CÍCERO TAVARES - CRÔNICA E COMENTÁRIOS

Poster: o caráter alegórico e revolucionário de Matar ou Morrer

Realizado num período de neurose e perseguição política nos Estados Unidos (o macarthismo) e escrito por Carl Foreman, um dos nomes da lista negra do senador Joseph McCarthy, “Matar ou Morrer”, tem no diretor Fred Zinnemann seu primeiro desafio, tornando o primeiro ponto notável dos bastidores desta obra-prima, que foi concebido como uma resposta simbólica ao “caça às bruxas” e à cisão que então se estabelecia em Hollywood.

Na pacata cidade de Hadleyville, no Novo México, quando o Xerife Will Kane, interpretado magistralmente pelo ator Gary Cooper, está prestes a se casar com a protestante, a jovem e belíssima Grace Kelly, recebe a notícia de que Frank Miller, interpretado pelo ator Ian MacDonald) – o psicopata que Kane havia prendido anos atrás – foi solto da prisão e estava preste a chegar no trem do meio-dia à cidade para a desforra.

Enquanto os três mais odiosos cúmplices de Miller esperam na estação, o Xerife tenta conseguir ajuda. Os habitantes da cidade se recusam a arriscar suas vidas por medo de vingança. Vários relógios revelam que o meio-dia está se aproximando. “Matar ou Morrer” se passa em tempo real, com a hora fatal se aproximando enquanto a música-tema, a balada “Do Not Forsake Me, Oh My Darling”, insiste em frisar os acontecimentos. Will Kane é deixado praticamente sozinho contra quatro vilões.

O assassino solto deve chegar a bordo do trem do meio-dia. Frente aos sentimentos conflitantes da população, ao desamparo por parte de seus antigos colaboradores e, especialmente, às súplicas de sua esposa, o Xerife enfrenta um dilema praticamente sem solução.

Esse é o pano de fundo que Fred Zinnemann utiliza para desenhar um painel do fim anunciado da época das conquistas. Os personagens são protagonistas inconscientes de seu próprio papel. Will Kane representa o desbravador, o precursor, o próprio espírito da colonização. Não por acaso ele está velho e prestes a se aposentar. Seu adversário, Frank Miller, não é um dos tradicionais vilões do velho oeste, cujo único fim era a morte, em combate ou na forca. Ele foi preso, julgado, sentenciado a passar a vida na cadeia, mas foi libertado.

Não se sabe por que ele foi solto, nem o filme se presta a dar um motivo concreto. Só se sabe que, em algum lugar longe dali, uma espécie diferente de justiça se fez, e essa justiça colocou em liberdade um homem cuja primeira atitude é juntar-se aos seus capangas e buscar vingança. É nos personagens secundários, habitantes da cidade, entretanto, que se encontra a parte mais interessante da metáfora elaborada aqui.

Observando com atenção, percebe-se que neles a coragem foi substituída por precaução e o espírito aventureiro deu lugar ao desejo de estabilidade. Por mais que se envergonhem disso, os homens do povoado não reúnem em si a força para ajudar o xerife, entregando-o ao que todos consideram sua morte certa – ou seu suicídio, como descrevem alguns, o que seria uma forma de eximir-se da culpa por manter os braços cruzados. Um dos moradores chega a dizer: “Nós pagamos um bom salário ao Xerife e seu ajudante. Eles que resolvam”. A função do novo cidadão urbano seria, portanto, a de pagar seus impostos e esperar que os problemas desapareçam. Nada mais de iniciativa, nada de participação direta. Eles que resolvam.

A ganância também aparece aqui modificada pela nova ordem. Não são mais terras ou gado que interessam, os desejos da população da cidade são mais, digamos, atuais. O hoteleiro diz não gostar do Xerife, pois antes da chegada da lei e da ordem havia mais movimento em seu hotel. Eis uma crítica ao capitalismo selvagem, ao qual não importa que todos se matem, contanto que isso traga lucros. Já o assistente do Xerife recusa-se a ajudá-lo por não ter sido indicado para substituí-lo, um novo Xerife chegaria à cidade no dia seguinte.

