A PALAVRA DO EDITOR

Niéde Guidon nasceu em Jaú, SP, em 12/3/1933. Arqueóloga criadora do Parque Nacional Serra da Capivara, no Piauí, em 1979 e transformado em Patrimônio da Humanidade pela UNESCO. Neste Parque criou também o “Museu do Homem Americano” e o “Museu da Natureza”, em 2018, abertos a visitação pública. Mas seus feitos maiores não foram apenas estes. Sua maior façanha foi ter alargado em mais de 40 mil anos a história da humanidade em solo americano, no Brasil. Trata-se de uma descoberta científica que alguns arqueólogos americanos e europeus vêm relutando aceitar, mas que encontra cientistas dispostos a aceitar suas teses arqueológicas.

Seus primeiros estudos se deram na cidade natal e em Pirajuí, para onde se mudou quando perdeu a mãe aos 6 anos, e em Campinas, onde concluiu o curso colegial. Em 1954 entrou na USP-Universidade de São Paulo e concluiu o curso de História Natural. Foi trabalhar no Museu Paulista, dirigido por Herbert Baldus, que a colocou no Departamento de Arqueologia. Querendo se aprofundar na área e não havendo curso de arqueologia por aqui, foi estudar em Paris. Retornou ao Brasil em 1963 e continuou a trabalhar no Museu Paulista e na USP. No mesmo ano organizou uma exposição de pinturas rupestres e recebeu a visita de um senhor que lhe disse: “Na minha terra tem muitas ‘pinturas de índio’ parecidas com estas”. Ela ficou curiosa e anotou o nome do lugar, São Raimundo Nonato, um lugarejo perdido no sertão do Piauí. Junto com umas amigas foi até lá numa longa viagem de fusca, mas não conseguiram chegar devido a queda de uma ponte.

Em 1964, com o Golpe Militar, perdeu o emprego sem nunca ter se metido em política. Alguém de olho no seu cargo dedurou-a como sendo do Partido Comunista. Voltou à Paris, passou a trabalhar como pesquisadora, fez curso de pós-graduação na Sorbonne; foi professora na École des Hautes Études en Sciences Sociales e desenvolveu uma importante carreira acadêmica em arqueologia. Obteve os maiores títulos da universidade francesa, mas não esqueceu a história dos “desenhos de índios” do Piauí. Em 1973 pode visitar o local junto com seus alunos franceses e ficou deslumbrada com a descoberta da maior concentração de sítios arqueológicos com pinturas rupestres do mundo. Constatou que as pinturas eram mais narrativas, com uma grande quantidade de figuras humanas representadas de modo e gestos diferentes e animais também diferenciados. Segundo ela, “parecia uma história em quadrinhos”.

De volta à Paris entrou em contato com o CNRS-Centre National de la Recherche Scientifique, mostrou fotos do local e ressaltou que era uma região sem nenhuma pesquisa. Assim, conseguiu verba dos franceses para mais uma viagem. Arregimentou colegas da USP para ajudar na empreitada e criou a missão franco-brasileira, dando inicio a exploração cientifica do local. A partir de recursos obtidos junto ao BID-Banco Interamericano de Desenvolvimento, o trabalho resultou na criação do Parque Nacional Serra da Capivara (decreto nº 83.548, de 5/6/1979), com a finalidade de proteger o mais importante patrimônio pré-histórico do País. Mais tarde o Parque foi ampliado (decreto nº 99.143, de 12/3/1990) com a criação de áreas de preservação permanentes de 35 mil hectares. Desde a época em que trabalhou na USP já era amiga do casal Ruth e Fernando Henrique Cardoso, que mais tarde foram grandes apoiadores de benfeitorias no Parque.

Toda essa estrutura tem um sentido maior e deve-se aos estudos arqueológicos iniciados por Niéde, que pretende reescrever a história da povoação das Américas. A teoria mais aceita reza que o homem chegou ao continente pelo estreito de Bering, vindo da Ásia, há 15 mil anos. No entanto, ela achou vestígios no local que datam de mais de 50 mil anos. Os papas da Arqueologia não estão ainda inteiramente convencidos, mas o acúmulo de evidências arqueológicas fortalece cada vez mais suas hipóteses. Pesquisas desenvolvidas no Chile, México e EUA corroboram sua tese. Em 2006 foram divulgadas as pesquisas de Eric Boeda, da Université de Paris, e Emílio Fogaça, da Universidade Católica de Goiás, afirmando que os artefatos encontrados no Parque foram realmente feitos por seres humanos, e possuem idade entre 33 mil e 58 mil anos, contrariando os adversários de sua teoria. Ela acredita que o Homo Sapiens chegou na América, vindo da África atravessando o Atlântico. Conforme explicou: “o mar estava então 140 metros abaixo do nível de hoje, a distância entre a África e a América era muito menor e havia muito mais ilhas”.

