Uma distância que podia chegar no máximo, a 8 léguas, separava a tapera dos Buretama, emoldurada por um roçado muito bem cuidado – cheio de plantações de mandioca, milho, feijão, e num local mais úmido, duas grandes covas plantadas de batata doce e quiabo, além de um canteiro com coentro, pimentão, cebolinha e tomate – na vazante do Açude Novo.
Era no Açude Novo que nos encontrávamos para pescar piaus, tilápias, curimatás, piaba gorda, camarão sossego, cangatis, muçuns, jacundás e traíras. Era ali, também, que tomávamos nosso banho diário, banhávamos os animais, e onde as mulheres lavavam as roupas da família.
Mal comparando, o Açude Novo existia para nós, como existe hoje o playground nos shoppings centers. Era ali que, durante o banho, nos divertíamos. Nadava quem não sabia nadar e acabava aprendendo.
Sebastião Luciano, nadador exímio sem nunca ter frequentado uma escola de Natação, era o eterno campeão do jogo “Galinha d´Água” (Sebastião trabalhou alguns anos como Salva-Vidas na piscina do Clube de Regatas do Flamengo, no Rio de Janeiro. Nunca precisou entrar na piscina para “salvar” alguém.
Certa vez teve que fazer isso para “ajudar” uma criança que estava se afogando, e quando saiu da água, estava literalmente nu, haja vista que seu calção não era de Salva Vidas, mas de Jogador de Futebol – Foi demitido no dia seguinte.
Esse jogo consistia em fazer saltar o maior número de vezes sobre o espelho d´água, uma pedra escolhida e aprovada pelos jogadores.
Quem fosse e voltasse mais rápido da margem do açude até uma árvore que servia de pouso e poleiro para as andorinhas – ficava cerca de 80 metros -, conquistava o direito de voltar para casa montando um dos animais. Quem não vencesse nenhum desafio, tinha que voltar para casa andando sem montaria.
E, o pior castigo para quem voltava andando, era aturar as ferroadas das mutucas, e se o caminho estivesse escuro, correr o risco de ser picado por cobra. A necessidade fazia com que ninguém perdesse todas as disputas.
A volta para casa acontecia sempre ao cair da noite, e quando chegávamos, o “de comer” já estava botado na mesa – o jantar era peixe cozido na “água grande” com um bom pirão. Depois, era beber o caldo, sentar na latada frontal da casa e ficar matando muriçoca e coçando as perebas das pernas ou as papocas d´água na sola dos pés.
Muitas vezes, a consciência do trabalhar na roça no dia seguinte, nos obrigava a dormir sem qualquer preocupação com a crise grega, a vida animalesca do Iraque ou as decapitações dos fanáticos religiosos. O que nos interessava mesmo era limpar cinco ou seis linhas de roça, colher o milho que já tinha sido virado, ou apanhar o feijão que já havia secado.
Esse continua sendo o segredo da longevidade no interior de muitos estados.
Quem imagina que a vida na roça é só “tudo de bom”, vive enganado. Claro que é um lugar de gente correta, que vive do trabalho e tem como direção o caminho traçado, definido e iluminado por Deus.
E hoje, domingo, não foi diferente. Domingo para quem nasce e faz questão de continuar vivendo na roça, só é domingo por conta da missa, dia do encontro formal com os amigos e com Deus.
Viver na roça, é usufruir do que Deus lhe dá.
Fui à missa. Rezei. Lembrei de pedir à Deus por alguns tantos que, a meu julgamento, precisam de Deus – mas, claro que Deus sabe mais que eu quem precisa d´Ele.
A manhã foi completada com o atendimento a uma mania. Reunir debaixo daquele juazeiro onde todos têm algo para contar – e para vender. Carne de bode, carne de porco, miúdos de porco, tripas de porco e carne de sol bovina.
Eu fui vender o que tinha: capote, ovos de capota, seis patos e nenhuma pata – obedeci a Vovó, que não permitia que vendêssemos fêmeas de nenhuma ave. Vendi quase todos – os ovos, um homem com ares de morador da cidade grande comprou todos. Garantiu que consumiria todos em gemadas.
A volta para casa e o almoço da Vovó. Hoje sei que o nome daquela carne é “chambaril” – mas Vovô achava a melhor comida do mundo para um domingo. Gostava de “bater o tutano” da canela, misturar com feijão de corda, rapadura e farinha. Era assim que entendia que teria forças para o trabalho na segunda-feira.
