CORRESPONDÊNCIA RECEBIDA

APOLOGIA AO LIVRO

No transcorrer da quadra menineira meu pai levou-me para conhecer a cidade, a bem dizer uma rala povoação onde rotineiramente aprovisionava-se daqueles mantimentos não produzidos no seu limitado chão sertanejo: uma gleba encravada no recurvo da Serra do Encantado (onde uma caneta pesava mais que uma enxada). Saímos de casa no justo momento em que a sinfonia melódica da passarada saudava o crepúsculo. Chegamos à povoação quando o sol, erguido, já andava pelo mundo. Enquanto meu pai comprava o essencial nas quitandas de salvação eu (encolhido a recato e com o sentimento de alguém que ocupa um lugar que não lhe pertence) o aguardava debaixo de uma figueira folhuda ao lado dos amigos Zeca e Zico, os jumentinhos de doma.

Observava tudo com aquela ingenuidade própria dos meninos jecas que habitam a hinterlância. Próximo a essa árvore existia um amplíssimo quiosque no qual funcionava um biclicletário. O propósito do bicicletário consistia em alugar as prestimosas bicicletas; era o meio de vida do proprietário, Senhor Xudu. Naqueles tempos de antanho, em que esse transporte fora lançado, possuir uma bicicleta era exclusividade dos eminentes apatacados; os pardos de pobreza, não. A única forma dos desprovidos de vintém experimentarem a novidade seria por meio da alugação de uma delas.

Tão logo se abriram as portas do bicicletário começaram a chegar os alugatários. Em pouco tempo a frota bicíclica havia arribado. Lembrei-me das abelhas do meu sertão, em revoada matinal à caça do néctar das flores silvestres. Os fregueses, depois que grudavam as mãos no chifre do bicíclico, saíam com ar de felicidade. Não era para menos. Pedalar oferecendo a face para os beijos da brisa é sempre prazeroso, mesmo quando um longo percurso impõe farta sudação. Vim conhecer essa sensação agradável próximo à idade adulta quando consegui amealhar o necessário para alugar uma bicicleta.

Daí a pouco, chega mais um freguês:

— Senhor Tadeu Xudu, eu quero alugar uma bicicleta.

— As bicicletas foram todas alugadas. — Aguarde, se puder; em breve uma delas estará de volta.

Pois bem, os livros deveriam ser tão andejos e ter a mesma mobilidade das bicicletas de aluguel, ou das abelhas: continuamente indo às mãos humanas e retornando. Em vez disso, os livros, derrotados pela inutilidade, dormitam nos vãos das estantes, por vezes amontoados, ostentando as marcas visíveis do desuso, inclusive grossas camadas de poeira. Pior que essa constatação, quando visitei alguns acervos, foi ouvir os responsáveis se gabarem das suas bibliotecas estarem entupidas de livros, a bem dizer, todos aquartelados. (A verdadeira biblioteca são as mãos humanas!) A circunstância reforça as estatísticas: o grande Brasil lê pequeno quando comparado a países da Europa e Argentina.

Bibliotecas públicas não deveriam expressar a caixa mortuária dos livros, mas apenas os seus aeroportos de decolagem e aterrissagem, marcados por um movimento de vai e vem, aos moldes das bicicletas ou das abelhas. Se os livros dormitam, maquilados de pó nos seus ataúdes, é porque o povo não lê quanto devia. O povo pode até se encontrar de bucho saciado, mas a mente, insaciável, merece e precisa de continuada leitura. A leitura — maneira barata, e até chique, de entretenimento — ensina a escrever, afugenta a ignorância, prepara, qualifica, fornece experiência, amansa a incivilidade e a grosseria, aperfeiçoa a dimensão interpessoal, possibilita conhecer o mundo, a arte, a tecnologia, amplia a capacidade de percepção, permite avaliar o melhor caminho que a vida oferece, facilita a compreensão dos direitos de si e dos outros. Também a insensatez e a impertinência humana por vezes se amolgam ante os efeitos benéficos do desapaixonado e fiel companheiro livro. Esse fiel amigo, que tem o condão de maravilhar as pessoas e ameigar corações, é “mudo que fala; surdo que responde, cego que guia; morto que vive”. Divorciadas da leitura, as pessoas tornam-se vulneráveis aos caminhos insidiosos.

