VIOLANTE PIMENTEL - CENAS DO CAMINHO

A classe mais unida que existe no mundo é a de cachaceiro. Entre eles, a solidariedade é grande, em tudo.

Renildo, grande boêmio e pintor de letras de Natal, iniciou sua carreira ainda menino, copiando dos sacos de papel o nome de seu pai, que tinha a mania de marcar compras, feitas na padaria ou na bodega. Aos poucos, o menino ampliava e aperfeiçoava as letras, usando as paredes da casa dos seus pais como painel. Eles achavam bonito tudo o que o filho pintava e o estimulavam.

Com o tempo, a arte de Renildo tornou-se conhecida e começou a render frutos. Um bodegueiro, que morava na mesma rua que ele, amigo do seu pai, ficou impressionado com a beleza das letras que viu pintadas nas paredes internas da casa, e contratou o rapaz para pintar um letreiro, dando nome à sua bodega, que passou a se chamar “CANTINA SÃO JOÃO”.

Autodidata, Renildo desenhava a bico de pena. Sua arte o transformou-se num famoso pintor de letreiros, e ele passou a ser contratado para pintar nomes de lojas, repartições públicas e instituições bancárias. Não lhe faltava serviço.

Abriu logo uma conta num banco e juntou dinheiro. Pouco depois, sacou a metade do dinheiro, enchei o carro de prostitutas e foi farrear no Recife, num final de semana.

Familiarizou-se com o meretrício e apaixonou-se pelas mulheres. Nos cabarés onde chegava, era sempre uma festa. Enquanto estava ali, era o rei das mulheres. Cheio de dinheiro e envolvente, não queria uma só mulher, mas várias. Quando se despedia, elas continuavam trabalhando normalmente, na linha de frente do serviço. Ele não exigia exclusividade.

Renildo deixava a barba crescer bastante e só gostava de se vestir de branco. Como sofria de astigmatismo, para proteger os olhos contra o sol, acostumou-se a usar um sombreiro, chapéu do tipo mexicano, de abas enormes. inclusive para trabalhar.

Tinha voz de tenor e só trabalhava cantando músicas mexicanas, espanholas ou italianas. Granada, a famosa música do mexicano Agustin de Lara, era a música mais solicitada pelos amigos. O som da sua bela voz enchia as ruas de Natal, quando ele estava em cima de sua escada, pintando letreiros.

Casou-se por conveniência, com uma mulher direita, mas não deixou que ela lhe botasse cabresto.

Nunca deixou de farrear na companhia de amigos, mas tinha o cuidado de fazer uma boa feira semanal, abastecer a despensa e deixar sempre com a esposa, uma reserva em dinheiro, para alguma eventualidade.

Saía de casa, aos sábados pela manhã, depois de fazer feira, mercearia, e arrumar ele mesmo a despensa. Tomava banho, se arrumava, colocava dinheiro no bolso, e dizia à esposa que iria se encontrar com os amigos e tomar umas cervejas.

Essas saídas podiam ser rápidas ou não, e a mulher sabia disso.

Numa certa manhã de sábado, Renildo fez a feira e a mercearia habituais, e enquanto arrumava a despensa, a esposa lhe disse que ele tinha esquecido das laranjas.

Depois de tomar banho e se arrumar, Renildo disse à mulher que iria voltar ao Mercado, somente para comprá-las. No caminho, encontrou alguns amigos que estavam à sua procura e lhe convenceram de ir comprar laranjas em Ceará-Mirim, que era para onde eles estavam indo àquela hora. No máximo, às três horas da tarde, estariam de volta. Ele topou na hora.

Em Ceará-Mirim, não encontraram laranja nenhuma, mas havia feijoada e churrasco na casa de um amigo. Às três horas, alguém perguntou se a turma topava ir tomar banho na barragem de Poço Branco (RN), e de lá, iriam à Vaquejada de João Câmara, que seriam três dias de forró, com muitas mulheres. O dinheiro da gasolina, Renildo disse que garantia. Ele, no seu Jeep/60, e a turma atrás, em dois carros, se dirigiram em busca da vaquejada.

No terceiro dia, Renildo, comprou 2 bermudas, duas cuecas e duas camisas numa lojinha, tomou um banho, mudou de roupa e foram “tomar uma” na fazenda de um amigo. De lá, a turma foi farrear em Areia Branca, onde um cunhado de um dos amigos estava aniversariando.

Esse cunhado era o chefe da Alfândega e tinha um enorme estoque de bebidas importadas apreendidas. A esposa dele, irmã do amigo que convidou a cambada de cachaceiro, ao ver o irmão foi logo dizendo: Ai, meu Deus, com tanto doido aqui, ainda chegando mais…Foram dormir às duas horas da manhã.

No dia seguinte, foram para o Assu, beber na “Adega”. De lá, foram até a praia deTibau, em Mossoró.