O almoço e a soneca na rede armada na latada frontal da casa. Sono reparador que só terminaria por volta das quatro da tarde para o café com beiju de massa de farinha. A volta para a rede na latada e o olhar contemplativo para o nada, que, de repente, mostrava os desenhos que o vento fazia com as nuvens. Como se essas estivessem mais próximas que o amanhã do Vovô.
A claridade do domingo estava indo embora. Cedia lugar à lugubridade noturna com a orquestra sinfônica das cigarras e de muitos grilos.
Repentinamente, o silêncio invadiu todos os espaços vazios dos sons possíveis. As cigarras pararam de cantar, e, seguidas pelos grilos, procuraram abrigo.
A chuva em preparativos para a poesia dos pingos
Abrigo de que?
Do vento. Da ventania. Da tempestade que chegava aos poucos, calando todos os taróis, bumbos, tambores e pianos usados pelas cigarras para nos impor aquela sonoridade da “boquinha da noite”.
A ventania amainou, mas trouxe consigo a chuva. De início, apenas uma neblina, que, aos poucos se transformava numa chuva mais grossa e pesada.
As cigarras e os grilos estão sempre certos. São parte da Natureza. Da Natureza do tempo, da Natureza do mundo, da Natureza de tudo e da Natureza da vida. São, por assim dizer, protagonistas do muito que existe. A chuva amainou. Diminuiu, mas as cigarras e os grilos continuavam envoltos nos seus lençóis e nos seus abrigos, onde provavelmente passariam aquela noite.
Eis que, tão repentinamente como chegara, a chuva forte estava indo embora – mas, poeticamente, trouxera o seu Pablo Neruda e a sua Cora Coralina, fazendo poesia.
O pingo e a poesia de Biaman Prado
Ali, pertinho de mim, a chuva calou as cigarras e os grilos que provavelmente só voltariam a cantar na noite seguinte, com a mesma sonoridade, nos embevecendo com aquela conhecida sinfonia que nos encanta, mesmo nos irritando.
No lugar do som estridente do grilo e da frivolidade das cigarras, a poesia dos sons era escrita, agora, por cada pingo que continuava premiando nossa sensibilidade, quando caía das telhas e percorriam uma distância de três metros no caminho da mais pura beleza.
E, Deus é tão bom, que nos permitia acompanhar a trajetória de cada pingo, e ainda nos permitia enxergar o quanto de poesia havia em cada um daqueles pingos, que também são protagonistas da Natureza.
OBSERVAÇÃO: Biaman Prado é um amigo, Fotógrafo, autor da foto do pingo poético.
Havia apenas aquela área livre em bom tamanho, no bairro. Foi aproveitado e reconhecido durante anos, como o “campo do Tropical” – e era ali que muitos tinham oportunidade de se iniciarem na prática do futebol amador, a caminho da profissionalização.
O campo do Tropical, era, digamos, a única área física disponível na Bela Vista. E era, também, a maior.
Eventos como, quermesses (que não conseguiam ou não tinham relação com a Igreja do bairro (Matriz de Nossa Senhora da Salete), festas juninas que dependiam de arraiais e outros eventos de maior porte, eram instalados no campo do Tropical.
Os jovens não aprovavam, pois, sua melhor diversão perdia o espaço por tempo indeterminado. Mas, eram obrigados a aceitar, e, em família ou com namoradas acabavam frequentando as diversões, fossem elas quais fossem.
Eis que, uma semana após o clássico futebolístico do bairro, cerca de quatro a cinco caminhões do tipo baú encostaram e estacionaram no campo do Tropical. Os passageiros começaram a descer e “vistoriar” a área, como se ela lhes pertencesse.
De um carro menor, o motorista desceu e falou:
– É aqui!
Em dois dias o Circo Itaguará estava “montado” e apto para os espetáculos circenses. Enquanto isso, os jovens do bairro ficavam privados do seu melhor e mais propício lazer: o futebol.
No primeiro fim de semana – sexta-feira, sábado e domingo – o circo estreou. Animais selvagens (um elefante que parecia mais velho que o próprio continente africano; um leão que demonstrava ser bisavô do “Rei Leão”; alguns macacos e vários trapezistas em evoluções que chamavam a atenção da plateia.
Chegara o momento mais esperado: o palhaço e suas palhaçadas, algumas muito conhecidas, mas que só tinham sido vistas pela plateia nos filmes exibidos nos cinemas.
