VIOLANTE PIMENTEL - CENAS DO CAMINHO

Antigamente, quem descia a Rua Padre Pinto, em Natal, bairro da Cidade Alta, no sentido do bairro do Alecrim, se deparava com duas bifurcações: uma passava pelo famoso Cabaré de Maria Boa e a outra ia dar no Cemitério do Alecrim. Por isso, essa rua foi apelidada, pelos “patriotas” cachaceiros, de Avenida “Independência ou Morte”. Assim, ouvi contar o meu saudoso tio Arsênio Pimentel, homem muito inteligente e espirituoso.

A bifurcação que passa pelo Cemitério do Alecrim é a chamada Avenida Rafael Fernandes. Essa Avenida se popularizou como Avenida do “Traque Eterno”, tendo em vista beirar o canal do Baldo, onde desembocam os dejetos e esgotos de alguns bairros de Natal. Sempre exalou um terrível fedor. Ninguém aguentava passar por lá, sem tapar o nariz, fosse a pé, de carro ou de ônibus.

Nesse tempo, não se falava em Covid, e máscaras eram produtos de uso hospitalar ou de festas à fantasia. As máscaras eram muito usadas e ornamentadas, somente para os bailes de carnaval.

Os natalenses mais antigos sempre se referiam à Avenida Rafael Fernandes, como Avenida do Traque Eterno”.

Para o pedestre que precisasse se deslocar do centro da Cidade Alta para os bairros do Alecrim e das Quintas, esse caminho era um suplício, mas a única opção. Precisavam respirar profundamente, tapar o nariz com a mão e ir adiante, marchando como um soldado e apressando o passo.

A Avenida Rafael Fernandes (Avenida do P. Eterno ou “Traque Eterno”) saía da Rua Padre Pinto (“Independência ou Morte”).

Zé do Fuxico, natalense e boêmio, quando tomava uma, coisa que fazia todos os dias, só falava rimando. Amante de mesa de bar, e sempre liso, era um cordelista nato e ninguém notava. Uns gostavam, outros não, pois às vezes sentiam-se ridicularizados por ele.

Por causa dessa inofensiva peculiaridade, uma vez por outra, algum colega de copo batia de frente com ele, por não ter gostado da rima de que fora a inspiração. Quanto mais Zé do Fuxico bebia, mais falava rimando.

Certa manhã de sábado, estava ele com amigos, bebendo no Bar de Mário, puxando o fogo e falando em rimas:

“Ai, meu Santo Antão! Chegou o demônio Sansão…
Quebrai a caneta dele junto com a terrível mão!”

Sansão, um cachacista que acabara de chegar, avançou para Zé do Fuxico , mas a turma do “deixa disso” acalmou os ânimos.

A presença de Zé do Fuxico em mesa de bar era sempre uma alegria. Mas, depois do 3º copo, pegava brabo por tudo. Era briguento.

Misturava toda qualidade de bebida e bebia até ficar “embalsamado” e adormecer na mesa. Os amigos iam levá-lo em casa, onde Conceição, sua santa esposa, o esperava, com ar de reprovação.

Certa manhã, enquanto Zé do Fuxico dormia, curtindo uma carraspana fenomenal, sua esposa o deixou dormindo e saiu para o mercado, deixando-o trancado. Por precaução, levou as chaves. Quis evitar que ele “ganhasse o mundo”, se por acaso acordasse antes dela voltar.

Não deu outra. Uma hora depois, Zé do Fuxico acordou com sede de bêbado e quando se viu trancado, ligou para a polícia pedindo socorro. Um conhecido dele prontamente o atendeu e foi lá arrombar a porta, cuja fechadura “havia se quebrado”.

Pra se vingar da esposa, passou a noite toda na rua, e só voltou no dia seguinte, “cheio de razão”.

Mais um batente, para a ameaça da separação, que nunca houve.

4 pensou em “AVENIDA “INDEPENDÊNCIA OU MORTE”

  1. Violante,

    Parabéns pela excelente crônica com uma explicação bem-humorada sobre as ruas e avenidas de Natal. Gostei demais da conta das histórias de Zé do Fuxico, boêmio, que falava rimando quando tomava umas lapadas de cana. Há pinguços que têm a mania de filosofar; outros, de contar vantagens e alguns de serem ricos (esses diminuiram bastante com a crise pós-pandemia).

    Aproveito a ocasião para contar um episódio do repentista Severino Lourenço da Silva Pinto (1895-1990), mais conhecido como Pinto do Monteiro, uma referência à cidade natal, localizada no estado da Paraiba. Vale ressaltar que Pinto do Monteiro gostava de tomar uma caninha para afinar a voz na cantoria. Ele possuia, além da extraordinária capacidade de improvisação, destaque pela métrica dos versos, impecavelmente preciso e pela ironia das respostas.

    Um dos seus grandes parceiros foi Lourival Batista (1915-1992), natural de São José do Egito. Pinto do Monteiro voltara do Acre havia pouco tempo, doente, quando Lourival o provocou porque ele recusara a “tomar uma”:

    Pinto foi pro Amazonas
    Pensando que enriquecia
    Além de não arrumar nada
    Se esqueceu do que sabia
    Nem canta como cantava
    Nem bebe com bebia.

    Pinto fulminou com versos que ficaram na memória de quem aprecia a poesia pura do repente:

    Essa sua cantoria
    Não me deixou satisfeito
    Nunca me faltou lembrança
    E muita força no peito
    E a boca de beber
    Ainda está do mesmo jeito.

    Desejo um final de semana com paz, saúde e harmonia

    Aristeu

  2. Obrigada, prezado Aristeu, pelo gratificante comentário e por compartilhar comigo este excelente episódio, havido entre os poetas repentistas Pinto do Monteiro (1895- – 1990) e Lourival Batista (1915 – 1992).. Adorei!

    São admiráveis a perspicácia e o talento desses dois poetas repentistas, que engrandeceram e engrandecem a Cultura Nordestina!.!

    Desejo a você também, um final de semana pleno de paz, saúde e harmonia!

  3. Zé Fuxico, coitado. Tá melhor do que o cara bêbado que fica batendo palmas na porta de casa e o vizinho diz “acho melhor dizer que ele mora só”

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *