CORRESPONDÊNCIA RECEBIDA

MEU IRMÃO E A RAPADURA

Pois bem, nos idos de 1950 morávamos na Bolívia, quando meu pai trabalhava na construção da Estrada de Ferro Brasil Bolívia. No acampamento dos trabalhadores, em casas desmontáveis de madeira, minha mãe usava seus maravilhosos dotes culinários para fazer doces, bolos, pães e rapaduras para vender aos vizinhos.

Uma de suas especialidades era a rapadura de leite, receita nordestina, quadradinhas com cerca de 10 centímetros de lado per capita cada um, como diria Ibrahim Sued. Esses pedaços do céu eram uma tentação irresistível para meu irmão e eu, moleques desavergonhados e gulosos, e exerciam sobre nós uma atração maior que mulatas para os portugueses.

Tais rapaduras eram deixadas, quando ainda pastosas, em formas para serem secas e daí desformadas e vendidas.

Minha mãe tinha a justificável desconfiança que algumas rapaduras vez ou outra criavam pernas ou asas e sumiam sem deixar rastro na terra ou no céu. Mas faltava-lhe o flagrante definitivo sobre tal mistério envolvido no milagre do desaparecimento.

A oportunidade chegou.

Uma bela tarde, rapaduras secando, a velha declarou alto e bom som que iria tirar uma soneca, palavras maravilhosamente bem recebidas e que atiçaram em meu irmão o desejo do furto. Ela deve ter cochilado com os dois olhos abertos e deixado o radar das orelhas ligado em situação de alerta. Não deu outra. Meu irmão foi pego com a mão na massa (ou com a massa na boca, sei lá) e de nada adiantou alegar que foi uma tentação momentânea do Asmodeu, que invadiu sua alma!

No final do dia meu pai chegou do trabalho e foi posto a par do ignóbil ato.

Agarrou meu irmão pelo pescoço, fê-lo (que língua a nossa!) sentar-se em uma cadeira, entregou-lhe uma rapadura inteirinha com a mão esquerda e, segurando um cinto de couro cru com a destra, ordenou-lhe que a comesse inteirinha. Na hora eu pensei que esse tipo de castigo era uma bênção, já que comer tal delícia era o que buscávamos.

Não sei se você já tentou comer uma rapadura inteirinha de uma só lapada, mas garanto-lhe que não é nem um pouco fácil. Quando tinha alcançado somente 27,4% da rapadura já lhe saiam lágrimas dos olhos e engulhos povoavam sua goela.

Também não sei se foi essa a causa, mas meu irmão nunca mais comeu nenhuma rapadura na vida.

2 pensou em “MAGNOVALDO SANTOS – PALM COAST – ESTADOS UNIDOS

  1. Em que pese seu conto ou causo ser estritamente pessoal ou familiar, porém nos faz viajar no tempo em outras peripécias que todos nós praticamos na nossa saudável meninice. Parabéns e que esvazie o baú e nos traga bons contos.

    P.S.: – Santos, aqui no Nordeste há um dito popular que diz: “Rapadura é doce, mas é dura”…

  2. Magnovaldo, lhe garanto que a causa de seu irmão nunca mais comer rapadura foi o castigo de comer uma inteira: aquilo é mais doce que pata de abelha!
    Me lembrou o castigo que meu irmão recebeu: o Flavinho foi pego fumando. Meu pai lhe deu um maço de Saratoga, o maior arrebenta peito que existia na época, e o obrigou a fumar o maço inteirinho, vinte cigarros, para quem não sabe.
    Ele ficou no quintal, fumando, e meu pai entrou para dentro de casa.
    Acha que ele parou de fumar? Pois ele era esperto, dobrou as pernas da calça e escondeu ali alguns cigarros… para fumar depois!

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