Nesse caso a cobiça é pelo cargo, e aqui, melhor do que em qualquer outro ponto, percebe-se que os tempos não são mais de força e coragem, mas de política e barganha. Eis que, como resultado de tudo isso, Will Kane é abandonado. Para que não se diga que os aspectos artísticos da obra não foram citados, vale lembrar que tanto a trilha sonora quanto a música tema cabem perfeitamente no filme, colaborando bastante para criar a atmosfera de conflito interno do protagonista.

Gary Cooper oferece uma atuação na medida certa, sem exageros, mas que passa ao espectador a angústia de encontrar-se na situação em que se encontra. Há ainda algo de revigorante no papel da mulher em “Matar ou Morrer.” Também aqui se poderia dizer que o filme é precursor, mas seria difícil fazê-lo sem explicitar demasiadamente a conclusão da história. O mais importante é que a cena final representa o ocaso de uma era.

É verdade que a colonização não termina com o desfecho do personagem de Gary Cooper. Seu fim, porém, havia sido anunciado. O tempo de coragem, da marcha ao desconhecido, da vida e da morte pela força e pelas armas estava agonizando. A aventura do velho oeste chegava ao fim.

Não é a toa que “Matar ou Morrer” é considerado o segundo melhor western de todos os tempos pelo American Film Institute. Um filme inteligente, angustiante e que merece ser assistido por várias vezes. É simplesmente fantástico pelo seu caráter alegórico e revolucionário.

Esse foi um filme muito polêmico quando lançado nos States, principalmente por motivos políticos. O roteirista foi acusado pelos artistas e esquerdistas de ter incluído no roteiro passagens antidemocráticas, antiamericanas. Inclusive esse filme foi muito criticado por ninguém nada menos que o famoso cowboy John Wayne, que afirmava que o filme era antiamericano e não era um filme western e sim uma agressão à democracia estadunidense.

Causou tanta polêmica que foi até citado pelo presidente Ronald Reagan durante um dos seus pronunciamentos transmitidos pela TV. Mas apesar de toda controvérsia o filme foi um grande sucesso de crítica e de público, chegando a conquistar quatro oscars.

O filme é considerado um clássico do cinema, pois inova na abordagem do conflito em um plano mais psicológico e pela carga de suspense nele contido.

A fotografia é primorosa, de uma qualidade surpreendente, em glorioso preto e branco, ganhadora do prêmio Oscar de melhor fotografia do ano.

O elenco é surpreendente. O papel principal foi antes oferecido aos atores Marlon Brando e Montgomery Clift que recusaram participar do filme por vários motivos, sendo o principal dele o recebimento de uma quantia muito irrisória para atuarem em papéis muito importantes, pois a quantia posta à disposição pela produção foram meros setecentos mil dólares, uma quantia irrisória para um filme com grande elenco, mesmo para os tempos antigos, (1952).

Há de se notar que durante todo o filme, aparecem diversos relógios, todos marcando os minutos antecedentes ao meio dia. O filme é todo feito no horário real e essas cenas com os relógios têm grande impacto visual e bastante suspense, pois cada minuto antes do meio dia é de muita angústia para o personagem principal, o Xerife Cooper, pois todos os habitantes da cidade negam-se covardemente a ajudá-lo a combater com os bandidos vingadores, que vão chegar no trem das doze horas em ponto, com a intenção de matá-lo. Cada relógio em si se torna um dos personagens como testemunhas coadjuvantes do filme em questão.

Após o duelo final, o Xerife é elogiado pelos moradores da cidade que pedem para ele permanecer na cidade como defensor da lei. Nessa hora, o xerife faz uma cara de nojo e joga ao chão a estrela de xerife, num gesto de desprezo pela covardia dos habitantes que se recusaram a ajudá-lo a enfrentar os bandidos.

Esta cena, na época do lançamento do filme, foi muito criticada pelo ator John Wayne, que achou uma ofensa aos defensores da lei, que um xerife jogasse ao chão uma estrela que representava uma autoridade e ele achava também que com a cena ele estava jogando ao chão a estrela americana da democracia. Tudo picuinha política, isso porque o roteirista (Carl Foreman) tinha sido em prisca época membro do partido comunista americano. O macarthismo estava presente em toda esquina estadunidense. Era a época da caça às bruxas.

Nesse caso, ninguém contestou o gesto do Xerife, o que comprova que a política deturpa tudo e John Wayne sempre foi um “cowboy” político.

