CORRESPONDÊNCIA RECEBIDA

A MALDADE HUMANA

Segundo o teólogo francês João Calvino, que rompeu com a Igreja Católica e fundou a seita protestante que leva o seu nome, “o homem é de todo incapaz de salvar a si mesmo, pois ele é totalmente mau”. Discordo. Para mim não existe alguém que seja “totalmente” mau, como não existe quem seja inteiramente bom. É impossível penetrar nos escaninhos da natureza humana, onde se abriga o incognoscível de um ser, e, por isso, é comum nos surpreendermos com um ato indigno de uma pessoa por todos reputada como boa, e com um exemplo de bondade de alguém tido e havido como mau.

Há alguns anos li no caderno Ideias do Jornal do Brasil uma matéria sobre Hitler, melhor dizendo, um gesto de Hitler, que surpreenderia qualquer um que sabe do ódio que ele tinha aos judeus. Pois, conforme essa matéria, uma determinada família judia foi poupada pela insana perseguição dele. Tanto tempo já que li o texto que não me lembro mais nada sobre este, a não ser que a família nunca foi molestada pelos nazistas. Não me lembro, por exemplo, se está revelado o motivo que levou Hitler a preservá-la (é possível que sim, ou, se não, pelo menos a proposição de hipóteses para o ato bondoso).

Ainda sobre Hitler, o filme alemão A Queda – As Últimas Horas de Hitler (Oliver Schbiegel/2004) promove uma sutil humanização da sua figura. Embora em nenhuma ocasião o filme nos induza a esquecer, um tantinho que seja, as inomináveis atrocidades por ele cometidas, há momentos em que se chega até a sentir um pouco de pena daquele homem (admiravelmente interpretado pelo ator suiço Bruno Ganz, há pouco falecido), tão cheio de poder até pouco tempo antes, vendo ruir o seu império e afetado gravemente pelo Parkinson.

Em seu livro de memórias Infância, Graciliano Ramos fala de um homem de sua cidade chamado Fernando. Um tipo que, já no físico, dava medo nas pessoas, com o “olho duro”, a “voz áspera”, grosseirão, “o ar de insuficiência e impostura”, os modos, e tantas outras coisas negativas, que deixaram no escritor alagoano uma das recordações mais desagradáveis. Sim, não sorria. Mas além do aspecto físico, Fernando era um homem mau. Valendo-se do parentesco com o manda-chuva do lugar, praticava as piores maldades, entre elas, tirar os três das moças humildes, que depois se prostituíam. Na percepção do menino Graciliano, não havia mais ninguém tão mau no mundo. E quando leu em um “dicionário encarnado” que Nero tinha sido o maior dos monstros, duvidou: maior do que Fernando? Mas Nero nunca lhe havia feito mal, ao contrário de Fernando, que o atormentava. E a leitura o deixou embaraçado. O seu conterrâneo “talvez não fosse o pior monstro da terra, mas era safadíssimo”.

Pois um dia Graciliano assistia na loja do pai ao trabalho dos dois empregados abrindo caixões de mercadorias. Fernando também estava presente, cochilando num banco. Depois de concluída a tarefa, com as mercadorias distribuídas para a venda, uma tábua com pregos fora esquecida no chão. Fernando viu a tábua, apanhou-a, pegou dum martelo e pôs-se a entortar os bicos dos pregos; enquanto o fazia, reclamava do desleixo dos empregados: “se uma criança descalça pisasse naquilo”?

Diz Graciliano que não acreditava no que via e ouvia, chegando a pensar num milagre que acontecera. E julgou-se injusto por considerar um monstro quem se preocupava com que as crianças pudessem cortar os pés. E conclui assim o capítulo – “Talvez Nero, o pior dos seres, envergasse os pregos que poderiam furar os pés das crianças”.

Um comentário em “FRANCISCO SOBREIRA – NATAL-RN

  1. Átila, rei dos Hunos, era conhecido como O Flagelo de Deus. Botava, no bolso, nazista, fascista e qualquer outra denominação.

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