CARLOS EDUARDO SANTOS - CRÔNICAS CHEIAS DE GRAÇA

Sebastião Bernardes de Souza Prata – Grande Otelo

Em 1946 eu contava 10 anos e começava a despertar para o jornalismo. Com outros meninos residentes na Vila dos Remédios, em Afogados, criamos o jornal: “A Voz da Vila”.

A parte de “impressão” era feita por uma vizinha D. Malvina, que colava, as tiras datilografadas por mim, utilizando u’a máquina de escrever “Underwood”, com a qual papai trabalhava em casa.

Em letras garrafais ela abria os títulos e criava as vinhetas. Apresentávamos assim um jornal ilustrado Mas, cada edição tinha a tiragem de apenas uma unidade.

A vida do “jornal” foi efêmera. Não passou de três edições porque a circulação era muito complicada. Entregávamos o “canudão de cartolina” numa casa vizinha, explicávamos o que era o jornal e pedíamos à família para após a leitura passar para o vizinho, e daí por diante.

Mas nosso noticioso teria certa fama face a um “furo de reportagem”. Num domingo chega à casa de meus pais um Buick preto, conduzindo dois artistas famosos e um sobrinho de papai, Paolo Emílio, residente no Rio de Janeiro.

Sendo empresário de artistas se fez acompanhar de um senhor bem baixinho, preto retinto, chamado Sebastião e uma senhorita que era famosa cantora radicada nos Estados Unidos: Carmen Braw.

A cantora estava com uma ressaca infame, face à participação em dois shows: um, no palco-auditório do Rádio Jornal do Commercio outro, no Roof Garden e Dancing, a casa noturna mais prestigiada do Recife.

Depois das apresentações, ainda esticaram até o Cassino Americano, no Pina e a beberagem se prolongou até a madrugada. Foi uma carraspana de lascar.

Mamãe fora solicitada a medicar a cantora, com um produto caseiro, algum chazinho, mas dado ao estado crítico da artista, que apresentava fortes dores de cabeça, ela resolveu lhe aplicar uma poderosa injeção de “Xantinon com B-12”, receita infalível para ressaca.

Enquanto esterilizava a seringa, mamãe – falando pela primeira vez o “inglês macarrônico” – lhe ofereceu a cama do casal para a visitante receber a furada de modo mais confortável, e em seguida dar um cochilo restaurador. O “morenaço” aproveitou pegou no sono.

Na sala, o sr. Sebastião ficou sentado, aparentemente preocupado com o estado de sua colega. Aproximei-me dele oferecendo suco de maracujá, informando que era calmante. Seria o primeiro personagem importante que eu entrevistaria de verdade, para o nosso “jornal”. Apresentei-me, expliquei as razões das indagações e ele se soltou.

– Seu nome?

– Sebastião Bernardes de Souza Prata, mas me chamam de “Grande Otelo”, o porquê, não sei. Nasci em Minas Gerais Meu trabalho é fazer graça para os outros rirem..

O boato se alastrou.

Ao notar que a frente da casa ficara cheia de crianças, indagou o porquê e eu lhe disse que aqueles meninos quase todos, já o conheciam porque seus filmes passavam no Eldorado, o principal cinema do nosso bairro.

O ator teve a generosidade de pedir que eles pudessem entrar para conversar. Acariciou a todos beijando suas cabeças. Aí a entrevista virou bagunça porque todos desejaram perguntar alguma coisa. Grande Otelo respondeu-as com o maior carinho.

Biuzinho, filho de Mané Fogão, correu à casa de D. Lola e pediu o jornal emprestado para mostrar ao visitante. Ele ficou admirado e disse que sentia orgulhoso em dar uma entrevista para um jornal produzido por crianças.

A fama não havia alterado sua simplicidade. Otelo já era um ator famoso face às comédias da Atlântida Cinematográfica, quando se apresentava com o ator brasileiro Oscarito, nascido na Espanha, formando uma dupla impagável.

Fui perguntando… Fiquei sabendo que ele só tinha um filho, mais conhecido pelo apelido de “Chuvisco”, porque quando nasceu estava chuviscando.

A conversa durou um bocado. Perto do meio dia, meu primo e os artistas abraçaram meus pais e despediram-se. O carrão negro se afastou sob palmas espontâneas da criançada, admiradores do famoso cômico.

Grande Otelo nasceu em Uberaba, MG, em 18 de outubro de 1915 e faleceu em Paris, durante uma temporada, em novembro de 1993. Foi ator de teatro, cinema e televisão, comediante, produtor e cantor. Seu principal papel foi no filme “Macunaima”.

Carmen Sílvia Braw Munfelt, nasceu em Kongsvinger, na Noruega, mas portava nacionalidade chilena. Bailarina, atriz e cantora se apresentou durante muitos anos no Cassino Atlântico do Rio de Janeiro. Depois se radicou nos Estados Unidos, participando de pelo menos três filmes.

8 pensou em “MEU PRIMEIRO ENTREVISTADO

    • Caro Manuel Bernardo.