É pesaroso constatar que os livros, mesmo os de boa semente, vão sendo rejeitados a cada dia, vencidos por inutilidades que bem se prestam a fomentar a alienação das pessoas. Tem-se a impressão de que a glória dos livros parece esvair-se em ânsias de morte. Houve época em que os livros eram companheiros de vigília; não se separavam dos leitores nem mesmo no interior de coletivos ou em logradouros. A pouco e pouco passaram a dormitar nos vãos das estantes, mas já são encontrados pelos catadores de lixo que os olham com o pensamento voltado para a balança. Essa inapetência à leitura, que beira a fronteira do enjoo, por sobradas razões sugere conjecturar que as gerações pósteras poderão incorrer em contravenção se forem flagradas em ato de leitura ostensiva, (no papel), ainda mais se em via pública for.

Porém, o desábito à leitura não é culpa dos diretores das bibliotecas, nem das pessoas, mas do modelo. Se o poder público estabelecer políticas de motivação à leitura a realidade será diferente. Se houver interesse, se as escamas dos olhos forem retiradas, se o tema for posto em discussão as ideias brotarão. Exemplificativamente: que tal se ao alunado brasileiro, em todos os níveis, for concedido pontos, como parte da avaliação, pela leitura de livros? Evidentemente a leitura seria aferida por meio de uma banca sabatineira. Que tal, ainda, se os pais vinculassem as mesadas dos filhos à leitura de livros? Que tal, também, se os pais infundissem nos filhos o hábito à leitura, principalmente entre os mais vulneráveis ao cabresto da internet e programas de televisão, alguns destes repletos de vacuidade? Essas leituras, é claro, seriam também sabatinadas. Que tal, igualmente, se um livro retirado de uma biblioteca no estado de São Paulo pudesse ser devolvido por intermédio de uma biblioteca da cidade de João Pessoa, Recife, Goiânia e vice-versa?

A ideia é fazer o livro se deslocar em múltiplas direções procedimento similar ao das abelhas que, ao alçarem voo em busca do néctar, prestam valioso serviço à natureza e ao homem. Durante o seu trajeto, as abelhas vão espalhando, naturalmente, por sobre os ovários das flores, os grãos de pólen que carregam nas suas corbículas, realizando, desse modo, a polinização responsável pela fecundação de frutos e, consequentemente, das árvores.

A despeito dos fascínios que as tecnologias exercem, a leitura no papel não pode morrer; precisa revigorar-se. Também, é preciso atitude de desmistificação: a leitura não pode ser entendida como artigo de primeira classe, mas dos brasileiros: de palácio ou de favela. Por que constitui espanto flagrar-se um boia-fria, ou uma trabalhadora doméstica fazendo palavras cruzadas ou lendo um Machado de Assis? O Brasil precisa socializar a leitura; não pode continuar lendo nanico, mas do tamanho do seu tamanho.

Com um esforço bem direcionado do poder público, da estrutura educacional e da sociedade, é possível socializar a leitura e imprimir aos livros um papel parecente ao das bicicletas do Senhor Xudu ou das abelhas. É preciso popularizar aquele que informa e transforma. É sempre tempo de louvarmos o companheiro livro, aquele que “aberto, é um cérebro que fala; fechado, um amigo que espera; esquecido, uma alma que perdoa; destruído, um coração que chora”.

Dedico a reedição deste texto a um idealista solitário que cascavilhei numa cidade de população franzina do litoral norte do Estado do Ceará. Trata-se de um ex-seminarista que, desajudado do poder publico, fundou uma biblioteca comunitária. Como a um missionário penitente percorre diariamente, com a sacola cheia de livros, as zonas urbanas e rurais do município, de casa em casa, promovendo o hábito à leitura e orientando jovens e apedeutos numa missão peregrina movida por febril ideal. Da autoria desse abnegado é o Decálogo do Bibliófilo, uma espécie de estatuto do leitor que, durante seu trabalho andejo decalca-o à mente dos catecúmenos da leitura. Desse decálogo reproduzo os dois primeiros artigos: “O livro é o seu melhor amigo; se o amigo é um tesouro, conservá-lo é o melhor investimento material e espiritual”. “Se você não ler, de onde vem seu saber? ”

“Oh! Bendito o que semeia
Livros… livros à mão cheia…
E manda o povo pensar!
O livro caindo n’alma
É germe — que faz a palma,
É chuva — que faz o mar.”.

Castro Alves

“Livros manuseados não pegam mofo, nem traças e cupins. Os livros curam o estresse, a depressão e os transtornos psiquiátricos”.

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