De repente, o silêncio tomou conta da plateia. As luzes foram apagadas e aquele clima nostálgico se fez presente. Debaixo do único facho de luz que havia sob aquela empanada circense, o palhaço pediu a atenção da plateia para um pronunciamento.
– Senhoras, e, senhores muito boa noite. Peço sua atenção para minha pequena fala.
Chegamos aqui no começo da semana. Trabalhamos com afinco e sacrificamos nosso descanso para que tivéssemos a oportunidade de lhes oferecer a estreia nesta noite de sexta-feira. Conseguimos. Estamos plenamente satisfeitos com o público presente, nosso combustível para a vida e a diversão. Mas, infelizmente, amanhã iniciaremos a desmontagem da nossa vida que pretendia oferecer a todos uma diversão sadia e profissional. Partiremos, provavelmente no domingo. Muito obrigado pelo comparecimento que só nos incentiva e dignifica.
Incrédulo, o público presente se manifestou em uníssono:
– Ooohhhhh!
O palhaço triste com a partida
O palhaço, agradecido, voltou a falar: “mas, hoje, o espetáculo continua. Procuraremos fazer o nosso melhor para retribuir a atenção que nos foi dada”.
As luzes foram acesas, o elefante velho voltou ao picadeiro e fez as maiores e melhores estripulias que um animal domesticado poderia fazer. Parecia ter ouvido e sido atingido pelo discurso de despedida do palhaço.
Trapezistas evoluíram. Macacos divertiam. Aquilo não parecia uma despedida. Mas, infelizmente, era.
Fim do espetáculo.
O público entristecido deixava as cadeiras e as arquibancadas. No portão que fora entrada, e agora saída, um palhaço-mirim em lágrimas, entregava uma rosa a cada espectador, ao tempo que murmurava:
– Muito obrigado!
Palhaço-mirim
Na tarde daquele domingo da mesma semana, o campo do Tropical virava local de diversão para o clássico Tropical x Avante.
Foi quando o jogador “Acarape”, com voz e sentimento filosofal, garantia:
“Os sonhos mais lindos sonhei! De quimeras mil, um castelo ergui! E no teu olhar, tonto de emoção, Com sofreguidão, mil venturas previ!
O teu corpo é luz, sedução! Poema divino cheio de esplendor! Teu sorriso prende, inebria, entontece! És fascinação, amor!”
Ontem eu sonhei. Sem sequer imaginar alguma petulância, no sonho, eu era Don Quixote e caminhava ao lado do Sancho. Procurávamos um moinho, pois o vento era, naquele tempo, os nossos corações – e a vida precisava ser mantida. Soprada. Impulsionada com movimentos da esquerda para a direita.
Que fosse até mesmo um redemoinho. Mas que fosse, a princípio, de vento. O vento que carrega nuvens, e, às vezes, também provoca tempestades. É a natureza do vento.
Eis que, num olhar despretensioso, de soslaio, Sancho – o mais fiel dos escudeiros – descobre no horizonte o balançar das folhas de uma palmeira. Baixinho, para não me assustar e acordar, diz:
– Senhor, temos ventos!
Incontido olhei e confirmei o aviso, ao tempo que disse:
– Não temos apenas ventos, Sancho. Temos o moinho!
Quixote comemora com Sancho o Moinho dos Ventos
Queimadas, quase todos já sabem, foi (e ainda é) o povoado onde vim ao mundo no dia 30 de abril. Meu primeiro banho (contou minha Avó) foi com água retirada da raiz da mucunã. Era tempo de seca total. A bacia (também contou minha Avó) não era grande, pois o menino era pequeno e a água era pouca.
Na cozinha a parentada cuidava do almoço: galinha caipira com pirão de parida para a mãe; patos e capotes para quem os podia comer. E gostasse.
Na sombra da frondosa mangueira do quintal, dois ambientes. Num, a limpeza preparatória dos patos e capotes; e, noutro, o Avô moía o milho para o pão-de-milho (hoje, cuscuz) sendo perturbado pelos pintos que se aproveitavam dos farelos que saltavam.
O pão-de-milho feito num prato, com a massa molhada aparada por um pano de prato, e posta a cozinhar no vapor da água fervente de uma panela.
Moinho antigo que virou peça de museu
Galinha cozida e pirão de parida feito. Patos e capotes fartos, preparados em cabidela – havia quem preferisse sem o sangue. E era prontamente atendido.
Na camarinha, a parida recebia cumprimentos, ainda com o esfomeado recém-nascido lutando para encontrar o mamilo materno e sugar a delícia do leite.
