diferença: as professoras sabiam o que ensinavam, e tinham ascendência moral e intelectual para cobrar a atenção dos alunos. Se não cobrassem, a direção da escola cobraria (inclusive, delas). Era diferente de hoje, ou não?

O acesso ao pátio da escola era uma vitória diária. Dava até para escutar os toques rítmicos das trombetas, anunciando que mais um dia de aulas estava sendo iniciado.

Reunidos no pátio, todos com os cadernos Avante às mãos, era cantado do início ao fim, o Hino Nacional Brasileiro. Ao fim, a oração de agradecimento e pedidos de desejos de saúde, ali e em meio à família.

Era, com certeza, uma escola onde se ensinava e se aprendia. Sem frescuras, sem viadagens ou despertar da curiosidade a caminho da homossexualidade masculina ou feminina. Era, repito, uma escola.

Leitura de livros em alto e bom som. De pé. Os erros nas pronúncias das palavras ou quaisquer outros, eram corrigidos na hora pelas professoras.

– José, levante! Abra o livro na página 38, e leia. Ordenava a professora Mundica.

– Durval, levante, e leia a partir de onde José parou!

Era assim. E todos liam e mostravam o que estavam estudando e aprendendo.

Dois períodos letivos durante o ano. Ao fim de cada um, provas. No final do ano, as provas finais. Provas escritas de todas as matérias lecionadas na grade curricular.

Havia reprovação, sim. Diferente de hoje, que os professores aprovam alunos que não aprenderam nada (na maioria das vezes por culpa dos próprios professores – que não dominam as matérias e, às vezes, sabem menos que alguns alunos, mas possuem “doutorado”). Mas, havia também a aprovação e o reconhecimento da escola e das professoras.

Ao final do ano de 1956, tirei o primeiro lugar da classe. Recebi um calhamaço com as provas, amarradas com fitas verde, amarela e azul. Primeiro lugar, com apenas uma nota 8,5 em Canto Orfeônico. Nas demais matérias, nota 10,0.

De presente, da direção da escola, ganhei uma caneta Parker, que conservo até os dias de hoje. Já se vão 65 anos!

Dona Mundica, a Professora – mais pobre que eu, mas que me preparou no Curso de Admissão ao ginásio, me presenteou com um tinteiro da tinta apropriada para usar na caneta. Parker Quink azul!

Eu amava Dona Mundica – e gostava de vê-la cuspindo o fumo de rolo que mascava. Mas, ela era a minha Professora! E sempre soube mais que eu. Por isso, ensinava.

* * *

AMIGOS: Estou cansado.

Que eu saiba, não estou doente. Apenas cansado. Tenho tarefas mais urgentes, que viraram problemas, e exigem de mim uma breve solução.

ASSIM, RESOLVI ENTRAR DE FÉRIAS, HOJE.

Não sei se volto, nem quando.

Agradeço a atenção e o respeito de todos que, acho, foram espontâneos e fiz por merecer.

Feliz Natal!

Próspero Ano Novo!

Saúde e Paz!

23 pensou em “MINHA CANETA PARKER E MEU CADERNO AVANTE

  1. Caro José Ramos.

    Você nos trouxe de volta um passado que pertence a muitos de nós. Tive uma Parker dessas e usava a mesma tinta: “Azul Real Lavável”. A caneta era uma joia que ainda hoje está comigo.

    Obrigado pelo excelente passeio no meu ontem.

    Carlos Eduardo

    • Carlos, muitos de nós ganhamos essa Parker. Fizemos por merecer. Construímos nossas famílias e, provavelmente ainda temos algo por fazer. Feliz Ano Novo!

  2. Um exemplo de caráter e superação. Aproveite suas férias, descanse bem e volte firme e forte em 2022. Você é insuperável, meu amigo. Um abençoado fim de ano para todos nós.

    • Beni, muito obrigado. Cansaço físico é fácil de mandar embora e refazer as energias. Feliz Ano Novo pra você e familiares.