O Parque conta com 1.354 sítios arqueológicos cadastrados, dos quais 204 estão abertos à visitação pública. Tais evidências justificaram a criação da FUMDHAM-Fundação Museu do Homem Americano, em 1986, cujo objetivo é buscar a “compreensão do bioma da região, a reconstituição do passado humano e sua adaptação ao meio, nas diferentes realidades ambientais pelas quais passou a região, desde a primeira ocupação.” Desde 1991, o parque integra a lista de patrimônios culturais mundiais da Unesco e em 2003 foi considerado pela ONU como Unidade de Conservação com melhor infraestrutura da América Latina. O Museu do Homem Americano vem acumulando uma quantidade razoável de peças desde meados de 1970, e durante esse tempo tem recolhido também muitos objetos, fósseis e peças referentes a natureza. São animais pré-históricos, como a preguiça e o tatu gigantes, que necessitavam de um ambiente exclusivo. Assim, em 2002 foi projetado o Museu da Natureza, localizado a 30 km. da sede da FUMDHAM.

Trata-se de um moderno museu instalado no sertão. Na inauguração, em 18/12/2018, a revista “Veja” dedicou-lhe extensa reportagem com o título: “O óvni no meio da caatinga”, dado sua aparência arquitetônica, uma estrutura de aço e vidro de quatro mil metros quadrados em forma de mandala high-tech. O que se pretende é que o museu seja autossustentável, e para isso é preciso que os governos estimulem o turismo na região. Na opinião de sua criadora, a preservação de todo o Parque só será possível com a exploração turística do local. No momento faltam condições de acesso e infraestrutura adequadas.

Desde 1992 vive em São Raimundo Nonato cuidando do Parque e aos 88 anos, com dificuldades de locomoção, tem anunciado que vai se aposentar. Com quase 60 anos de dedicação exclusiva ao Parque Nacional, museus arqueológicos e expressiva contribuição científica, foi homenageada em diversas ocasiões, não obstante continuar sendo uma ilustre desconhecida pela maior parte do povo de seu País: “Mulher do Ano 1997”, pela revista Claudia, da Editora Abril; “Prêmio Faz Diferença” (2005) pelo jornal O Globo; “Prêmio Tejucopapo”, pela revista Nordeste 21; “Medalha Comemorativa dos 60 anos da Unesco”, (2010); “Medalha de Ouro” na premiação para a cultura ‘Herity Italia” (2010); “Prêmio da Fundação Conrado Wessel” (2013); “Prêmio Itaú Cultural 30 Anos” (2017). De todos estes prêmios, o que ela gostaria mais é ver o Parque sendo visitado pelos turistas de todo o mundo. Ela tem convicção e conhecimento de causa e efeito para achar que a “melhor forma de preservar é trazer turistas e desenvolver a região”.

12 pensou em “AS BRASILEIRAS: Niéde Guidon

  1. Obs.: Visando manter a biografia concisa, não expus no texto a

    H I P Ó T E S E DE N I É D E G U I D O N

    Os achados arqueológicos de Guidon levam a crer que o povoamento do continente americano se deu muito antes do que se acredita. Enquanto a hipótese mais aceita do povoamento das Américas postula que os primeiros humanos chegaram no continente há 15.000 anos, alguns dos sítios arqueológicos de Niède contêm artefatos que datam de até 58.000 anos atrás. O problema de sua hipótese é que Guidon e sua equipe têm por artefatos o que outros têm por geofatos – os primeiros sendo produtos do trabalho humano e os últimos da ação de forças naturais.

    Antropólogos se encontram em ambos os lados da questão: alguns aceitam as evidências arqueológicas sem contestá-las; outros pensam que elas não são sólidas o suficiente para derrubar as antigas hipóteses. Em 2006, divulgaram-se os resultados das pesquisas de Eric Boeda, da Universidade de Paris, e Emílio Fogaça, da Universidade Católica de Goiás, afirmando que os artefatos achados por Niéde em 1978 no Boqueirão da Pedra Furada, em São Raimundo Nonato, foram realmente feitas por seres humanos e possuem idade entre 33 mil e 58 mil anos, contrariando os adversários de sua hipótese.

    Com uma grande equipe trabalhando para si e com inúmeros projetos em andamento, Guidon espera reescrever a versão corrente da história demográfica do homem. Embora sua hipótese tenha lacunas, o acúmulo de evidências arqueológicas fortalece cada vez mais suas hipóteses. O seu trabalho resultou em mais de 1,3 mil descobertas de sítios arqueológicos e centenas de fósseis na região da caatinga.

    A hipótese mais aceita hoje em dia sobre a chegada do ser humano à América é da passagem pelo Estreito de Bering, porém, há outras menos populares. Por exemplo, a hipótese de povoamento pelo Oceano Pacífico, que afirma que o ser humano veio da Austrália para a América passando pelas ilhas, antes em maior número pelo diferente nível do mar. Niède adere à segunda hipótese, além de apoiar a hipótese de que os humanos vieram pelo Atlântico, vindos da África, pois essa faz com que seja possível terem vestígios datados de até 58.000 anos.