Na cozinha a parentada acabara de comer e as mulheres se apressavam para lavar os pratos e as panelas. O quintal onde as aves foram abatidas e limpas, recebia agora um novo cenário.
Um jirau que também era aproveitado como mesa de uma beirada propositadamente preparada, recebia, agora, outro moinho: o de moer grãos de café torrados ao mel da rapadura e acrescentado com porções de mangirioba.
Na latada da frente da casa as visitas aproveitavam aquele delicioso café torrado e moído em casa. Leite de cabra, pão-de-milho, biscoitos e bolachas acompanhavam o tão famoso e desejado café da tarde.
Foi isso sim que, um dia, disse Martin Luther King em pronunciamento para milhares de americanos que, como ele, sonhavam com o fim das injustiças, iniciando pela segregação racial.
Pois, eu também tive um sonho. Sonhei de olhos abertos, pensando sempre em um dia poder viver num país diferente deste que os escroques de hoje nos impõem. Tive filhos. Ainda tenho filhos e sempre lhes ensinei o que de melhor aprendi com meus pais. Nunca transgredi pensando que isso (a transgressão) pudesse um dia lhes servir de modelo.
Errei, certamente. Mas errei tentando fazer sempre o melhor, por mim, por eles e principalmente por nós. E até hoje, vi que eles tiveram competência e discernimento para não repetir os meus erros.
Sei, existem muitos, que, não apenas não agem assim, como também não pensam em agir da mesma forma. Pouco se lhes importa o acerto, a retidão, desde que isso lhes mostre retorno material.
Não! Nunca pretendi imitar Luther King. Mas, um dia me vi – em sonho – navegando numa canoa em alto mar. Só eu e a minha companhia divina. A canoa do tempo que me levaria, sem curvas e titubeios, na direção da realização humana e social num país de gente livre. Livre e feliz!
Nesse sonho, ora me via como passageiro e ora era o próprio comandante, remando e puxando a água para ganhar velocidade, e para avisar ao mundo que a canoa, no mar, estava livre e que qualquer um poderia embarcar em algo que não pararia nunca.
Yes, I also have a dream!
E sonho com um País diferente, com práticas e conceitos modernos e evoluídos, mas, principalmente, humanos – e não apenas porque viraram modismo – na convivência entre famílias sem preconceito ou segregação racial e abertura de espaço para a prática religiosa de cada um.
E continuarei sonhando que, um dia, vamos protestar, reclamar, brigar pelos nossos direitos – sem estarmos dirigindo um carro e falando ao celular ao mesmo tempo. Sonho que um dia teremos a prática superando a teoria na cidadania.
Sim, eu sonho.
E, sinceramente, peço para não me acordarem nunca. Me deixem continuar remando e sonhando!
O calor abrasador se aproxima dos 40 graus. As sombras das árvores não têm muita serventia. Mas, ainda é na sombra, que transeuntes minimizam os efeitos do calor que se torna insuportável.
E a danada da chuva que não vem. Mas continuam as rezas para São José, o Padroeiro do Estado.
Fortaleza, capital do Ceará. Exatamente 10 horas e o sol continuava inclemente. Apressados, passantes procuram as sombras das árvores nas praças. A preferida é a Praça General Tibúrcio, local onde antes funcionou a sede da Prefeitura Municipal de Fortaleza, e naquele mesmo período, a sede da Secretaria de Segurança do Estado.
Ali naquele logradouro aconchegante, o calor é amenizado com ares de oásis e fica melhor ainda se você sentar numa cadeira de um Engraxate para mandar dar um brilho nos sapatos. Se você estiver muito cansado, é capaz de dormir, tamanho é o frescor da brisa que sopra.
Mas, o calor fortalezense também pode ser amenizado em outras duas praças, próximas uma da outra. A conhecida Praça dos Leões com vários acessos para a Rua Sena Madureira e bem próxima do antigo Mercado Central, e a mais conhecida, mas não tão bem arborizada, Praça do Ferreira.
Mas, ainda que sem a necessária arborização, era na Praça do Ferreira que ficava a pastelaria Miscelânea, hoje Leão do Sul, onde é servido o melhor e mais concorrido caldo de cana com o mais gostoso pastel com diferentes recheios.
Caldo de cana caiana
Próximo dali, na esquina da Rua Perboyre e Silva com Rua Floriano Peixoto, ficava o antigo Café Cearazinho, onde o café fazia ameaçadora concorrência para a Miscelânea – essa atravessou o século XX no auge do prestígio.
