JESUS DE RITINHA DE MIÚDO

O saudoso Gabriel Severiano, bodegueiro em Acary (RN), terra deste colunista

Tenho muito pensado ultimamente
O progresso às vezes é tacanho
E nos traz prejuízos sem tamanho
Nos deixando mais pobres no presente.
Quantas coisas eu trago em minha mente
Outro tanto o meu peito é quem carrega
E a saudade que em mim nunca sossega
Só me traz coisas ricas do passado
Eu não quero o maior supermercado
No lugar que guardei minha bodega.

Dessas minhas lembranças que são caras
De nenhuma eu quero esquecer
Fecho os olhos somente para ver
Certas coisas que hoje são tão raras.
É memória que a nada se compara:
Uma roda de homens educados
Conversando em nada apressados
E por trás do balcão quase dormindo
Um feliz bodegueiro se sentindo
Como o dono de mil supermercados.

Numa caixa de vidro e de madeira
Ele tinha biscoito, broa e pão,
Afastados das barras de sabão,
Do arroz, do feijão e da brejeira.
Tinha açúcar, farinha e peneira,
Margarina, sal fino e chinelas,
Penduradas no teto umas panelas
Sobre vinhos, cachaças, aguardentes,
Frisos, ligas, marrafas e dos pentes
Noutro canto pendiam mortadelas.

Uma faca comida pelos anos
Enfiada na barra de sabão
Era amiga do fumo, lá no chão
Repousando em rolos sobre panos.
Na entrada eu via dois bichanos
Bem deitados no meio do portal
Tinha um maço cortado de jornal
Que servia de embrulho num momento
Para não se perder no vem do vento
Repousava seguro sob um pau.

No balcão de azuis já renovados,
Alguns cremes, perfumes de bons cheiros,
Brilhantinas, espelhos e isqueiros,
Cada um por um vidro separados.
Os cigarros ficavam bem guardados
Mas, com uma carteira a granel
Tinha agulha, tesoura, carretel,
Mais os fósforos… vela, lampião!,
Vermelhando o azul desse balcão
A balança honesta em seu fiel.

Numa peça de vidro que rodava
Os confeitos e doces, mais chicletes,
Chocolates baratos em tabletes,
Pirulitos ali também se achava.
No cliente o dono confiava
E nem sempre vendia no dinheiro
Se por cofre se tinha o gaveteiro
Escondido num canto do balcão
A palavra valia tal cartão
E por pix a fé do bodegueiro.

Lá no teto, se olhar atentamente,
Vejo até na lembrança me tomando
Uma aranha sem pressa projetando
Um tear de saudade em minha mente.
Tudo isso eu vejo no presente
Me chegando em pontos bem lembrados
Como um velho caderno de fiados
Caderneta escrita no guardar
A bodega gostosa de lembrar
Que não dou nem por mil supermercados.

32 pensou em “BO(DEG)A LEMBRANÇA

  1. Obrigado pela homenagem aos bodegueiros do Brasil e em especial a esse da foto que é o meu saudoso pai. Só você com sua inteligência brilhante prá fazer um texto primoroso desse!

  2. Tanto comprava baganas , como vendia vargem de algaroba e pedra (minério) collombita
    Saudades desse tempo e de uma pessoa que atendia um menino, senhor e mulher da mesma boa maneira

  3. Raramente, ou talvez eu nunca tenha entrado na bodega de Gabriel, mas pelo que eu ouvia falar parecia ser sortida de tudo e mais um pouco como é citado na poesia. Parabéns Jesus pela bela poesia, e por lembrar da bodega de um homem ímpar que o velho Acari já teve.

  4. Por um momento me tele transportei para a bodega do meu pai, Zé Birro. Quantas lembranças boas da minha infância!!!!😍😍

  5. Parabéns pelo belo texto em forma de poesia, resgatando a memória das bodegas em que de tudo se vendia.
    Na sua descrição do cenário de uma bodega tendo como Gabriel como um dos ícones dessa época, também sinto-me parte dessa memória, é de certa forma homenageado, pois, meus trabalhos em Acari foram nas bodega de Pacanã, Gabriel e Chico da bodega.
    Gabriel foi um homem de pensamento progressista, era defensor da modernidade e de inovações.

