RODRIGO CONSTANTINO

Já comentei neste espaço a política de estímulo do governo Joe Biden, questionando quem pagaria a pesada conta – e concluindo que seria, como sempre, o mais pobre. Volto ao tema para mostrar como o radicalismo do plano econômico do atual presidente vem assustando até mesmo economistas mais próximos dos democratas.

Biden traz uma visão de Estado hipertrofiado e hiperativo que só se viu na história norte-americana no governo Roosevelt, numa época de grande depressão e quando as ideias keynesianas ainda não tinham sido devidamente refutadas pela teoria e prática – como aconteceu com a estagflação da década de 1970. Essa mentalidade, mais parecida com a da esquerda retrógrada latino-americana, despreza o livre mercado, ignora a escassez dos recursos e idealiza a gestão pública, sem levar em conta toda uma teoria sobre as falhas de governo.

O ex-secretário do Tesouro Lawrence Summers, que endossa o plano econômico de longo prazo do governo, criticou veementemente a lei de alívio à pandemia de US$ 1,9 trilhão sancionada no início deste mês, chamando-a de a política macroeconômica “menos responsável” em décadas. Ao injetar muito dinheiro na economia no momento em que ela está prestes a ganhar força, disse Summers, Biden corre o risco de desencadear alta inflação.

Já Kenneth Rogoff, economista da Harvard, havia comentado no final de fevereiro sobre o plano econômico em geral: “Bem, isso pode surpreendê-lo, mas eu apoio amplamente. Acho que o presidente Biden tem de pegar o que puder enquanto pode, o que pode não ser por muito tempo. Sim, há muito gasto nisso, o que é realmente difícil de explicar. Não é relacionado à covid”.

Ele emendou: “Por que as pessoas que estão bem precisam de uma transferência? Talvez a forma como o dinheiro está sendo alocado para os Estados não seja a mais justa, mas, mesmo assim, é o que ele pode fazer politicamente. E, claro, isso não é um almoço grátis”. Esse desfecho já soa como um alerta, mas o economista, numa reunião com investidores, voltou a dizer que se trata de um experimento que não se pode ter certeza onde vai dar. Ou seja, parece mesmo um alerta!

Não é para menos. Em seu livro Oito Séculos de Delírios Financeiros (Elsevier Editora, 2010), com vastas pesquisas empíricas, Rogoff e Carmen Reinhart mostraram como os surtos de prosperidade criam as sementes das crises financeiras. A crença de que “desta vez é diferente” gera complacência e produz crescimento excessivo do crédito.

Os agentes econômicos deveriam, portanto, ficar muito atentos ao alerta dos autores: ‎“Como se demonstrou reiteradamente ao longo do tempo, os governos dos países emergentes tendem a considerar os surtos favoráveis como tendências duradouras, o que, por seu turno, atiça uma farra de gastos e de empréstimos públicos, que termina em lágrimas”.

Ao menos Rogoff mantém a crença de que investimentos em infraestrutura poderiam ter benefícios superando custos. Já os democratas mais radicais, como Paul Krugman, querem estímulo por estímulo mesmo, e dominam cada vez mais o mainstream democrata. Krugman chegou no passado a produzir um olhar de incredulidade em Rogoff ao defender, em debate ao vivo, que seria bom para a economia norte-americana se o governo “investisse” em uma hipotética defesa contra alienígenas, só para ativar a demanda por meio dos gastos públicos (inúteis). O perigo é os democratas “moderados” estarem cada vez mais parecidos com Krugman!

Não custa lembrar que o Prêmio Nobel de Economia de Krugman é por apontar falhas de mercado, mas o que essa turma toda sempre ignora são as falhas de governo. A realidade é imperfeita, e trocas voluntárias entre seres humanos imperfeitos jamais levarão a algum tipo de perfeição. A reação automática diante de um problema real do mercado é demandar a intervenção estatal: o governo vai resolver as tais falhas.

Mas será que isso ocorre mesmo? Será que, na prática, os governos conseguem resolver essas falhas de mercado? E as falhas do governo? A Public Choice School (também conhecida como Escola de Virgínia), fundada por James Buchanan e Gordon Tullock, colocou o foco nessa questão, ao transportar o estudo da economia para a política.

Sua principal premissa é bem simples e autoevidente, apesar de ser ignorada por vários cientistas políticos: o Homo politicus não é diferente do Homo economicus, que é o mesmo Homo sapiens: alguém que busca maximizar seus próprios interesses de forma racional. Parte, portanto, do individualismo metodológico, combate a visão holística de Estado, que fala em “interesse geral”, em “vontade popular”.

Adam Smith e Hayek já tinham notado que a principal vantagem do mercado é não depender de boas intenções para produzir resultados sociais eficientes e desejáveis. O foco está no processo, no mecanismo de incentivos: no livre mercado, mesmo um homem ruim pode ser levado a fazer o bem; na política, mesmo um homem bom pode ser levado a fazer o mal.

Economistas não estudam uma parte da realidade, mas sim a realidade a partir de uma estrutura econômica de análise. Transportar isso para o mundo político foi a grande contribuição da escola da Escolha Pública e das Falhas de Governo. Foi o fim do dualismo sem sentido: o homem é o mesmo, o que muda é a forma de lutar contra a escassez e competir por recursos.