– Seu Zé, me dá dois pastel e um caldo!
– Cadê as fichas?
– Taqui!
– Pastel de que?
– Um de queijo e o outro de carne!
Pastel de carne e queijo (misto)
Bem distante dali, viajamos horas de avião, ou dias de ônibus, e chegamos a São Paulo. Antigamente, desembarcávamos na Estação da Luz, onde também funcionava o Terminal Rodoviário.
Agora, viajantes por via terrestre (ônibus) embarcam e desembarcam no Terminal do Tietê. São Paulo mudou pouco, se não levarmos em consideração a violência urbana. Quase tudo que existia no Centro da capital, ainda existe hoje. Pouco ou quase nada foi acrescentado.
Distante do Centro, chegamos numa manhã dominical à Feira Livre do bairro Limão, uma das mais concorridas de antigamente, que manteve algumas tradições. Como bares e restaurantes vendendo galetos e um excelente cupim bovino assado na roldana. Uma maravilha. O petisco, servido com pão de queijo e uma cerveja Caracu gelada, não tem concorrência.
Mas, é na feira livre que encontramos a novidade não tão nova assim. Caldo de cana com limão sem semente (para evitar amargar), ambos passados na moenda. Acompanhado de pastel com vários recheios preparados pelos “chinas”. Outra maravilha da vida. Irresistível!
Faz parte da nossa vida cultural e dos nossos hábitos cotidianos, não dar muita atenção à higiene do que se come fora de casa. Assim, o pastel frito na hora é aceito e comido de qualquer jeito. Nunca se soube se a massa ou o queijo estão com validades garantidas.
– O que tem nesse pastel, “china”? (na maioria das vezes o atendente é nordestino e nem se incomoda muito com a nova “naturalidade”)
– Carne de boi e azeitona!
Come-se o pastel até o fim e a azeitona não é encontrada. Da mesma forma, o pastel com recheio de camarão.
– “China” cadê o camarão desse pastel?
– Tu queres um quilo de camarão num pastel desses, é?
E assim, como diálogos desse nível, ainda se come o melhor pastel de São Paulo, acompanhado de um caldo de cana moído com limão.
Hoje sairemos da seriedade formal que impusemos a nós mesmos, quando recebemos o “convite” do então Papa Berto para colaborarmos com essa esculhambação que passamos a chamar de JORNAL DA BESTA FUBANA, o café da manhã de qualquer pessoa lúdica.
Voltaremos ao Túnel do Tempo, e assumiremos nossa verve cearense de tentar fazer “graça”, como se cômicos fôssemos. Traduzindo: vamos dar um passeio na sacanagem – e, sinceramente, não encontramos lugar melhor que este. Principalmente num domingo chuvoso, onde peidar balançando na rede tacando o pé na parede é o “azulzinho” que levanta qualquer astral.
Que eu me lembre bem, foi o Santo Papa Berto o descobridor do ato de peidar. Segundo teses e teorias pesquisadas e apresentadas em Harvard, Berto é o candidato mais forte e o virtual ganhador do Prêmio Nobel do Peido, que será anunciado no próximo dia 30 de fevereiro deste ano de 2025.
Defendendo a tese, em livro inédito de quase 600 peidos, ops! quase 600 páginas, Berto desenvolveu uma tese, onde afirma que, “mijar peidando é a mais lúcida e elogiável forma de tratamento conhecida da velhice”.
Aprendeu e desenvolveu (como faria tamanha afirmação, não fosse a prática, num determinado banco de determinada praça em Palmares, próspero e peidável município pernambucano?) jogando e ganhando na Roleta do Cu-Trancado – esse tem problemas, exatamente por trancar o fiofó para não peidar quando faz rolar a roleta.
Pois, eis que, deitado naquela rede tijubana descolorida após uma suculenta feijoada de fava rajada com pés, orelhas, rabinhos e costeletas de porco, e uma boa talagada de cachaça Sanhaçu, tacando o pé na parede, usufruímos de um som que foi partida inicial para muitas valsas vienenses – o acalento do barulho feito pelo “ranger” do armador de rede enferrujado.
Um barulho que jamais esqueceremos. Principalmente se, entre uma tacada de pé na parede e outra, coçarmos a frieira na beirada da rede – e, aqui e acolá, peidando!
Mijar peidando é prêmio e início de qualquer terceira idade!
Todos merecemos essa indispensável experiência. Né não Pancho e Jesus de Miúdo?
