JOSÉ RAMOS - ENXUGANDOGELO

O beija-flor da Vovó

Vovó, mãe da minha mãe, era uma negra de descendência indígena que nasceu em Pacajus, interior do Ceará, onde, por muitos anos viveram os índios paiacus. Pele negra, que ficou mais negra ainda pela constante e obrigatória convivência sob o sol e o calor abrasador – sem que uma coisa implique a outra.

Vovó era filha de Nanahme – quinta geração dos índios paiacus – e teve duas filhas por conta do convívio com os negros vindos da África. Assim, em nada nos diminui ou ofende o termo “afrodescendente”. Realmente o somos. Somos legítimos descendentes de negros africanos e de índios.

A necessidade de “sair de baixo da saia rodada da mãe” fez com que Vovó procurasse um rumo na vida. Aprendeu a fazer tudo que era necessário para viver onde vivia. Cozinhava, lavava roupa, matava galinhas, fazia fogueiras, torrava café, fazia farinhada, tangia animais, criava galinhas e tinha extrema habilidade com a foice, o machado ou com a vassoura. Aparou netos e bisnetos. Era uma parteira leiga – daquelas do lençol grosso e encardido mas sempre limpo.

O marido só vivia para ela e para o trabalho. Os dois fumavam no mesmo cachimbo. Era minha Avó quem cuidava das tarefas “domésticas” – enquanto a parte que exigia mais esforço físico ficava com o Avô.

Foi a Avó quem construiu no final da casa, e onde ficava a cozinha, um girau onde lavava as panelas de alumínio, as panelas de barro, os alguidás e os pratos, também de barro. Ali, debaixo do girau, quando caía algum resto de comida dos pratos que estavam sendo lavados, os pintos comiam. Caroços de feijão cozidos, sementes de melancia, de maxixe, de tomate, de quiabo – ao serem molhados pela água que caía da lavagem dos pratos e panelas, nasciam. Antes de frutificar, floresciam.

Do que florava, quando as galinhas não comiam, alguns pássaros se regozijavam. Faziam a festa, num ambiente totalmente doméstico. Entre esses pássaros, começou a aparecer um beija-flor.

Vovó, nesse tempo, não tinha idade tão avançada. Assim, pensar que ela estava caducando ao ouvi-la “conversar” com o beija-flor, nunca nos pareceu justo. Mas ela conversava, sim. E até insinuava que o beija-flor respondia:

– Quer mais um pôquim d´água bixim?! Quer meu fii?

E entendia que respondia e atendia ao pedido da minúscula ave. Aquele beija-flor, sem documento cartorial, sem qualquer papel, passou a ser “filho” da Vovó e, portanto, meu tio. Exigente, matriarcal e dominadora por excelência, minha Avó até fazia questão que os netos – sem exceção – pedissem a bênção diária ao “tio” voador. E não ganharia o naco diário de rapadura o neto que não pedisse a bênção ao bixim.

A noite chegava e algumas horas depois, o novo dia. Louça do café para lavar, feijão para limpar retirando os gorgulhos, lavar e botar no fogo. Uma rápida passada pelo girau e Vovó não viu o beija-flor. Pegou a vassourinha e foi tentar enganar a si própria, fingindo que limpava o quintal. Nova vassourada e nova olhadela para debaixo do girau. Agora uma olhada mais demorada. Não viu o beija-flor. Olhou, olhou e procurou mais demoradamente. Não viu nada.

– Meu Deus dos céus, por onde andará o meu bixim?!

Cuidando da montaria para seguir para a labuta na roça, meu Avô, sem saber muito do que se tratava, ralhou:

– Tá falando sozinha, véia?

– Que nada hômi, é meu bixim que num tô veno!

– Véia, derna de quando, um passarim que veve avuando, soltim nas capoeiras, é teu?

– É meu sim. Eu dô água, dô de cumê, dô meus óios espiando pra ele, admirano, banhano, entãosse é meu, sim! É mais um fii que crio!

