MARCOS MAIRTON - CONTOS, CRÔNICAS E CORDEIS

Confesso que hesitei antes de escrever este conto. E hesitei mais ainda em publicar. Pela sua carga de violência. Não gosto de contar histórias violentas.

Mas, como já disse em várias oportunidades, às vezes os personagens de um conto me aparecem em sonho, pedindo para que eu conte suas histórias. E, nesse caso, um dos personagens insistiu muito. Primeiro, pedindo que eu escrevesse o texto, depois, que o publicasse. Ao todo, foram mais de uma dúzia de aparições, praticamente implorando que o caso fosse exibido em linguagem escrita.

Acho que ele me venceu pelo cansaço. Não quero mais sonhar com isso.

Eis, portanto, o texto encaminhado para publicação.

Apenas advirto: SE VOCÊ É UMA PESSOA CUJA SENSIBILIDADE RECOMENDA NÃO LER HISTÓRIAS VIOLENTAS, PARE DE LER AQUI.

Feita a advertência, vamos aos fatos.

Em uma manhã ensolarada de um dia qualquer, no meio da semana, um rapazinho, de seus dezesseis anos, caminhava em uma praça com seu cãozinho. Era um animalzinho pequeno e peludo, talvez um maltês ou um shitszu. Com a coleira presa a uma guia retrátil, às vezes se adiantava em relação ao seu humano, às vezes ficava um pouco para trás.

O rapaz, com algumas espinhas e muitas sardas no rosto branco, tinha o cabelo grande o suficiente para esconder um pouco dos olhos, mas não para chegar até os ombros. Parecia não ter se penteado naquela manhã. Vestia uma bermuda de estampa camuflada – aparentemente folgada para seu corpo franzino – e comprida, cobrindo suas pernas finas até a altura dos joelhos. A camiseta branca, surrada, com uma frase qualquer no peito, em inglês, bem poderia ser uma espécie de pijama. Nos pés, sandálias de borracha, dessas chamadas japonesas, com uma parte que se prende entre o dedão e o indicador.

Seguiam em plena harmonia, com as devidas pausas para o pequeno animal farejar alguma coisa ou fazer suas necessidades fisiológicas. Não demorou até o rapaz tirar um saco plástico de um dos muitos bolsos da sua bermuda, recolher dejetos sólidos do seu amigo canino e os depositar em um cesto de lixo. Depois seguiram em seu passeio matinal.

Estavam nisso, quando o rapazinho percebeu um sinal de perigo. Em sentido contrário, vinha um homem, de uns 30 anos, também acompanhado de um cão. Fisicamente bem mais forte que o rapaz, usava apenas calção e tênis. Aparentemente, havia saído de casa sem camisa, não pela falta da peça em seu guarda-roupa, e sim para exibir a pele bronzeada e a musculatura do tórax e dos braços.

Mas não era a compleição física do homem que havia gerado tensão no rapaz. O problema era o cão que o acompanhava: um pitbull, desses que metem medo mesmo quando estão presos em uma jaula de ferro.

Era um cão de pernas relativamente curtas, como costumam ser os pitbulls. O dorso mal chegava à altura do joelho do seu condutor, mas o peito largo e o pescoço grosso davam uma ideia da força daquele animal. Tinha o pelo marrom – salvo uma parte branca no peito – e olhos castanhos, o que fazia com sua cabeça parecesse a de uma estátua de bronze.

O rapazinho que caminhava com o shitzu (ou talvez um maltês) provavelmente não viu de imediato essa parte da cor dos olhos, por causa da distância que havia entre eles no momento do encontro, uns 80 a 100 metros. Mas deve ter percebido que o pitbull parou de andar e se postou com o corpo ereto e as orelhas e a cauda erguidas. Na linguagem corporal canina, isso significa estado de alerta. Ou, mais precisamente, que avistara o cãozinho. E que o via como um alvo.

O jovem também parou. Deu um rápido puxão na guia do seu bichinho de estimação, sinalizando sua parada, e olhou para os lados, como se pensasse em mudar de direção.

Mas isso durou apenas um instante. Porque, no instante seguinte, ele olhou novamente para a frente e percebeu que o pitbull já vinha, em desabalada carreira, em sua direção.

Não foi possível identificar se o animal havia se soltado, ou se já passeava solto. Sabe-se apenas que o seu dono continuava caminhando lentamente, como se não houvesse percebido o ataque. Trazia em uma das mãos uma grossa corrente de aço inoxidável, a qual, presume-se, deveria estar presa ao pescoço do seu cão.

Enquanto isso, o cãozinho peludo já sentia a pressão das presas do pitbull em seu pescoço, enquanto era sacudido de um lado para o outro violentamente. Sua sorte parecia definida, quando algo inesperado aconteceu.

Sem muita pressa, e demonstrando total segurança em seus movimentos, como se fossem ensaiados, o rapazinho largou a guia, pôs a mão direita em um dos bolsos laterais de sua bermuda camuflada e sacou de lá uma pequena faca dobrável, consideravelmente pontiaguda.

Com surpreendente habilidade no uso do instrumento perfurocortante, o jovem desdobrou a faca, agachou-se e moveu a lâmina de baixo para cima, cravando-a no abdômen do pitbull, próximo às costelas. Depois, fez um movimento horizontal, rasgando a barriga do animal, desde o ponto da perfuração até a sua genitália.