Armador de rede enferrujado
Quem não gosta de som, é o cachorro. Tem medo. Corre léguas, como se estivesse correndo atrás de um carro nas cidades do interior, quando escuta explosões de fogos juninos.
Mas, eu, gosto de sons, tanto quanto Ariano Suassuna gosta de doidos. Sons inebriam, fazem sonhar e nos transportam para as estrelas como se fossem uma poesia do Xico Bizerra nas suas melhores performances.
Duas cigarras cantando
Agora, existem outros sons, claro. Todos bons de ouvir. O som da sirene tocando o fim do expediente, ou o som da sirene tocando a hora do recreio no colégio, coisas maravilhosas!
Ouvir o som da sirene do carro-pipa dos Bombeiros chegando para apagar qualquer incêndio, contrastando com o som da ambulância para levar algum paciente ao hospital, um é bom, o outro, não.
E, finalizando, vi dia desses, o paraibano Zé Lezin, num vídeo do Tik Tok, teorizando sobre o som – claro que, muito distante da tese do mijar peidando desenvolvida pelo Papa Berto – afirmando, entre tantas coisas que, o som de uma jovem mijando num vaso sanitário, se assemelha muito com o cântico de duas cigarras naquela ópera sertaneja; e, acrescenta Lezin, que, o som de uma idosa mijando, se assemelha muito com o som produzido por um cachorro bebendo água numa lata.
O passado me faz bem. Gosto muito do meu passado e os sofrimentos da infância no seco sertão do Ceará serviram como limadores rítmicos e polidores da minha (nossa) vida.
O que nos machucou na juventude, também já entrou no livro dos acasos e dos incentivos para vencer na vida, sem tergiversar ou prejudicar o próximo.
Aprendemos, no passado e com o passado, a respeitar o próximo (e até o adversário, caso exista), e se necessário, conviver com ele de forma harmoniosa e sem rancor.
Por ter me proporcionado felicidade, o passado me faz bem. Gosto do passado, e das coisas do passado – tanto que devo seguir o conselho matuto de Jessier Quirino e arrumar as malas para viver em Pasárgada. Vou-me embora para lá.
Hoje resolvemos falar um pouco de duas profissões tão importantes num passado não tão distante, que o tempo e o modernismo atual estão destruindo, mandando-as para o “Asilo dos Velhos e Imprestáveis”.
Quero falar do Alfaiate e do Sapateiro.
“O único homem que eu conheço que se comporta sensatamente é o meu alfaiate; ele toma minhas medidas novamente a cada vez que ele me vê. O resto continua com suas velhas medidas e espera que eu me encaixe nelas”. George Bernard Shaw
Nossa mania brasileira de arrumar dia para toda profissão, determinou que, o dia 6 de setembro sempre foi dedicado ao Alfaiate.
Recorri profissionalmente a um Alfaiate, depois de adulto e quando passei a comprar tecidos para fazer roupas. Durante os anos que morei no Rio de Janeiro, por conta do clima frio ao qual não estava acostumado, me habituei a comprar tecidos na loja R. Monteiro, a maior do ramo, que funcionava na Rua Uruguaiana – recentemente voltei ao Rio e não encontrei mais a loja.
Antes, todas as roupas (não havia o hábito de comprar roupas feitas nas lojas) que usei foram feitas por Costureiras. Me senti realizado quando, pela primeira vez precisei ir ao Alfaiate, para que ele “pegasse minhas medidas”. Me senti mais realizado, ainda, quando fui pela primeira vez “provar” uma roupa feita pelo Alfaiate.
Pois, no modernismo de hoje, lamentavelmente, começamos a perceber que o Alfaiate está sumindo. Está deixando de ser a profissão respeitada que sempre foi, com a qual muitos pais mantiveram honestamente suas famílias.
Alfaiate
A outra bela e nobre profissão é a do Sapateiro. Sempre foi o Sapateiro quem moldou nossos sapatos para que não sofrêssemos tanto com os joanetes. Da mesma forma, sempre foi o Sapateiro que, batendo martelo num pé-de-ferro, botou “meia sola” ou “sola inteira” nos nossos sapatos, quando nossos pais não podiam comprar um novo par – e quando ainda não havia o Vulcabrás 752 ou os sapatos descartáveis de hoje.
Os sapateiros sempre trocaram as “virolas” dos sapatos femininos, trocando saltos, recolocando peças que contribuíram definitivamente para a beleza e elegância femininas.
