Texto escrito em parceria com a Professora Maria Caramujo
I. O FILHOTE DE SABIÁ
O sabiá sangrava, talvez para fazer Bastião sentir-se forte. Parecia que havia no menino – ao menos em parte dele – um vampiro cuja vaidade era alimentada com sangue. De fato, existem pessoas assim: precisam de ferir o alheio para julgarem-se heroicas e prezam por diminuir o outro para sentirem-se maiorais. Bastião, tão moço ainda, aparentava ser destas. Roguemos ao oratório dos tempos por sua evolução.
Nesse momento exato, Severino saíra pelo portão azul-céu de sua escola, deparando-se, na calçada daquele lugar, com o que parecia ser o retrato falado do inferno: três a quatro colegas parabenizavam Bastião e apontavam eufóricos para o filhote de sabiá gravemente atingido.
Severino assistira à cena encharcado no vinho da compaixão. As batidas de asas agonizantes da pequena ave, davam o compasso das batidas de seu coração de menino bom. O sofrimento do pequeno sabiá emprestava a cadência ao tom do sofrimento terno daquele menino.
Era maduro Severino, apesar de sua pouca idade, contava com incompletos oito anos; era, ou deveria de ser, o princípio de sua maturação e todos os princípios são espinhosos. Parecia que Severino fora amadurecido em carbureto. Nada para Severino chegara florido, mas ele tratava de plantar, regar, enfeitando assim os campos da vida – atitudes comuns às almas elevadas e livres de amarguras. Primaverava no viver, aquela criança.
Mesmo sem rancor, não entendera o motivo da diversão em se matar uma ave não-comestível só por brincadeira.
– O cantar do sabiá é tão lindo e verdadeiro que parecia até mentira calá-lo só por maldade. Que surdez de alma seria aquela do colega? Qual o nome dessa brincadeira desumana, onde o término se dá com fins extremados para os participantes: um ri vitorioso, o outro é ferido para morrer? Refletiu tomado por indizível tristeza.
Severino observara que até a baladeira parecia sorrir. Somente ele e o pássaro não compartilhavam daquela euforia perversa.
– O sabiá! gritou saindo de seu momento de distração e voltando o seu olhar para os olhos do sabiá. – Seus olhos estão sem alma, pensou estremecido no frio da desilusão.
O nosso menino não conteve as suas lágrimas. E foi com devoção hierática que o corpo do bichinho fora movido para o andor de seus braços e, com extremo pesar, levado em procissão solitária, para ser enterrado. O amor ofertado por Severino dispensava orações, mesmo assim ele as fizera.
Severino só não fazia chover, mas de tudo ele inventava. Não havia mau tempo no tempo que ele criava. Tratou logo de plantar uma árvore onde enterrou o corpo do animal: onde fora despedida seria encontro; onde fora morte, seria vida. Todos os dias então, ele iria ver a plantinha e visitar o sabiá. Logo o sorriso voltara à face de luz de um candelabro conhecido por Severino.
Os coleguinhas riam tanto dele, mas ele nem ligava. No bairro em que Severino morava a água só chegava às torneiras uma vez por semana, mas mesmo assim, ele dividia a água do banho com a plantinha; um pé de goiaba. Por aquele cantinho ser especial para ele e em memória ao cantar da ave que fora ali sepultada, pôs nome e placa no lugar. O menino escreveu caprichosamente, usando um resto de tinta branca encontrada no lixão, em um pedaço de pneu velho: O canto da Goiabeira.
II. O DIA DA INDEPENDÊNCIA
Severino era diferente dos outros meninos de sua idade. Gostava de flores e de borboletas. Plantava beldroegas ao redor da casa, para que as borboletas viessem até ele. Ele tinha um sinal no queixo que diziam parecer com um besouro. Nossa! Como ele gostava da ideia de ter um besouro no queixo.
Como seus pais eram catadores de lixo, um adulto certa vez dissera que ele já tinha a catinga impregnada ao corpo. Ele mesmo sendo tão pequeno, sentiu-se constrangido e criou a rotina de passar alfazema braba na pele para tentar ficar cheiroso e não causar incômodos.
Ele jamais sentira o odor fétido do lixo, não porque se acostumara, mas porque focava no aroma das flores. Aquele cenário cinza do lixão, nunca lhe pertencera, nem tampouco ele ao lugar. Severino era a vegetação do sertão, a chuva matando a sede do chão rachado, era a diversidade de sons dos bichos livres persistindo pela vida, era o vento balançando os galhos secos, era a sombra de amor na aridez da indiferença tosca e era, por fim, uma luz infinda aos que nas sombras restaram.
No quintal da casa dele tinha um pé de bucheira. Essa criança esfregava tanto a bucha vegetal em seu corpo, tentando tirar o mau cheiro que o lixo deixara, que muitas vezes ferira a sua pele (vestes da melhor alma que ali já passara).
Mal sabia Severino que sua alma ingênua exalava o aroma mais puro dos lírios sublimes do paraíso. Que o lixo atingira a camada de sua epiderme, mas que a limpidez de caráter chegava desinfetar parte do mundo.
Era sete (07) de setembro. Como ele gostava daquela data! Amava o seu país e as cores de sua bandeira. Afirmava com rigor “que pertencer ao país com a maior verde-mata em sua bandeira, era ser escolhido por Deus para ser um defensor da natureza”.
Caprichou mais que de costume em seu banho. Caminhou para a sua escola com a responsabilidade nas costas de um estadista. O menino parecia ouvir a cadência da banda marcial e então…ele marchava, com toda sua verdade. Postura corporal irrepreensível a combinar com a de gestos. Peito estufado de orgulho de sentir-se pertencente à Pátria Gentil da Natureza.
Ao despedir-se da mãe naquele dia, bradou com voz de comando: – minha mãe, o seu filho acaba de ser convocado para uma missão tática especial. Sempre a postos para a pátria. A mãe balançou a cabeça com um sorriso tímido nos lábios já tão rescaldados pelo tempo e, com os olhos opaquecidos de quem há muito teve qualquer rastro de esperança jogado no lixo. Abençoou sem ânimo o seu filho.
Ao chegar à concentração em frente à Escola Calixto dos Anjos, ele estava mais suado que de costume. Gastaria energia demais ao deslocar-se em marcha em seu percurso habitual – cinco (5) quilômetros de casa até a sua escola.
Nenhum remanescente perto do menino. Parecia carregar consigo o efeito granada: aonde Severino chegava todos se afastavam.
– Será que estou parecendo um comandante e os meus soldados se intimidam em estarem por perto? Fui zeloso demais, meu Deus, me excedi…refletia com ares de culpa, aquele menino tão bom o quanto sonhador.