Talvez pelo efeito da adrenalina em seu corpo, o pitbull não deu o menor sinal de que a perfuração houvesse lhe causado dor. Simplesmente caiu para o lado, debatendo-se, enquanto seu sangue e seus intestinos espalhavam-se pelo chão da praça.

Agora seu dono havia apertado o passo, e estava a uns dez metros do local do incidente. Olhos arregalados, boca aberta, parecia não acreditar na cena à qual acabara de assistir.

O rapazinho, então, com a mão, o braço, o rosto e a camiseta sujos de sangue, ficou novamente de pé, ergueu no ar a faca e gritou:

– Para o animal bravio, o aço frio!

Ao ver aquela cena, o dono do pitbull parou assustado. Demorou alguns segundos antes de ser tomado por ira e iniciar uma reação:

– Filho da puta! Tu matou meu cachorro! – gritou.

Transformando em arma a corrente que trazia à mão – e que poderia ter evitado todo esse problema – partiu em direção ao jovem, dando sinais de intenções nada pacíficas.

Mesmo diante daquela demonstração de fúria, o rapazinho, mais uma vez, não se abalou. Guardou a faca no mesmo bolso de onde a retirara minutos antes, e, enquanto levantava a camisa com a mão esquerda, procurava, com a direita, alguma coisa na parte de trás da sua cintura.

Retirou dali uma pistola preta, não muito grande. Engatilhou-a e disparou contra o dono do pitbull, que a essa altura estava a não mais que três metros de distância.

Foram dois disparos no peito. Enquanto o homem agonizava no chão da praça, o rapazinho aproximou-se dele calmamente. Ergueu a mão que segurava a arma, e disse, em voz alta, mas com uma serenidade assustadora:

– Para o humano inconsequente, o chumbo quente.

Pronunciadas aquelas palavras, guardou a arma, pôs carinhosamente nos braços o seu cãozinho ferido, e saiu caminhando lentamente, como se nada houvesse acontecido.

Próximo da esquina, havia um carro estacionado, de onde saiu uma mulher de uns 50 anos, que o abraçou e verificou os ferimentos do cãozinho.

Depois, todos embarcaram no veículo e deixaram o local.

A polícia chegou minutos depois, pedindo informações aos transeuntes sobre o ocorrido, mas não conseguiu nada relevante. Mesmo no prédio em frente à praça, de onde algum morador na janela poderia ter filmado tudo com o celular, os investigadores não conseguiram nenhuma pista.

Tudo que se sabia era que se tratava de um rapazinho de aparência inofensiva, mas que sabia matar. E que, conforme a natureza dos seus inimigos, escolhia o metal com o qual lhes tiraria a vida.

16 pensou em “METAIS

  1. Vou fazer companhia a Goiano. Uma noite sem dormir. Minha sobrinha estudava numa escola pública a 100 metros de casa e havia um aluno na turma dela que morava numa comunidade. Um dia marcaram um passeio pra conhecer no depto de medicina da UFPE e chegando o pessoal foi explicando o que se fazia em cada setor ou laboratório. o monitor alertou: ” não entrem nessa sala, pois aí ficam os cadáveres usando nas aulas. Esse garoto entrou, foi chamado de volta, repreendido, e disse: “seu Zé, onde eu moro eu vejo um defunto todo dia”
    A foto mais emblemática que vi foram duas crianças jogando bola de gude ao lado de um cadáver numa quadra na comunidade do Coque, perto do centro do Recife.
    Um dia meus alunos né chamaram pra jogar futebol, um domingo de manhã, e quando chegamos ao campo tinha um corpo crivado de balas, pendurado numa corda na trave. Acho que atiraram enquanto ele se debatia pendurado.
    Mairton, achei arretado o conto e o suspense

    • Meu caro Famigerado, você agora me apertou (sem me abraçar).
      Nunca li nada do Rubem Fonseca. Um vexame para mim.
      Vou agora mesmo adquirir alguma obra dele, pra suprir essa lacuna.

  2. Prezado Mairton,

    Seria muito bom se as coisas acontecessem exatamente assim na vida real.

    Infelizmente, em nosso caso, Brasil, o mais provável é que o pitbull mate o cachorrinho e o dono, quando este vier tentar livrar seu animalzinho de estimação.

    No caso dele ainda ter um canivete ou uma faca no bolso, quem o mataria seria o dono do pitbull, pois estamos todos proibidos de exercer o simples direito de legítima defesa por determinação dos comunas, mesmo tendo votado maciçamente a favor do direito de portar uma arma.

    Este é o país de merda em que nós vivemos.

    De qualquer forma, belíssimo conto. Sempre é bom sonhar em ver os bons prevalecerem. Parabéns!

    • Obrigado, Adonis.
      Espero que, passada a pandemia e retomado o crescimento econômico do país, esse tema da posse e do porte de arma de fogo ainda retorne ao debate nacional.
      Parece-me uma questão mal resolvida em nosso país.

  3. Parabéns pela perfeição do texto, Dr. Marcos Mairton! Muito chocante! Foi muito sangue-frio do rapaz, defender a si e ao seu cachorro, com as armas de que dispunha naquele. Quem tem um cachorro de estimação, entende…

    Bom fim de semana!

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