Não sei vocês. Mas, eu, quando moleque na faixa etária de 8 a 10 anos, tinha o costume de aproveitar as bandas da gilete Blue Blade, quebrada e usada pelos irmãos mais velhos para raspar as barbas, e me deliciava no difícil trabalho de cortar e comer a pouca polpa da macaúba.
É. É essa mesma “Acrocomia aculeata”, conhecida popularmente como “macaúba”, que, embora soltasse uma baba instigante, era largamente consumida pela meninada.
Fora do Ceará, pode ser encontrada com outros nomes, como macaíba, bocaiúva, coco-baboso (e aí, no Ceará, esse nome muda de figura e é conhecido como coco-babão, dado ao catolé), coco-de-espinho e até chiclete-pantaneiro.
Palmeira da macaúba carregada de frutos
Pois, eis que, a EMBRAPA (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária) acaba de oficializar após anos de pesquisas e testes, que a “macaúba” é mais uma opção para a produção do óleo diesel – e, ao que parece, por conta do pouco número de palmeiras no território brasileiro, vai passar a produzir mudas e orientar e incentivar o plantio desse novo diamante na incansável cadeia de produção de lubrificantes automotivos.
Para aqueles que ainda não conhecem a EMBRAPA, sugiro a leitura do livro “Sol da manhã”, que tem como autor JOSÉ IRINEU CABRAL, Economista, figura marcante como um dos responsáveis pela fundação dessa autarquia, que, nos dias atuais é reconhecida como a principal e mais importante empresa de pesquisas e implantação agropecuária do mundo.
Ali o leitor encontrará um compêndio informativo dos resultados das principais pesquisas e descobertas processadas no Brasil e utilizadas por agropecuaristas do mundo inteiro.
A Embrapa, vitoriosa e importante, acaba de completar 51 anos de existência e magníficos serviços prestação à nação brasileira e ao mundo.
Obra do “governo militar”. Obra da “ditadura militar”, como rotulam alguns adeptos da atual democracia vivida no Brasil.
Macaúba – o “coquinho” que vai produzir diesel
No Ceará, a macaúba é farta. Transportada em caçuás e surrões para os mercados e feiras, a macaúba nunca teve dias gloriosos. Sempre foi considerada uma fruta “desclassificada” ou preferida apenas pelos pobres.
Hoje, tanto quanto o babaçu, processada e beneficiada, a macaúba tem dezenas de utilidades como combustível e/ou alimento animal e humano.
Na guerra pela produção de lubrificantes e carbono verde, a macaúba chega como forte aliada e poderá, em breve, somar positivamente nos índices econômicos.
Ali pras bandas da Pacatuba, município situado entre Fortaleza e o povoado Queimadas, pertencente a Pacajus, João Ambrósio, agricultor meeiro que vivia nas terras de João Albano, latifundiário por herança, dono de quase todas as terras desses dois lugares.
Mas, quem não vivesse ali, chegasse e perguntasse por João Ambrósio, jamais encontraria. Principalmente das gerações de hoje.
Pois, menino já grande, saindo da infância para a adolescência, João Garrafão ostentava inocência naqueles quase dois metros de altura. Seria bom jogador de Basquete na NBA ou de Voleibol em qualquer paragem. João parecia ter nascido grande. Menino, obediente aos pais, duas vezes por semana João se deslocava até a bodega de Seu Messias para comprar meia garrafa de querosene – o pai preferia acender o candeeiro que, de noite, iluminava a frente da casa e parte de todo o quintal, muito mais que qualquer lamparina.
Pois, com trabalho imenso para preparar a montaria que usava na tarefa determinada pela mãe Argemira, João levava para a bodega do Messias uma garrafa enorme, antes usada por espumante nas comemorações natalinas da casa de João Albano. Uma garrafa que comportava cerca de 5 litros de espumante. Um exagero de garrafa. A meninada traquinas da mesma faixa etária não demorou muito para achar um apelido adequado para o então João Ambrósio: “João Garrafão”.
Anos se passaram. João casou e construiu família. Mas, João Garrafão não era chegado a passeios – talvez isso explique ter tantos filhos com Adalgisa, sua esposa querida – preferindo a labuta da roça e o chiqueiramento dos caprinos, ovinos e bovinos que criava, também como meeiro. João Garrafão vivia para o trabalho e para a família, que era um dos seus encantos.
Mas, como não há mal que dure para sempre, nem bem que nunca acabe, eis que certo dia João Garrafão recebeu a visita de um parente, que fazia anos mudara para a capital e até viajara para o exterior, antes conhecendo as praias do Rio de Janeiro. Carlos Alberto, o nome do parente.