      Sua leitura e comentário é que penetram bem fundo na sensibilidade de quem a escreve.

      Fico grato por sua leitura, afinal, passamos um bocado de tempo para relatar fatos interessantes, que marcam épocas e personagens.

      No caso, aproveito para citar casos que vivi anunciando como eram os personagens daqueles tempos de 1900.

      Grande Otelo, por exemplo, foi um cômico tipo “pastelão”, que com Oscarito fazia cenas inocentes e provocavam sorrisos aos montes nos muitos filmes da Atlântida Cinematográfica S.A.

      Tudo sem maldade e com a graça que só os gênios sabem fazer.

      Obrigado por sua leitura, amigão.

      Bom domingo!

  1. Pois é ……

    Você entrevistando “Grande Otelo”, bastante meritório mas………, investigativo mas, deixando a coitadinha da norueguesa Carminha Chilena, sozinha na cama, furada impiedosamente pela mamãe, sem nenhum afago ou apoio moral e manual, para amenizar sua carraspatana noturna ?

    Inacreditável ……… !!!

    Acho que faltou história, nesta histórinha de “apenas” repórter ………. KA KA KA ,,,,

    Quase inaceitável ………!!!! … Quase uma histórinha de Janjão……. rsrsrsrsrrsss….

    Saudações ………

    • Arthur amigo,

      Se eu tivesse idade superior àquela que eu tinha na época, quando abundava a inocência, certamente eu teria deitado a cidadão e pelo menos teria passado o algodão no rabaço dela.

      Grato por seus comentários.

      Bom domingo, amigo!

  2. Carlão

    Hoje você apresentou um verdadeiro “furo de reportagem”, feita ainda quando era um menino, em 1946, quando eu ainda nem pensava em vir à este Mundo.

    Deixe-me lhe dizer que você, com seu relato, apressou a inclusão de Grande Otelo em nossa coluna “Memorial do Povo Brasileiro”. Faz tempo que está escalado, mas a demora em apresentá-lo deve-se ao fato de o Memorial destacar primeiro os famosos menos conhecidos, menos badalados e este cabra é muito conhecido e também badalado merecidamente.

    Mas, agora com seu depoimento no JBF, me obrigo a falar dele para os que não chegaram a conhecê-lo como você. Creio que seu testemunho veio em boa hora de relembrar o papel dos grandes atores na historia do cinema e da cultura brasileira.

    Assim, fico agradecido pela sua contribuição em detonar o gatilho na hora precisa de reapresentar o Grande Otelo ao povo brasileiro.
    .
    .

  3. Carlito,
    Carmen Sylvia Brown Muñefelt, de formosura sem igual, fez rápida visita ao Recife em 1949, apresentando-se na Rádio Jornal do Commercio. Nota publicada pela coluna do “Diario de Pernambuco”, no dia 03 de agosto:”Quando não seja pela voz, ao menos pela plástica de ébano em remeleixos e revolteios pr’a lá de provocantes. Com pouquíssimas roupas, sumaríssimas mesmo, Carmen delicia a vista e o sentido dos frequentadores do auditório da L-6, fazendo muita gente pensar nos ‘clarões de um sol que já vai longe’ e nas sombras de uma noite que vem perto”.

  4. Caríssimo “Corrigidor” Sancho.

    Mais uma vez v. se notabiliza com sua conhecida argúcia.

    Não sei se aproveitou para me dar uma rasteira quanto à data em que a cantora esteve na casa de meus pais.

    Acredito que dei uma escapulida numa das datas em que Carmen Braw esteve no Recife, porque ela aqui esteve duas vezes, numa delas deixou exibir suas abundantes partes glúteas para mamãe dar-lhe salutar picada, enfiando-lhe a injeção “tira-cachaça”, a “Xantinon com B-12”.

    No Prontuário do antigo DOPS fui encontrar:

    “…o serviço consular de registro de estrangeiros identifica ao menos três visitas: em 1942, 1943 e, por último, em 1945, período em que obteve visto de permanência definitiva no país.

    Em sua segunda temporada no país, em 1943, trabalhou durante um tempo no Rio de Janeiro, tendo o contrato de locação de serviços legalizado pelo Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP). No prontuário da DOPS/PE, é possível saber que Carmen trabalhou no Casino Atlântico do Rio de Janeiro como artista-cantora.

    Entre fevereiro e abril de 1944, Carmen esteve por duas vezes no Recife, fazendo escala em vôos entre o Rio de Janeiro e Natal, onde cumpriu temporada artística no Grande Hotel, sob a direção da firma Alfredo Bianchi.

    Portanto, fico-lhe grato e aplaudo sua argúcia, que só contribui para a firmeza da História, onde os escritores têm que ser fiéis às datas e nomes, principalmente.

    Por isto, em relevância ao fato de seu comentário, o que me permitiu um complemento histórico neste comentário, poderei parodiar o grande Fernando Pessoa:

    “Historiar é preciso, cronicar não é preciso.”

    Aquele abraço domingueiro.

    Fraternalmente, Carlos Eduardo

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