Continuaram a farra, pelas cidades por onde passavam. Foram dormir na fazenda do pai de um dos amigos, onde chegaram tarde da noite. Renildo, a pedido da turma, acordou o dono da casa, cantando “Granada”. Um enorme holofote foi aceso, as portas abertas e um empregado trouxe logo um carrinho lotado de bebidas.

Dormiram todos nessa fazenda e depois do café da manhã, prosseguiram farreando por onde passavam, até que chegaram a Sobral, no Ceará. Lá, Renildo foi abordado por um conhecido, que convidou a turma para uma festa em sua fazenda, em Picos, no Piaui. Houve churrasco e bebedeira à vontade.

No 25º dia, resolveram farrear em Pernambuco. De Boa Viagem, foram até Caruaru. No 30º dia de farras, houve um convite para uma festa em Campina Grande (PB), mas Renildo não concordou. Queria retornar a Natal e precisava providenciar seu “salvo-conduto”. Iniciaram a viagem de volta.

Pararam no Mercado Público de Bayeux, Município da Paraíba, para Renildo comprar as laranjas. Ele comprou cinco centos de laranjas, embaladas em três sacas de estopa, que foram postas no seu Jeep.

Retornaram a Natal. O Jeep de Renildo e mais dois carros formavam um “comboio” de cachaceiros, com cana dormida.

Ao chegar em casa, Renildo encontrou a sogra na calçada, acalentando um neném nos braços, nascido na ausência dele. De cara feia, a mulher disse:

– Não fale comigo, seu safado. Esse tempo todo, você longe de casa, sem dar notícia! E minha filha em “estado interessante”, mais uma vez, deu à luz sem ter o marido perto!

Revoltada, a sogra recusou o abraço que o genro quis lhe dar. Ele disse que ia somente abraçar o neném, mas, a abraçou à força, feliz da vida com o nascimento de mais um filho.

Santinha, a esposa, chegou à calçada, de cara feia, esfriando um mingau no papeiro. Mesmo sendo uma verdadeira santa, não se controlou:

– Renildo, onde você estava? A gente aqui, em tempo de enlouquecer! Eu com as dores do parto, e você farreando! O rádio ligado 24 horas por dia, vendo a hora uma notícia ruim sobre você!!!

O marido respondeu:

– Saí pra comprar as laranjas. Encontrei Vilinha e outros amigos, e eles me chamaram pra comprar laranja na feira de Ceará -Mirim. Lá, não tinha laranja nenhuma, mas estava havendo um churrasco e feijoada na casa de um amigo deles. Às três horas da tarde, me chamaram pra tomar banho na barragem de Poço Branco. De lá, fomos pra umas três vaquejadas e uns dez aniversários.

“Fumaçando” de raiva, Santinha continuou falando:

– “Vamo” entrando e tire logo esta roupa fedorenta a quenga! Tome um banho pra se desinfetar! Como foi que você teve coragem de fazer, novamente, uma coisa dessa? Um mês fora de casa! Eu, mais uma vez, com as dores do parto e você farreando!!!

Ele, calmamente, respondeu:

– Pode me chamar de cachaceiro, cabra ruim, irresponsável e farrista!

Santinha, mesmo sendo uma verdadeira santa, não se conteve:

– Faltou um defeito grande: VOCÊ NÃO PASSA DE UM QUENGUEIRO SAFADO E CÍNICO!!!

Renildo, tomado banho, foi buscar no Jeep as três sacas enormes de laranjas. A mulher, admirada, falou que aquilo era demais e que as frutas iriam se estragar. Ele respondeu:

– Distribua com a vizinhança! Não quero que falte laranja aqui, nem na casa de ninguém.

10 pensou em “AS LARANJAS

  1. História interessante, minha cara Violante. Renildo é daquelas pessoas que nasceu com um dom, soube aproveitar deste para tem uma posição social, mas em vez de ficar rico, optou por aproveitar o que entendia por ser os prazeres da vida: farra, amigos, cachaça e mulheres.

    Santinha o conheceu e o aceitou assim. Sabia dos riscos que ela corria. Renildo quando sumiu por um mês colocou seus prazeres acima da condição da mulher, grávida que estava de 8 meses e queria chupar uma laranja.

    Acho que a vida dos dois continuou. Santinha tendo um marido que lhe dava uma condição social em que nada lhe faltava, fiel apenas aos seus prazeres.

    Um Bom FDS, minha cara

    • Obrigada pelo comentário, prezado João Francisco!

      Décadas atrás, as santas existiam mesmo. Hoje, com a existência do Celular, Renildo não ia ter sossego.
      As mulheres não se submetem mais a um marido tão ausente. Santinha era uma verdadeira Amélia, da antiga música de Mário Lago. rsrs …

      Um abraço.