O resultado final do filme é primoroso, um grande diretor Fred Zinemann, um grande ator Gary Cooper, que já tinha sido previamente ganhador de um Oscar, a atriz novata Grace Kelly e um elenco de apoio com celebridades, todas muito atuantes e muito experientes na atuação de filmes de faroeste, tais como: Thomas Mitchell, lloyd Bridges, Katy Jurado e Lee Van Cleef, é sem dúvida um dos melhores filme western de todos os tempos.

Um grande clássico, tão grande como “Shane” (1963), do competente diretor George Stevens, ou “Rastros de Ódio” de (1956), do lendário John Ford, que são as melhores referências no padrão de qualidade do western americano.

17 pensou em “MATAR OU MORRER “AO MEIO DIA” (1952)

  1. Gary Cooper era o ídolo da minha época, meados da década de 1960 em Garanhuns. Saíamos do cinema imitando seu andar pausado e firme. Bem sei que ele é de uma década anterior, mas como os filmes demorava até chegar lá, ele era o cabra!

    • Estimado biógrafo Brito:

      Cheguei cansado em casa, mental e fisicamente, mas não o suficiente para não dizer ao estimado memorialista que fiquei honrado como o comentário, que só fez engrandecer e dar mais vida a High Nooh (Matar o Morrer (1952), extraordinário oeste realizado pelo revolucionário diretor Fred Zinneman.

      Abraçaço, grande colunista.

  2. Muita gente se reconheceu no povo de Hadleyville. Por isso o filme assustou tanto.

    Eu, sempre que assisto, fico torcendo para o xerife, depois de jogar a estrela no chão, dar uma bela cuspida em cima.

    • Estimadíssimo colunista Marcelo+Bertoluci,

      A coisa que mais satisfaz a alma e o cérebro da gente é o de escrever algo e aquela escrita ser reconhecida por gente inteligente feito o mestre das crônicas inteligentes, sucintas, sensatas e fáticas, que teçam sobre tudo e tudo sai harmoniosamente bem escrito.

      “Matar ou Morrer” é um filme clássico por excelência pela temática ousada da época, não resta dúvida.

      O povo da cidadezinha de Hadleyville não estava acostumado àquela situação vexatória, de conflito e deixava se levar pelo terror dos grandes comerciantes, que se viam na possibilidade de lhe fazer pressão com medo de perder o negócio.

      John Wayne não gostou do filme por considerá-lo antiamericano. Uma bobagem para a época. Imediatamente chamou o lendário John Ford, para produzir uma obra-prima – Rastro de Ódio – em contraponto a Matar ou Morrer.

      O Xerife Will Kane (o extraordinário Gary Cooper), teve uma interpretação magistral, dando vida ao filme,

      Ambos tem seus méritos e ambos merecem nosso respeito.

      Abraçaço, estimado colunista.

  3. Impressionante a semelhança com os tempos atuais . Mas … esse filme não é por acaso o Brasil ? Will Kane lembra muito bem nosso atual presidente . A população dessa cidade lembra muito bem nosso país . Como puderam advinhar isso ?

    • Estimadíssimo comentarista Wagner Gaspar,

      Repito aqui e agora as sábias palavras do excelente colunista econômico do JBF, Carlos Ivan: “Falou e o disse bem feito”.

      “Matar ou Morrer” vai ser sempre uma obra-prima inigualável dentro da sua temática. Prova disso foi que o cowboy John Wayne chamou o lendário John Ford para produzir uma antítese, um contraponto ao filme de Fred Zinneman,

      Abraçaço, estimado comentarista e obrigado por ter gostado.

  4. Valeu a dica, Caro Cícero. Como amante de um bom faroeste estou sempre revendo alguns clássicos inesquecíveis. Pena que alguns “heróis” daquela época, não eram tão heróis, como o cinema americano tenta mostrar. Alguns eram bandidos, que, pela sua agilidade no gatilho, viravam xerifes(mocinho), rsrsrs. Outros, como o Búfallo Bill, por exemplo, virou herói por, praticamente, dizimar a população de búfalos daquela região, a mando de algum político da época, deixando os índios à mingua. Infelizmente, a imperfeição humana vai estar sempre presente: ontem, hoje e amanhã. Abraço.

