CORRESPONDÊNCIA RECEBIDA

Meu Papa Berto,

só para alegrar o dia e sairmos um pouco da rotina dos últimos três meses, eu quero deixar aqui um vídeo da nossa “bandinha de música” encantando pelas ruas do meu Acary.

O senhor de camisa listrada marchando atrás da banda é Seu Miúdo. Meu pai.

Papai foi um dos idealizadores dessa filarmônica, tendo lutado muito por sua criação ao lado de outros acarienses humildes como ele. Isso nos meados dos anos oitenta do século passado.

Trombonista como músico, por um probleminha no coração teve que “largar o sopro e assumir os pratos” sob ordens médicas cumpridas a contragosto. Fez parte até março de 2007, quando aos 70 anos entregou “a farda da banda”, ficando apenas na diretoria e conselho da Associação Cultural Maestro Felinto Lúcio Dantas, entidade mantenedora da filarmônica.

Dizíamos lá em casa, para chateá-lo: “o senhor quer mais bem à essa banda do que a nós”. Ele só fazia rir e dizia em resposta “vocês que estão dizendo”.

Saudades disso tudo.

Hoje em dia parece que o Alzheimer de papai já lhe faz de vez em quando tocar um trombone imaginário soprado pelo canto da boca, na solidão de alguns momentos seus. Outras vezes parado e tamborilando no braço da cadeira, talvez, em sua mente, ele ainda desfile pelas ruas de Acary batendo pratos na banda, acompanhado dos outros colegas.

Já o senhor todo de branco sendo homenageado e aparecendo ao final do vídeo é Cicinho Contramestre.

Na verdade, tratava-se de uma pessoa com limitações psicológicas, dificuldades cognitivas, nada entendendo de música, com problemas na fala e outras especialidades.

Mas, se transformando quando estava marchando à frente da banda. Quem o visse naquele andar – nem sempre marchava certo – jurava tratar-se do mais importante de todo o conjunto.

Como “Mestre!” o cumprimentávamos. “Contramestre!” respondia aborrecido com sua voz fina, meio difícil de entendermos.

Cicinho morava em Natal levado por parentes após todos os irmãos haverem morrido. Vinha para Acary sob a custódia e carona de Domício Ramalho, jornalista acariense de grande prestígio na capital potiguar. Com o falecimento de Domício assumiu a tarefa de ser “motorista de Cicinho” nas vindas e idas o meu primo Bianor.

Quando estava em Acary para todo canto que a banda ia, inclusive cidades vizinhas se fosse, ele a acompanhava. Todos os músicos lhe tinham o maior respeito e carinho. Todos!

De cara sempre amarrada, semblante sério, quase nunca sorria.

Em nossa cidade era uma atração à parte.

Um patrimônio humano de nossa terra.

Com a banda parada era o mais zeloso guardador dos instrumentos.

“Mexa não!” gritava à menor aproximação de alguém. E ai do menino desavisado que ousasse tocar em algo: a varinha branca, espécie de batuta eternamente lhe acompanhando, comia no centro!

À frente da banda e sem a compreensão do roteiro das ruas, era comum passar direto quando a banda dobrava à direita, ou à esquerda, e só quando se apercebia do erro voltava em toda carreira para assumir seu posto de contramestre à frente do “pelotão de músicos”.

Era muito divertido!

Ele já havia morrido quando das filmagens desse material*.

Dizem que com quase cento e vinte anos.

Bianor, escritor, poeta, advogado, boêmio, dado às brincadeiras e lorotas, porém, uma grande alma humana, não mostrava os documentos dele a ninguém; se os tinha, justamente para alimentar o interesse e o mito.

Mas papai ainda conta de haver ouvido muito vovô dizendo “desde que me entendo por gente, Cicinho é desse jeito aí”.

Coisas do meu Acary.

*O vídeo é fragmento do trabalho Prosa e Música – Conversando e Tocando, de 2008, dirigido por Heraldo Palmeira, numa produção financiada por Vânia Bezerra (proprietária do famoso restaurante Camarões) grande mecenas acariense, no vídeo aparecendo em marcha ao lado direito de papai.

20 pensou em “JESUS DE RITINHA DE MIÚDO – ACARI-RN

  1. A declaração de Chica de Carrasco no vídeo, dona de casa, semi analfabeta, grande incentivadora da filarmônica, chamando carinhosamente a banda de filha faz a ponte entre a alegria e a emoção.
    Obrigado pelo espaço, Berto.

  2. Realmente, o sentimento mais adequado é esse: emoção. Eu sempre falo da capacidade que o porta tem de pintar, com cores amenas, o sofrimento. Veja o caso do alzheimer. Na minha mente ficou o trombone imaginário.