  2. Mas que beleza!!, Niéde Guidon pode contar com o apoio de mais um cientista:
    Caio Gomes Carneiro é engenheiro especializado em sistemas de automação e informação pelo ITA.

  3. Tive notícia que a Dra. Niéde conseguiu apoio do governo para instalar um aeroporto na região; foi aprovado e bem recebido, mas até agora nada.

    Porque o governo atual não encampa, assume este projeto e lança-o no Mundo como “Museu do Homem Americano”, e o “Museu da Natureza”? , no local exato onde estavam há milênios.

    O museu, a memória do americano está no Brasil. e não em Londres, Paris, Nova York…. Fica no estado mais pobre do Brasil, numa região que já passou 5 anos sem chuva. O feito de Niéde não tem sido fácil e não seriam possíveis sem apoio de governos e instituições .

    O Pais que tanto exalta suas “belezas naturais”, geográficas haveria de exaltar e “explorar”,no bom sentido, as belezas da humanidade.. A quantidade de pinturas parece uma “história em quadrinhos”. da idade da pedra lascada e esculpida ao longo de milênios, conforme se vê numa visita ao Museu.

  4. Caríssimo Brito:

    No filme épico 1492 – A Conquista do Paraíso, do diretor Ridley Scott, um mergulho, de vinte anos da vida de Colombo, desde quando se convenceu de que o mundo era redondo, passando pelo empenho em conseguir apoio financeiro da Coroa Espanhola para sua expedição, o descobrimento da América, o desastroso comportamento que os europeus tiveram com os habitantes do Novo Mundo e a luta de Colombo para colonizar um continente que ele descobriu por acaso, além de sua decadência na velhice.

    Há uma passagem muito interessante que o personagem principal responde a um subalterno quando este lhe pergunta qual o sentido daquela aventura:

    O ator Gérard Depardieu, que faz o papel de Colombo no filme, responde:

    – São homens feito esse que se arvoram a desbravar o mundo que o torna conhecido e fascinante às novas gerações.

    O seu artigo está de parabéns ao focar essa grande pesquisadora que fez a diferença na Arqueologia brasileira.

  5. Caríssimo Brito.

    Uma cientista, uma arqueóloga de grande gabarito, reconhecida internacionalmente
    e nunca tomei conhecimento dessa ilustre arqueóloga.
    Uma estudiosa como essa e lutadora para demonstrar e e nos brindar com os seus descobrimentos muito importantes não recebeu da cultura brasileira o seu apoio total como seria se a cultura fizesse parte da política podre e carnavalesca atual.
    Uma cientista com esse alto gabarito deveria ter ao menos reconhecimento
    nos grandes meios cientifico internacional e ter o seu nome mencionado junto
    aos bastidores dos prêmios Nobel.
    Acredito também que devido a ser uma brasileira, que são quase olvidados
    nos meios ciêntificos internacionais, devido isso a péssima imagem que mostramos ao mundo.
    Desconhecia amplamente todo esse grande achado magnífico. Acompanho
    semanalmente os artigos sobre a arqueologia em várias partes do mundo, por
    intermédio do History Canal e jamais ouvi uma palavra sobre a arqueologia brasileira .
    Ficam repetindo sempre os mesmos achados, as mesmas figuras, os mesmos
    ossos etc.. e não vão a fundo pesquisar ou consultar figuras de grande conhecimento reconhecido, isto porque o Brasil não é importante para
    o resto do mundo, somos apenas o quintal da America do Norte e vizinho
    pobre e esnobado pela d europa já gasta, decadente e com a mortalha pronta para
    partir pois não tem nada a mais para mostrar.

    Parabéns grande ciêntista, a doutora nos orgulha e parabéns amigo Brito, vocês merecem serem aplaudidos de pé.

  6. Grande D. Matt.

    Pronto, você acabou de lançar a candidatura da Dra. Niéde Guidon ao Prêmio Nobel. Tem todo meu apoio. .
    E eu fico lisonjeado de ser aplaudido de pé junto com ela. só por ter ajudado em sua divulgação. Fico-lhe muito agradecido.
    Caso queira fazer uma visita virtual ao Parque e museus, veja alguns muito bons no youtube.

  7. Acrescento que o maior feito da Dra. Niede Guidon foi conseguir realizar o desenvolvimento regional através da pesquisa. A região onde hoje é o Parque Nacional Serra da Capivara, era muito pobre e ela acreditava que o turismo era a única saída. Para proteção do patrimônio arqueológico, que seria o principal produto turístico, Dra. Niede criou e implantou, junto com o BID, a ONG italiana Terra Nuova, e o governo brasileiro um programa de desenvolvimento para as comunidades do entorno do Parque com cinco núcleos de apoio à comunidade compostos por escolas, postos de saúde e uma atividade econômica, das quais, uma é o mel e a outra é a famosa cerâmica Serra da Capivara. Infelizmente, quando haviam mais de 700 alunos nas escolas, em regimes semi internos e internos, o governo brasileiro decidiu que nenhuma ONG poderia receber recursos para educação e todas as escolas passaram a ser administradas pelos municípios, e tudo acabou.

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