  2. É querida colunista , quando Deus fez o homem não havia espelho ainda.
    Por isto não saiu bem a sua imagem e semelhança .
    Porém depois de pronto e mesmo com pequenos defeitos , viu que precisava fazer alguém que admirasse sua bela criação pela eternidade. Emprestamos à revelia uma costela e zaz…….
    Mesmo com nossa bondosa ajuda , as vezes pegam no nosso pé, por coisicas de nada . Que mal existe numa saidinha ?.
    Tremenda ingratidão , como no caso do sujeito que esperou as laranjas amadurecerem.
    Mas seguimos firmes e forte obedecendo ao dito : Fazer o bem , não importa a quem.

    • Obrigada pelo comentário, prezado Joaquimfrancisco!

      É verdade, amigo. Há mulheres que querem pegar mesmo no pé do marido. Mas, eles, injustamente, esperneiam e não deixam. Querem trazê-las debaixo dos pés.
      Nos dias atuais, a conversa é curta e a mulher, dificilmente, se submete a um marido tão ausente e farrista..

      Como cantava Núbia Lafayette, “não é só casa e comida, que faz a mulher feliz”. rsrs

      Bom final de semana!

  3. Violante,

    Uma crônica interessante sobre o machismo que imperaca há certo tempo atrás. Renildo era de um tempo em que a mulher não trabalhava fora de casa, ou seja, casava e permanecia como doméstica durante toda sua existência. Hoje, a mulher disputa o mercado de trabalho em condições iguais ao homem. Nos cursos universitários temos um grande percentual de mulheres se especializando-se em todas as áreas. Quando essas mulheres ficam independente financeiramente, dificilmente vai aguentar um homem que passe dias fora de casa farrando. Os tempos mudaram tanto que observamos mulheres que sustentam a casa quando o marido está desempregado. Essas histórias existiram, mas ficaram registradas em crônicas bem escritas como essa da talentosa cronista do Jornal da Besta Fubana.

    Desejo um final de semana pleno de paz, saúde e alegria

    Aristeu

    • Obrigada pelo gratificante comentário, prezado Aristeu.

      Concordo com você. Com a independência intelectual e financeira da mulher, nos tempos atuais, já não existem as “Amélias” dos velhos tempos, tão bem registradas na música de Mário Lago.
      Antigamente, as mulheres só tinham voz quando diziam: “Xô, galinha”, “pra dentro, menino”; e “sim, senhor”…rsrs
      Hoje, a conversa é curta, e poucas se sujeitam à submissão exigida por alguns homens.

      Um final de semana com muita paz, saúde e alegria, para você também!

      Violante

  4. Vivi,
    Os tempos, ah, os tempos…
    Uma outra época, onde cabia à fêmea humana ser “dor lar”. Graças ao bom Deus muita coisa mudou, sendo você um belo exemplo disto, tanto profissionalmente, como neste seu cantinho, onde sua verve de grande escritora flui maravilhosamente.

    Aproveito o espaço para me desculpar por faltar hoje ao seu recital no Cabaré de Berto/Assuero, pois estarei na nobre missão de ganhar o pão, ops, os cocos. kkkk.

    Na certeza de seu sucesso em tal evento, afirmo que todos os aplausos serão poucos diante de tanto encanto.

    Um belíssimo final de semana, mulher de tantas facetas, beleza e sucesso.

    • Querido Sancho, obrigada pelo carinho de suas palavras.

      Não faltará oportunidade para que esse encontro virtual se repita, com músicas e descontração. Senti sua falta, mas em primeiro lugar está a obrigação e depois a devoção.

      Grande abraço e um feliz final de semana!

  5. Queridíssima Violante Pimentel,

    Você me emocionou com seu talento acordeãonista, valsando SE TU QUISER, obra-prima da lavra do extraordinário compositor, poeta, romancista e letrista Xico Bizerra.

    Fiquei mais encantado ainda depois que li “AS LARANJAS”, que nos faz acreditar que não existe mais Renildo por aí enchendo o saco.

    Graças as Deus as mulheres se libertaram e ganharam sua independência.

    Parabéns, querida, por animar o Cabaré do Berto e nos fazer acompanhá-la com alegria.

    • Obrigada pelo carinhoso comentário, querido cronista Cícero Tavares.!

      Não faltará oportunidade, se Deus quiser, para repetirmos esse tipo de encontro com música e descontração, onde nos sentimos numa verdadeira irmandade.,

      O texto “As laranjas”, é um retrato vivo do antigo machismo, a que as mulheres de “prendas domésticas” se submetiam,, até que conseguiram votar e trabalhar.
      Hoje, a conversa é curta e a mulher compete com os homens no mercado de trabalho, e deixaram de ser objetos de .uso doméstico.

      Grande abraço e um feliz final de semana!

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