MAGNOVALDO BEZERRA - EXCRESCÊNCIAS

Para os mais antigos sobreviventes deste Brasilzão de meu Deus, Francisco Alves, também conhecido por Chico Alves, ou Chico Viola, foi certamente o cantor mais popular da primeira metade do século XX neste país. Filho de um português dono de um bar na Rua do Acre, no Rio de Janeiro, foi engraxate na infância e logo se destacou por sua brilhante e poderosa voz, que lhe valeu o apelido de “O Rei da Voz”. Francisco Alves foi (ou ainda é, não sei) o detentor do recorde de produção de discos no Brasil: foram 1.173 discos, sendo sua voz ouvida em todos os países da América Latina.

Francisco Alves não viajava de avião, tamanho era o seu pavor dessa coisa voadora. Na tarde do dia 27 de setembro de 1952, voltava de São Paulo para o Rio de Janeiro quando o carro em que viajava, um Buick, dirigido pelo seu motorista, foi acertado em cheio por um caminhão na Via Dutra, perto de Pindamonhangaba. O motorista foi atirado para fora do carro, o tanque de gasolina explodiu e Francisco Alves, preso nas ferragens, morreu no incêndio que se seguiu.

Meu pai, Miguel Bezerra, viúvo desde dezembro de 1946 quando minha mãe se encantou dando à luz aquele que seria meu irmão mais novo (que também foi junto com ela), casou-se novamente com D. Joaninha Macedo Bezerra em setembro de 1952.

Desde o falecimento de minha mãe meu irmão e eu fomos criados pela nossa avó materna em Caicó, Maria Cristina de Medeiros, e o casamento de meu pai permitiu que os filhos fossem novamente reunidos a ele e a sua nova esposa.

A nossa viagem a partir de Natal foi feita em um navio de cabotagem da Companhia de Navegação Costeira, os famosos “Ita”, que zarpou da capital potiguar com destino a Santos, passando por vários portos brasileiros, incluindo o Rio de Janeiro. A partir de Santos nosso destino era Corumbá, onde meu pai trabalhava na construção da Estrada de Ferro Brasil-Bolívia. A viagem de Natal a Santos durou cerca de 12 dias e outra semana de ônibus, trem e avião da FAB seria gasta até o destino final.

O navio atracou no cais do Rio de Janeiro no dia 28 de setembro, um dia após a morte do “Rei da Voz”, e a população carioca ainda chorava consternada a morte de seu grande ídolo.

Assim que desembarcamos para passar várias horas no Rio, minha madrasta ficou sabendo da trágica morte do Chico Viola, e se entregou a um incontrolável pranto. Meu pai, beradeiro bronco e avesso às tietagens cantorísticas, não prestava atenção a artistas, particularmente se homens fossem, e ficou alarmado e extremamente emputecido. Como assim, a esposa recém casada, em plena lua de mel, derretendo-se em prantos por um homem que acabara de morrer? Isso era muito para os intestinos do senhor Miguel Bezerra e um traquilicaque invadiu seus neurônios.

O casamento quase terminou ali mesmo no cais do Rio de Janeiro.

Após a providencial intervenção do comandante do navio e de alguns passageiros, Dona Joaninha foi poupada de ser eletrocutada, virado picadinho e jogada às barracudas que infestavam as águas do cais do porto.

Nossa viagem até Corumbá prosseguiu sem outros incidentes dignos de nota, mas que o velho ficou bicudo e ressabiado, isso ficou! Somente muito tempo depois seu coração sofreu o amolecimento da influência artística em seu espírito.

12 pensou em “FRANCISCO ALVES E MIGUEL BEZERRA

    • Nada como rever um pouco os pedaços da vida, Manoel. Um dos meus velhos amigos e conhecidos também trabalhou como telegrafista na Costeira e depois foi para a FAB, onde ficou até ser reformado, também como telegrafista. Nobre profissão, ajudaram muita gente.
      Um abraço,

  1. Excelente narrativa, Magnovaldo,

    Francisco Alves (O Rei da Voz), já nasceu com o fado determinado. E Miguel Bezerra, seu pai, teria de passar por aquele estado emocional complexo que envolve um sentimento penoso provocado numa pessoa pretende o amor exclusivo.

    Os tempos mudaram (para pior). E hoje o romantismo deu lugar a banalidade.

    Até o amor morreu!

    Ótima crônica, meu caro!

    Abraçaço e um Feliz Natal para o excelente cronista e família.

    • Cícero, um elogio seu é um presente de Natal para este humilde escrivinhador.
      Um excelente final de semana para você e sua família.

  2. Dona Dinda, ex-escrava alforriada dos engenhos da Zona da Mata Sul de Carpina…
    Quanta história em uma só pessoa. Como seria interessante estar aos pés de Dinda e ouvir sobre uma época que não vivemos…

    Lembro dos causos sobre Donana, ou velha Ana, neta de escrava alforriada que meu pai conheceu e sobre ela falava com carinho e afeto, contando para as crianças da família tudo que passou aquela gente morena nestas terras que não eram as suas.

  3. Magnovaldo podia entrar naquela “minha vida dá um livro”. Salvo engano, este acidente também foi sofrido por Lúcio Mauro. Salvo engano 2, o rosto dele tinha cicatrizes que diziam ter sido resultado desse acidente e naquele tempo o para brisa do carro era vidro, não se esfarelava como hoje. Por isso as marcas.

    • Pois é, Mauricio, mas não tenho fôlego para tanto. Contento-me somente em deixar registrados alguns fatos para minha descendência. Já me sinto recompensado por isso. Um abraço.

  4. Magnovaldo, logo após a morte do Rei da Voz, ali no retão de Pindamonhangaba, amigos e fã-clube do cantor colocaram no local da tragédia, uma Cruz em cima de um violão construído em concreto. Com a construção do novo traçado da Rodovia Presidente Dutra, o pequeno monumento ficou bem abaixo do leito carroçável, fora das vistas dos passantes.. Sempre que minha esposa e eu , transitamos por ali, fazemos uma oração pelo artista e contamos aos filhos e netos a importância que Francisco Alves representou para o cancioneiro deste país sem memória que não valoriza seus verdadeiros artistas.. Obrigado por ajudar a manter viva a memória de um dos maiores cantores do Brasil..

    • Sabe, Paulo, alguns artistas do passado não saem de meu pensamento, e até hoje, sempre ouço suas canções, pescadas na Santa Madre Internet, que não deixa morrer nossa lembrança e nos permite fazer uma homenagem silenciosa para suas almas, seja onde for que estão: Francisco Alves, Carmen Miranda, Emilinha Borba, as Irmãs Batista (Linda e Dircinha), Nelson Gonçalves, Angela Maria e, porque não, Carlos Gardel e Miguel Aceves Mejia.
      Tenha um excelente final de semana.

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