Após dias curtindo as maravilhas (e enfrentando as dificuldades) da roça, Carlos Alberto convidou João Garrafão para “desanuviar” um pouco daquele trabalho contínuo e pesado da roça e passar alguns dias na capital. Garrafão aceitou, mas sugeriu levar a mulher Adalgisa consigo. Carlos Alberto concordou, e prepararam a viagem, antes, deixando tudo pronto em casa para que os filhos não enfrentassem problemas.
Numa noite, em conversa na “latada” da frente da casa, João Garrafão confidenciou a Carlos Alberto, que, ele e Adalgisa desejavam muito conhecer o mar. É, o mar. Esse mundão d´água que nos delicia nos fins de semana, cuja exposição ao sol nos dá um bronzeado.
Carlos Alberto garantiu que, conhecer o mar seria o presente que ele ofereceria ao casal de parentes.
O dia da viagem chegou. Tudo pronto. Tudo arrumado. Os filhos foram devidamente avisados, recebendo recomendação para a alimentação das cabras e bodes, carneiros e ovelhas e bois e vacas. O leite deveria ser retirado toda manhã na ordenha corriqueira, e enviado para o destino certo (uma fábrica artesanal de queijos, como de costume pertencente a João Albano).
Carro preparado. Bagagem pronta, e a viagem (na realidade, nada mais que uma semana de férias para “desanuviar” o stress de cada dia naquelas brenhas). E, lá se foram.
– Fiquem com Deus! Não esqueça as recomendações, disse João Garrafão ao filho mais velho. Até a volta.
– Vá e volte com Deus, disse o filho.
Mar verde e diferente do azul que João Garrafão conhecera
Carlos Alberto sabia de cor e salteado que estava realizando um dos sonhos do parente João Garrafão e de Adalgisa. Levá-los a conhecer o mar pela primeira vez, era investir na felicidade do parente, envolvido somente com o trabalho na roça, que, inúmeras vezes lhe recebera com tanto cuidado e carinho. Não custaria nada, agora, tentar retribuir. E foi isso que Carlos Alberto fez, num dia que não havia tantos banhistas na praia.
Todos foram à praia.
Após estacionar o carro, Carlos Alberto recomendou que o casal ficasse descalço para sentir a energia que era a liberdade de pisar na areia daquele mundão. Dito e feito. Carlos Alberto segurou as mãos do casal e caminhou lentamente pela areia a caminho do mar, exatamente na hora da arrebentação.
Carlos Alberto olhou para João Garrafão e Adalgisa e nada mais viu que não um êxtase transformado em silêncio total. As lágrimas de alegria e admiração rolavam dos olhos daquele homem rude, pouco letrado, mas muito perspicaz. – Deus do céu! Balbuciou João Garrafão, falando para si em agradecimento à Deus, por momento tão significativo para ele, que, antes, só conhecia as águas e a vazante do Mundaú, o açude que ajuda na agricultura em Pacatuba.
O silêncio continuou e a companhia do êxtase se configurou numa frase de João Garrafão:
– Obrigado meu Deus, por tamanha alegria! Disse João Garrafão em agradecimento ao Criador.
– E o mar é azul, que coisa linda!
Extasiado com o que vira, João Garrafão se deu conta que precisava voltar para Pacatuba e continuar cuidando da roça, dos filhos e das criações que dividia apenas o lucro com João Albano.
Na volta, e já em casa, João Garrafão pegou uma caneca com água da quartinha e sentou num cambito colocado ali na latada para facilitar a arrumação da montaria, quando precisasse. Sentado, sentiu a presença do filho mais velho que queria “prestar conta” dos acontecimentos durante sua ausência e da mãe. Mas, quem falou primeiro foi João Garrafão:
– Filho, eu vi o mar! Que coisa linda, e é muita água. Água salgada e a beleza maior está na cor. O mar é azul! Agora, aqui, com essa caneca na mão, olho e vejo que a água não tem cor. Chamam de incolor. Mas, Carlos Alberto me disse que, ali é azul, mas em outros lugares é verde. Deve ser outra beleza. E ele garantiu que também existe o mar vermelho. Será verdade? O que vi e comprovei era azul. Com certeza é coisa de Deus. Fico imaginando a felicidade de Jesus Cristo caminhando sobre as águas. Aquele mundão azul!
Mar com água vermelha como garantiu Carlos Alberto