    • Gabriel vivia no mínimo dez anos à frente do seu tempo.
      Os filhos souberam filtrar seus ensinamentos. Todos venceram na vida de uma forma muito digna!

  6. Sr. Gabriel da bodega. Lembro demais.! Figura impoluta em Acarí na nossa infância. Parabéns Jesus por brindar-nos com essas maravilhosas lembranças.

  7. E para quem pensa que memória não guarda cheiro, só imagem, saibam que nessas “vendas” predominavam os aromas do fumo de rolo, da pinga, da farinha de mandioca no saco de juta. Essas lembranças olfativas estão lá no arquivo dos cérebros de quem teve o privilégio de viver esse tempo. Se um dia algum desses elementos aparecer perto de seu nariz, vai desarquivar a lembrança.
    Quem puder, corra atrás desses aromas enquanto é tempo. Ouçam Jesus!!!

  8. Que lembrança!!! São muitas as saudades do do amigo querido, Gabriel. Velhos tempos que não voltam mais. Mas, as saudades, as lembranças continuam. Parabéns Jesus de Ritinha de Miúdo pelas suas poéticas.

  9. Danou-se! Acabei de fazer uma viagem! Maravilha Jesus, a sua narrativa nos transporta no tempo. Me vi menino/adolescente, dentro da bodega de Gabriel.

  10. Olá primo, lembrei-me do Armazém Chaves, da minha infância em Olinda. Minha saudosa mãe entregava a caderneta com o que precisava comprar e cuspia no chão. Tínhamos que voltar antes de secar. Você como sempre, consegue colocar isso no papel. Saudades.

  11. Parabéns pela bela escrita, Jesus! E foi através dessa bodega, com trabalho e honestidade, que meu saudoso pai criou e educou nossa família! Só agradecer pela lembrança, amigo!

  12. Grande poeta Jesus de Ritinha de Miúdo:
    Seus versos hoje atravessaram minha alma e me fizeram enxergar por trás desse balcão, um outro bodegueiro, Francisco Bezerra Souto, meu saudoso e amado pai, que em Nova-Cruz (RN), habitou esse cenário por mais de cinquenta anos, até ser acometido por um AVC e se tornar inválido.
    Confesso que senti uma emoção imensurável, lendo sua belíssima crônica em versos, em homenagem ao “saudoso Gabriel Severiano, bodegueiro em Acary (RN)”, sua terra natal.
    Parabéns pela beleza dos versos e pela divina inspiração!!!

  13. Jesus, poeta imenso! Essa poesia está, como falara o ministro, “imexível”! Homenagem extensiva aos bodegueiros de nossa saudade e do imaginário popular. Senti saudades de Gabriel sem ter tido a honra de conhecê-lo. Obrigada por compartilhar amor nesse mundo áspero de guerras.

  14. O amigo Jesus, na magia da genialidade das palavras, nos transporta para o Acari do nunca mais, da nossa infância, na bodega do saudoso Gabriel.

  15. Esse Severiano-cananeia tem registro seguro em minhas memórias. Em dezembro de 1980 eu trabalhava na Geral mineração em Acari e numa sexta feira a noite fui avisado por um colega que uma empresa de mineração com sede no Rio de Janeiro faria uma seleção na manhã seguinte em Natal.
    Como eu estava completamente liso, fui imediatamente à bodega de Gabriel pedir emprestado o valor da passagem de ônibus ida e volta, uma quantia que não recordo mas que ele prontamente me emprestou. Aquela entrevista mudou de tal forma minha trajetória que tudo o que me ocorreu nos 35 anos seguintes decorreu de ter chegado a tempo de participar dela. Gratidão infinita ao primo Gabriel e a José Cosme o colega que me avisou a tempo

  16. Pingback: RETORNOU 60 ANOS NO TEMPO | JORNAL DA BESTA FUBANA

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