  3. ZéRamos, curta suas férias, descance bastante e volte logo, não existe domingo sem suas maravilhosas cronicas, volto sempre ao passado (maravilhoso) que vivemos em nossa querida Fortaleza. Também ganhei uma caneta Parker 51 e usei cadernos Avante, estudei no Colégio São João na Av. Santos Dumont o dono/diretor era Prof. Odilon Braveza, também diretor do Liceu.do Ceará.Feliz Ano Novo e que mais lembranças! Bom domingo amigo!

    • Marcos, minha Parker é uma das boas recordações dos tempos de Liceu. Fui aluno dali, quando Boanerges era o diretor. Feliz Ano Novo, amigo.

  4. Caros amigos,

    Minha lembrança das Canetas Tinteiros, como eram chamadas, é exatamente o oposto das de vocês.

    Eu fui fazer a prova do exame de admissão ao ginasial. Esta era a etapa de seleção para ver quem entrava no Colégio Marista, o melhor colégio de Recife.

    Para comemorar aquela data simbólica, minha transição de garoto a rapaz, recebi de uma pessoa muito querida uma caneta dessas, que eu nunca havia usado antes, especialmente para fazer a prova.

    Ocorreu que a prova era mimeografada em um tipo de papel extremamente absorvente de tinta, de modo a fixar a impressão que era feita com álcool. Foi a minha desgraça.

    Como minha coordenação motora sempre foi um desastre, a minha caligrafia era simplesmente horrível. A maneira de minimizar esta deficiência era escrevendo BEM DEVAGARINHO. Só que, naquele tipo de papel, cada vez que a caneta tocava no papel fazia um imenso borrão de tinta.

    Ficou impossível ler alguma coisa naquela meladeira! FUI REPROVADO!

    Ao receber a notícia da reprovação, tranquei-me no quarto e chorei uma semana inteira. Eu que sempre havia sido o melhor aluno de todas as classes onde havia estudado, havia sido reprovado vergonhosamente.

    Como consequência, fui enviado para um internato em uma cidade situada a 120 Km de Recife. Sofri o diabo neste internato. Mas isto é estória para uma longa conversa.

  5. É isso que faz o JBF ser um espaço diferenciado.
    Possuir pessoas com a sua qualidade e dignidade.
    Não deixe de nos presentear com suas belas histórias, que não tem nada de enxugar gelo.

  6. Querido escritor José Ramos:

    Adorei seu texto! Bateu saudade desse tempo feliz, em que o caderno “Avante” era nosso companheiro. E o Hino Nacional na contracapa, era uma aula constante de civismo.
    A caneta Parker era o presente mais chique que existia, para ser dado de presente em ocasiões especiais, e a pessoas especiais.. Para o tinteiro, todo cuidado era pouco.

    Aproveite bem suas férias, e retorne com muita disposição e saúde, para continuar a jornada fubânica, entre os colegas, amigos e leitores, que muito o admiram.

    Meus votos de um Venturoso Ano Novo, para você e sua família!

    Muita Saúde, Inspiração e Paz!

    Abraços meus e de Diana!

    • Violante,fico muito agradecido e lisonjeado com o seu comentário. Que Deus, que está sempre conosco continue nos guardando. Retribuo votos de Feliz Ano Novo par você e Diana.

  7. Em 53 tinha 2 anos . 5 anos depois o ensino ainda continuava belo e perfeito como o descrito . As professoras ficavam ensinando as crianças mesmo após o término do horário . E não dá para dizer que é porque a população era pouca , pois assim sendo que a quantidade de professores acompanhava o crescimento populacional. Em 66 passei num concurso para o SENAI. Tudo continuava dentro das tradições , respeito e ordem. Foi um curso de 3 anos de caldeiraria , até o diploma no fim de 69 . Melhor período da vida . Nada como a escola!.
    Hoje vemos o ridículo de muitos professores professarem política de roubos , o desrespeito por parte dos alunos , agressões físicas a professores e até assassinatos . Pena , e não estou falando da caneta , e sim do tinteiro que borraram nosso ensino . Para estudar é preciso muita gana, e ainda tem jovens que a tem . Descanse e volte , ” a gente ” senta e espera. Feliz 2022 !.