O Avô amuntousse no animal e foi trabaiá. A Vovó continuou resmungando e, quando o sol começou a esquentar, de foice na mão foi pegar uma caminhada de lenha prumode fazê o dicumê. Tinha muita lenha na latada, que o Avô nunca deixava faltar. O que a Avó queria mesmo, era um motivo para sair para procurar o beija-flor.

Saiu, procurou e nada encontrou. Almoçou com o Avô, deitou rapidinho para uma madorna, mas o barulho dos chocalhos nas cabras e bodes no chiqueiro acabou acordando a Avó. Pegou a foice de novo e foi apanhar mais lenha – mas ela mesma assumira que era apenas um pretexto para procurar o beija-flor.

Entre entristecida e ansiosa, Vovó pisava em tocos, gravetos, touceiras de ortiga e em quem mais aparecesse pelo caminho. O barulho da corrida de um teiú sobre as folhas secas assustou Vovó, como se estivesse num pesadelo. Aquilo lhe chamou a atenção, e ela voltou a observar os galhos com mais interesse. Via besouros mangangás, calangos das costas verdes, chapéus de marimbondos e até cobras verdes. Mas não conseguia ver o que procurava: o “seu” beija-flor.

Por não ser primavera, não havia flores. Esperava encontrar o “seu” beija-flor pousado num galho qualquer, voando, rodopiando e fazendo aqueles voos tão rápidos que só os experientes conseguem vê-los.

O ninho e os ovos do beija-flor da Vovó

Assim, como que uma ação divina, o vento soprou mais forte. Galhos balançaram, folhas se afastaram e Vovó teve a atenção chamada por um ninho minúsculo. Num galho muito fino (que dificultava o acesso de cobras), lá estava um ninho que Vovó conhecia. Um ninho de beija-flor.

Usando a foice, Vovó procurou um galho ainda maior e o cortou, deixando nele um gancho. Teve a feliz ideia de abaixar o galho para conferir se era realmente o ninho do “seu” beija-flor.

Difícil saber, mas para ela, era o ninho do “seu” beija-flor e aquela era a única justificativa possível para o desaparecimento momentâneo dele da floração dos tomateiros nascidos debaixo do girau. Alegre, e mansamente foi soltando o galho puxado com o gancho, até ter certeza de que o “seu” beija-flor não perceberia que alguém se aproximara da sua futura cria.

Chegando à casa de volta, Vovó jogou caroços de milho no quintal e acabou pegando uma das maiores galinhas do terreiro. Colocou vinagre numa tigela, aparou sangue e mergulhou a galinha abatida na água quente para a devida limpeza. Preparou uma galinha à cabidela para comer com o véio, que não demorou chegar e foi logo se abancando na mesa posta também na cozinha.

– O que tem prumode cumê, véia?

Um sorriso largo, escondendo as lágrimas derramadas na tristeza com o repentino desaparecimento do “seu” beija-flor, chamou a atenção do Avô.

Galinha à cabidela da roça

– Galinha? Galinha à cabidela? Hoje é niversário de quem, muié?

– Véio, num é niversário de ninguém. É que tô avuando de alegria cuma um beija-flor, apois encontrei o meu bixim. O danisco vai sê papai e eu vô sê Avó de novo e tu, meu véio, vai ser Vovô de novo!

– Amém véia! Eu já tavo atarantadim catua tristeza, teu chôro dento de casa, se entristeceno pelos cantos, sem nem querê dá uma cachimbada cum teu véio!

– Véio, ante de cumê vamo rezá. A gente tá precisano de agradecê a Deus pela graça alcançada!

– A graça de tê comida na nossa mesa, né véia?!

– Não véio, por causa de que eu encontrei o meu bixim. Tomara que os meus netim nasça tudo direitim, cagraça de Deus!

12 pensou em “JÁ TIVE UM TIO BEIJA-FLOR

  1. Que história maravilhosa. Existem pessoas tão boas que têm o tamanho do coração tão grandioso que não há palavras para descrevê-lo. Meu abraço ao Ramos.

