AS RUAS
O fascínio pelas ruas acomete a milhares, mas os exemplos mais eloquentes vêm dos escritores Lima Barreto (Afonso Henriques de Lima Barreto) e João do Rio (João Paulo Emílio Cristóvão dos Santos Coelho Barreto). Este nutria pelas ruas amor absoluto. De tanto devotar-se às ruas, de tanto estanciar-se nelas, de tanto irmanar-se com elas, João do Rio, em tributo a elas, pôs em seu terceiro livro, (sua obra-prima), o nome de A Alma Encantadora das Ruas, publicado em 1908.
Pelos serviços que prestam, pelas suas serventias, pelo que proporcionam de prazer, passatempo, distração e exercício lúdicos, as ruas, de incrível diversidade, são merecedoras de todos os louvores, de todos os agradecimentos. Apesar disso não me apetece o seu burburinhar, sua inquietação, sua maneira à trouxe-mouxe. É por tais circunstâncias que não me detenho quando as visito, faço de modo pressuroso. Cada qual com seu apego, sua preferência.
Da obra A Alma Encantadora da Ruas extratei alguns pareceres de João (sumariados, adaptados) acerca das ruas:
As ruas são generosas; não delatam a miséria, o delírio o crime, são capazes de unir, nivelar, agremiar. As ruas são os seres mais igualitários, mais socialistas, mais niveladores das obras humanas. Impõem aos dicionários as palavras que inventam, criam todas as blagues, todos os lugares-comuns. Para as ruas a aurora é sempre formosa, não há o despertar triste. As ruas criam um tipo universal feito de risos e de lágrimas, de patifarias e de crimes irresponsáveis, de abandono e de inédita filosofia, tipos esquisitos e ambíguos, uns com saltos de felinos outros com risos de navalha.
Para compreender a psicologia das ruas não basta gozar-lhe as delícias como se goza o calor do sol e o lirismo do luar. É preciso ter espírito vagabundo, cheio de curiosidades malsãs e os nervos com um perpétuo desejo incompreensível, é preciso ser aquele que chamamos preguiçoso e praticar o mais interessante dos esportes: a arte de flanar.
Balzac dizia que as ruas de Paris nos dão impressões humanas. São assim as ruas de todas as cidades, com vida e destinos iguais aos do homem.
As ruas nascem da necessidade de alargamento das grandes colmeias sociais, de interesses comerciais, dizem. Mas ninguém o sabe. Um belo dia, deriva por superfícies devassadas, transpassam trecho de chácara, aterram-se lameiros, e aí está: nasceu mais uma rua. Nasceu para evoluir, para ensaiar os primeiros passos, para balbuciar, crescer, criar uma individualidade.
Oh! Sim, as ruas têm alma! Há ruas honestas, ruas ambíguas, ruas sinistras, ruas nobres, delicadas, trágicas, depravadas, puras, infames, ruas sem história, ruas tão velhas que bastam para contar a evolução de uma cidade inteira, ruas guerreiras, revoltosas, medrosas, ruas aristocráticas, ruas amorosas, ruas covardes, que ficam sem pinga de sangue, ruas católicas, ruas protestantes e até ruas sem religião. A alma da rua só é inteiramente sensível a horas tardias.
A rua é a civilização da estrada. Onde morre o grande caminho começa a rua, e, por isso, ela está para a grande cidade como a estrada está para o mundo.
Com esta breve elocução reverencio João do Rio, ilustrado e cultivado escritor brasileiro, amante do sereno, ocupante, à época, da cadeira 26, da Academia Brasileira de Letras.
Ao tempo em que agradeço a João do Rio pelo seu legado prestimoso, insubstituível, demarcado por luxuosa erudição, rogo para que desculpe as falhas com que este aprendiz, canhestro, escriturou esses pingos diamantíferos.