Trata-se de uma visão bem mais realista da natureza humana. Afinal, não somos governados por anjos! A dicotomia boba – mercado como palco de interesses egoístas e política como palco de abnegação pelo “bem comum” – é refutada pela Escola de Virgínia. É preciso lidar com este paradoxo: muitos odeiam políticos de carne e osso, mas idolatram o Estado como abstração, esquecendo que o Estado é formado por aqueles políticos.

Fora isso, os efeitos secundários do ativismo econômico do Estado tendem a ser esquecidos. Uma porcentagem crescente dos gastos públicos consiste em transferir o rendimento dos politicamente desfavorecidos para os politicamente favorecidos. A “justiça social”, ao concentrar recursos e poder no Estado, mina a solidariedade voluntária, cria dependência e enfraquece a sociedade civil. Mais governo significa menos sociedade: o paternalismo mina a responsabilidade familiar, empresarial, cultural, e fomenta irresponsabilidade e dependência.

A visão romântica de um Estado benevolente, ao contrário da mais realista e cética que o enxerga como um “mal necessário”, costuma partir de uma postura insustentável: quando os intervencionistas pregam mais Estado, assumem que a intervenção será realizada por seres clarividentes e abnegados. Esquecem que será posta em prática por seres humanos imperfeitos, limitados, sujeitos às paixões humanas, sob um mecanismo de incentivos perversos.

A questão fundamental para quem deseja um debate honesto e sério, portanto, é: qual a melhor forma de alocar recursos escassos? Qual o melhor processo que garante tanto a liberdade individual como os resultados mais eficientes do ponto de vista social? Surge o primeiro grande obstáculo dos coletivistas: como avaliar o “interesse geral” na prática, já que preferências são subjetivas? Outro dilema: a maioria tem o direito de impor sua visão às minorias? Qual método – o econômico (trocas voluntárias no mercado) ou o político (coerção democrática) – preserva mais as minorias?

A contradição dos intervencionistas parece evidente: assumir que não devemos confiar nos indivíduos para governarem a si próprios, mas achar que estão na capacidade de governar os outros. Defender o sufrágio universal e o paternalismo estatal é contraditório, e resulta da arrogante visão elitista platônica de “reis-filósofos”, da crença no “déspota esclarecido” (que paradoxalmente será escolhido, na democracia, pela multidão pouco esclarecida).

Entre as consequências práticas desse modelo estatizante, temos o rent seeking (grupos organizados usam o Estado para criar barreiras à concorrência e apropriar-se de lucros excedentes). A longo prazo, o principal efeito disso é desviar energia criativa da produção para o “investimento” em lobby político, em busca de privilégios, subsídios, barreiras protecionistas, reservas de mercado. Todos querem ser “amigos do rei”. Nós conhecemos muito bem essa triste realidade na América Latina. Parece que os democratas querem importá-la para os Estados Unidos.

O risco, como fica claro, não é “apenas” econômico, mas também político. Quando o papel econômico estatal aumenta muito, sua influência política segue atrás. Octavio Paz, o Prêmio Nobel de Literatura e autor de O Ogro Filantrópico, fez no passado um alerta importante sobre esse risco. O México viveu o drama da “maldição do ouro negro”, e o resultado foi lamentável. O Partido Revolucionário Institucional (PRI), membro da Internacional Socialista, teve o poder hegemônico sobre o país entre 1929 e 2000. A existência de vastas reservas de petróleo contribuiu bastante para essa hegemonia. A estatal Pemex controlou o setor por décadas, servindo como um braço do partido na economia. Por essa razão, as palavras de Paz são mais atuais que nunca:

Por um lado, o Estado mexicano é um caso, uma variedade de um fenômeno universal e ameaçador: o câncer do estatismo; por outro, será o administrador da nossa iminente e inesperada riqueza petrolífera: estará preparado para isso? Seus antecedentes são negativos: o Estado mexicano padece, como enfermidades crônicas, da rapacidade e da venalidade dos funcionários. […] O mais perigoso, porém, não é a corrupção, e sim as tentações faraônicas da alta burocracia, contagiada pela mania planificadora do nosso século. […] Como poderemos nós, os mexicanos, supervisionar e vigiar um Estado cada vez mais forte e rico? Como evitaremos a proliferação dos projetos gigantescos e ruinosos, filhos da megalomania de tecnocratas bêbados de cifras e de estatísticas?

Joe Biden, cada vez mais indistinguível de Bernie Sanders, parece se inspirar nesse modelo, totalmente antagônico à trajetória liberal norte-americana. É uma visão arrogante e autoritária também, de que o Estado sabe melhor onde alocar recursos escassos. Fecho com Michael Oakeshott:

Para algumas pessoas, o governo é concebido como um vasto reservatório de poder que as inspira a sonhar com o uso que poderia ser feito dele. Têm projetos favoritos, de dimensão variada, e entendem que a aventura de governar os homens consiste em capturar esta fonte de poder, aumentá-lo se necessário, e usá-lo para impor os seus projetos favoritos aos restantes cidadãos.

2 pensou em “ATÉ DEMOCRATAS ESTÃO ASSUSTADOS COM BIDEN

  1. Parece que o Biden está esquecendo de que o empeachment por lá é um pouco mais radical o que por aqui (apud Lincoln e Kennedy. Nixon escapou por pouco, graças à carreira que deu).

  2. Depois que li “no livre mercado, mesmo um homem ruim pode ser levado a fazer o bem; na política, mesmo um homem bom pode ser levado a fazer o mal”, tive a sensação de não precisar ler absolutamente mais nada sobre a Política Partidária.
    Sensacional!

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