    • Estimado Beni Tavares (meu xará).

      Uma grande pena as grandes produções de hoje, produzidas pela Marvel Comics, que foi engolida pela The Walt Disney por zilhões de dólares, não fazerem mais filmes como antigamente.

      Nada aqui de saudosismo – não gosto dessa palavra! – mas de saber que não teremos mais clássicos westernianos como antigamente. A tecnologia “pirocquinizou” tudo.

      Onde vamos assistir um western tais como Era Uma Vez No Oeste, Matar ou Morrer, Rastro de Ódio, Shane, etc. e tal. feitos na tora, com cenas repetidas até cinquenta vezes como ocorreu no filme “O Portal do Paraíso”, do diretor Michael Cimino, que, para 3:30h mim de filmes foram filmadas mais de 60 horas, tudo isso feito em cenário exuberante?

      Apesar de Quentem Tarantino, eu ainda nutro uma esperança no genial Steven Spielberg, por ser cineasta de caráter e não depender mais da grana de Hollywood.

      Abraçaço estimado comentarista e obrigado pelo comentário.

  5. Este filme, que não podemos deixar de cultuar nos mostra, dentre as muitas verdades que ele contem, que já naquela época, em um lugar escuso qualquer, já existia um energúmeno a se dizer autoridade judicante e favorecendo a bandidagem em geral.
    Se esse filme fosse rodado hoje, em nosso sofrido Brasil, bastava adaptar os cenários e trocar o figurino dos personagens para termos a dura realidade em que vivemos.
    Torçamos, pelo menos como fazíamos à época em que o filme foi lançado, para que o xerife não perca nenhum tiro, nem lhe falte munição.

    • Meu Carissíssimo Arael M. da Costa,

      Para começo de conversar: esse extraordinário filme westerniano é a cara do Brasil de hoje.

      Um xerife de moral colocando a casa em ordem praticamente sozinho, com a sua bela esposa, e os particulares e algumas corporações esquerdopatas parasitárias tentando desmoralizá-lo para torná-lo desacreditado.

      Não resta dúvida de que é a cara do Brasil, haja vista a corrupção em todo recanto do vilarejo e um xerife destemido colocando tudo em ordem, inclusive matando o bandidão que saiu da cadeia, se juntou a quatro malfeitores e tentaram destruí-lo moralmente ou tentando matá-lo.

      Será que esse filme pode ser uma metáfora do Brasil de Bolsonaro e seus patriotas decentes?

  6. Filmaço, querido Cícero Tavares! Parabéns pela excelente postagem!

    “MATAR OU MORRER”, com Gary Cooper e Grace Kelly é um fIlme inesquecível, assim como “DUELO DE TITANS”.
    ,
    Gary Cooper ganhou o Oscar de Melhoe Ator, nesta clássica história de um homem da lei, que se dispõe a defender sozinho uma cidade de habitantes covardes, contra uma gangue de criminosos vingativos, no maior confronto da história do cinema.,
    “MATAR OU MORRER” recebeu um total de quatro Oscars, incluindo Melhor Montagem, Trilha Sonora e Canção Original.

    Grande abraço!e abraço!

  7. Ciço, manu véi,
    Cheguei agorinha da lida, pois hoje os cocos estavam saltitantes e muito dispostos a trocarem de mãos e trazerem alguns caraminguás ao bolso sempre vazio de Sancho. Boas vendas e ao chegar a meu castelo encontro crônica de Ciço e minha sogra esbravejando.

    E a “virgencita” Grace Kelly (nos filmes de outrora as noivas das antigas sempre conservam o “cabaço” para o casamento) convida Gary Cooper para irem embora para “curtir” a lua de mel (melhor lua para plantio da mandioca) e o cabra fica para se esfregar em 4 machos?
    Sei não… Maria Bago Mole certamente diria que da fruta que Maria gosta esse cabra chupa até o caroço… kkkkkk

    Mas (filmístico mas), independente dos gostos do tal “xerife”, ler crônica de Ciço sempre é um aprendizado. O resultado final de crônica cicerina é primoroso, um grande cronista esse Ciço Bago Duro, um grande vacilão o Gary Cooper e um espetáculo a então novata Grace Kelly.

    Abraçação, manu véi…

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