    • Maurício, papai tem se tornado criança a cada dia. E eu fico imaginando os sonhos que não deve sonhar.
      Escolhi rir e me alegrar com suas confusões.
      Outro dia ganhou de uma filha minha, sua neta mais velha, uma TV dessas grandonas e modernas.
      Agora escolhemos o que ele assiste, e optamos por coisas que sabemos lhe trarão alegria.
      Meu caçula está “quarentando” por lá. Mandei que lhe desse a oportunidade de ver a decisão da Copa do Mundo de 1958, que ele certamente ouviu por rádio.
      Você não faz ideia da cara de satisfação de papai vendo a virada do Brasil.
      Emoção, amigo, ainda é tudo!

      • arretado. muito humano. não são todos os filhos que prezam pelos pais. essa de mostrar a copa de 58, foi genial.

  3. Pra ver a banda do Chico passar, tocando coisas de amor? Claro que não! Mil vezes a banda do gigante Miúdo, pai do do poeta Miúdo.

    Recorro aos engenheiros do Hawaii:

    Nessa terra de miúdos
    Eu sei, já ouvimos tudo isso antes
    A juventude é uma banda
    Numa propaganda de refrigerantes.

    E termino homenageando a Acary do poeta através de Ben Jor:

    Deu no New York Time
    A Feira de Acari
    É um sucesso.

    Señor e señora MIÚDO quando fazem coisas do amor fazem GIGANTES.

    • Sancho, procurei palavras para lhe agradecer por esse carinho.
      Fora o obrigado eu só encontrei uma expressão: Deus te abençoe.

  4. Isso que é cultura, que não depende do governo de incentivos fiscais, apenas da vontade de pessoas que se interessam genuinamente pelo povo.

    Obviamente tocava a música preferida de todas as “furiosas” do nosso Brasil varonil: A Banda de Chico Buarque, que ganhou com esta melodia o festival da canção da Record de 1967 sobre a Disparada de Vandré.

    Hoje deve ser a música mais popular do Chico nos rincões brasileiros

    • João, um dia conto de como papai, meu Tio Lolô, o primo Dodô, o baterista Gata, o mestre Pinta, mais Chica de Carrasco, Chica de Cioba e outra pessoas, fizeram para levantar o capital para construir a sede da Associação.
      Uma escola de música!
      Daí já saiu músicos para o Brasil inteiro.
      Inclusive o menino Léo, hoje doutor pela UFRN.
      Fora outros exemplos.

  5. Tudo é comovente nesse trabalho, Jesus Ritinha de Miúdo!

    Não tem pagamento à alegria e a satisfação dos responsáveis por esse trabalho feito com amor! Dos responsáveis pela condução do “Conversando e Tocando”, dos músicos que participam, da plateia que assiste a tudo extasiada, do documentarista, Heraldo Palmeira, que fez um trabalho brilhante para a eternidade!

    “Conversando e Tocando” já ganhou o mundo, se eternizou nas ondas da Internet!

    Miúdo Pai, é uma festa à parte! É o condutor dessa emoção que só quem sabe como é quem a sente!

    O texto também é de um brilhantismo literário que deixa a gente no ar!

    Parabéns a todos, inclusive ao Grande Poeta!

  6. Já fiquei gostando dessa turma toda, que faz tanto bem até a desconhecidos como eu, que dirá ao privilegiado povo de Acari.

    • A banda na rua é uma terapia para o povo.
      É como Chico Buarque tão bem retratou os benefícios de ouvir e ver a banda passar.
      “(…)A minha gente sofrida despediu-se da dor pra ver a banda passar cantando coisas de amor. (…) A moça triste que vivia calada sorriu, a rosa triste que vivia fechada se abriu, e a meninada toda se assanhou pra ver a banda passar cantando coisas de amor.”

  7. Depois de um dia exaustivo de trabalho, nada como saborear a sua singela homenagem à Bandinha de Acary. Ganhei o dia.
    Parabéns Jesus de Ritinha de Miúdo, por nos apresentar a gostosa história da banda e do pitoresco Cicinho (assim como o grande Suassuna, também tenho uma atração medonha por doido), saúde ao seu velho pai e sucesso para a grandiosa bandinha.

    • Mamãe diz que eu, menino ainda de braço, já acenava para os doidelos de Acary.
      Conta que todos eram (ainda são) doidos por mim.
      Talvez pelo nome Jesus.
      E eu sou muito mais por eles.
      Obrigado por sua atenção, Lula.

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