  2. Que bom, muito bom ler o seu registro, seu relato de momentos indescritíveis!!!
    Tive a grata oportunidade de ter/ver na casa dos meus Pais um ninho de beija-flor.
    Quanta fragilidade, quanto cuidado em tecer tão tenra e efémera habitação.
    Meus Avós, Meus Beija-Flores!!!

    • Spock, fico agradecido com a generosidade do seu comentário. Fiquemos com Deus, o Onipotente e que dá assas aos beija-flores.

  3. José Ramos, ganhei o meu domingo lendo seu artigo. Voltei, em pensamento, à minha infância e à casa do meu avô materno, onde eu era tratado como um príncipe. Voltei a ver o terreiro coalhado de rolinhas, canários da terra, galos-de-campina, casacos-de-couro e outros pássaros canoros que vinham se aproveitar do que minha tia jogava para as galinhas de capoeira que eram criadas para nos suprir de ovos e de seus corpos em galinhadas a molho pardo, preparadas em panela de barro. Que acepipe! As comidas da roça são mais saborosas que as da cidade, com toda certeza. Além dos temperos naturais tem o amor, que você não encontra em nenhum restaurante que ostente as três estrelas Michelin.

    • Hélio fico agradecido. A gente sai da roça, mas a roça nunca sai da gente. Parece que o emocional permanecerá sempre envolvido e nos envolvendo nas coisas mais simples. Uma coisa, parece, é comer uma espiga de milho assada numa fogueira na roça, e outra é comer uma espiga de milho assada na cidade. O milho será o mesmo, mas o emocional será diferente. A gente terá sempre a impressão que, na roça, o cântico troante da cigarra ou das aves são tentativas de diálogo conosco. O glu-glu do peru é diferente. O berro do cabrito ou do bode, também é diferente. Até o pôr do sol ou a chegada da lua são envolvidos numa redoma emocional diferente.

  4. Porra, Zé! Se você continuar a fazer poesia em prosa e mandar me fazer uma visitinha os malditos ninjas com suas afiadas adagas cortadoras de cebola, que deixam marejados meus olhos,com lágrimas a escorrer pela face, EU JURO que não leio mais suas crônicas, (caralho!!!!!).

    Domingo é lá dia para se emocionar?

    Quer saber? Chega de chororô: “Tô inu” agorinha “tomá di banho dimidu” a ir ao bordel comer a perereca de alguma passarinha.

    Se puta fizesse fiado eu ia mandar botar na sua conta.

    Deixo um beijo fraterno ao amigo distante, mas que mora pertinho, dentro de meu coração.

    Espero que na semana do halloween, que se aproxima, você venha com um conto de terror, para parar de emocionar os bestafubanos.

    • Arre égua, Sancho! Quantos arre-éguas mais? Passarinha e perereca tu comes, né? Salame inteiro ou paio tu num quer nem saber?!

      • Zé,

        Alimentos QUE PERTENCEM ao grupo de embutidos fazem muito MAL à saude dos homens. Portanto o saudável Sancho mantém o regime pererecal e passarinhal… kkkkkkkkkkkkkkkkk

        Não entram no cardápio sanchiano:
        Linguiça;
        Presunto (cozido, di parma, cru);
        Salame;
        Salsicha;
        Apresuntado;
        Peito de peru;
        Blanquet de peru;
        Mortadela;

          • Pepino e dois cocos !.
            Brincadeira!.
            Alguns amigos dizem colocaram na salada dos engenheiros de uma firma daqui ,uma perereca . Foram todos demitidos.
            Absurdo ! . Tem gente que detesta perereca.

            • Joaquim: kkkkkkkkkk, quando comecei a pegar perereca, eu tinha 15 anos. Depois daquelas chuvas finas, as pererecas saíam dos esconderijos, e eu as pegava. Algumas peludas, outras começando a crescer. Mas, às vezes apareciam algumas já crescidas e eu precisava ter muita habilidade para pega-las. Como elas eram ariscas, eu as pegava com a vara. Elas adoravam ficar montadas naquela vara. Eita tempo bom, nera não?!

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