    • Seu Quincas, vosmecê tá ficano veím, vixe! Desde a escola com método imaginado por Anísio Teixeira, que aprendi que, “escola não educa”. Quem educa é a vivência e o caminho pelo qual nos decidimos caminhar. Nenhuma família ensina o componente a ser bandido – mas, ele será um bandido famoso e até perverso, se tiver uma convivência prolongada com o meio criminal. Nenhuma professora do nosso tempo nos ensinava a pentear o cabelo, fazer tatoo, usar piercings ou até o simples escovar dos dentes. Essas coisas “são literalmente ensinadas pela prática da longa convivência – e de uma convivência pela falta de imposição de limites. Escrevi mesmo “imposição”! E, sem frescuras, sem mimimis – valendo mesmo aquele nosso tradicional “engole o choro”! Eu escrevi no texto que “estou cansado” – rogo à Deus para que, na sua imensa bondade, se eu ainda tiver algo a cumprir da minha missão terrena, que Ele me permita chegar, em abril próximo, aos 79. Dia 30 de abril, pra ser mais preciso. Acrescente à essa idade, a dificuldade de vida depois de ter nascido no interior do Ceará, caminhando léguas e léguas no lombo de um animal para pegar água para as necessidades domésticas da casa da minha Avó. Sem o direito de escolher o que eu queria comer ou o que eu gostava – era aquilo que tinha, e ponto final. Depois, a dificuldade de ser “negro” nascido no Estado onde o preconceito é mais arraigado, em que pese a mentira de ter sido o primeiro a “abolir os escravos”, que a história nos ensinou que, nada tem com a cor da pele (os judeus não eram negros). Somando tudo, a resignação de continuar lúcido, provavelmente para o cumprimento da minha missão e a sorte de continuar aprendendo a cada dia, mesmo com as coisas com as quais não concordo. Eu continuarei considerando um “idiota”, todo aquele que se se diz “professor” e, para algumas respostas, diz apenas: “as coisas mudaram”. Não. As coisas não mudaram. Nós mudamos as coisas e, nossa inércia ajudaram essas coisas a se perpetuarem e passarem a valer, algumas, até como leis. Meu velho e falecido Pai me ajudou a raciocinar e a pensar no futuro, quando, eu ainda calçava sapatos com pontuação 38, e ele, pobre e sem poder investir todo ano num sapato novo, comprava um Vulcabrás 752 com pontuação 40. A folga que existia, era completada com panos velhos e algodão. E, repito, isso não foi a escola nem nenhum professor que me ensinou. Foi a minha família! Repito: não sei se volto. Se for meu destino voltar, eu volto. Um grande beijo no seu coração. Paz, saúde, sabedoria, humildade e uma boa família, é o que lhe desejo.

  8. Zé,

    Sabes o quanto te amo e o quanto necessária se faz a poesia de suas histórias, casos e acausos neste JBF de todos nós.

    Espero de coração, que mesmo que seja em um rítmo mais lento, após as férias, não nos deixe sem suas maravilhosas histórias.

    Aconselho ao amigo arrumar um belo par de coxas e de seios para a sessão colírio, que faz rejuvenescer qualquer burro véi. Creio que tá na hora de capim novo…

    Abraçação sanchiano e até sempre, meu caro.

    • Sua história me remete a Mia Couto. Escreve o portuga Mia: “Em casa de pobre até o tempo emagrece. Sei por mim, que comecei a envelhecer antes de ser criança. Mandaram-me calar ainda eu não falava. Mandaram-me varrer e eu tinha mãos apenas para brincar. Vantagem de uma vida que não começa: chega-se ao fim sem precisar de morrer.” Mia Couto, Mapeador de Ilhas, crónica na Visão de 23/12/2021.

      • Sancho, tá vendo aí, com é a vida que nos ensina?! Basta a gente perseverar com humildade – ninguém merece continuar vivendo, quando achar que já sabe tudo. Tem mulé adindonde?

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