MARCELO BERTOLUCI - DANDO PITACOS

Alemanha, 1923

Com o fim da I Guerra Mundial, 1918, a Alemanha foi obrigada a pagar pesadas indenizações aos vencedores. Como não tinha com que pagar, o governo começou a imprimir dinheiro. O resultado (óbvio) foi a perda de valor de sua moeda: Um dólar valia 4 marcos em 1917, 8 em 1918, 50 em 1919, 90 em 1921, 320 no inicio de 1922. Daí em diante, a inflação virou hiperinflação. Quem tinha alguma coisa, não queria trocá-la por papéis que não valiam nada, então o comércio praticamente parou. Os fazendeiros guardavam os alimentos que produziam, ao invés de mandá-los para os mercados. No final de 1923, um dólar valia 4 trilhões de marcos e o preço de um pão chegou a 200 bilhões.

Com o país em completo caos e muita gente passando fome (embora a produção agrícola continuasse relativamente normal), o ministro Hans Luther propôs uma medida simples: uma nova moeda com valor fixado em ouro, e a proibição de emissão de dinheiro pelo governo. Em 13 de outubro de 1923, passou a existir o Rentenmark, com o valor de 0,358 gramas de ouro.

Quando a população viu que podia confiar na nova moeda, o comércio rapidamente voltou ao normal. Dois anos depois, a Alemanha já era um país economicamente forte na Europa.

Estônia, 1992

Em 1991, depois de cinco décadas sob domínio da URSS, a Estônia voltou a ser um país independente. Infelizmente, a herança soviética era desastrosa: a economia, que obedecia ao planejamento central de Moscou, era caótica; havia poucas indústrias economicamente viáveis; toda a agricultura era estatizada; quase um terço da população era de russos que sequer falavam a língua local (e a maioria acreditava que tinha direito a um emprego garantido pelo governo); e para completar, o país não tinha moeda que prestasse: o rublo, que era usado anteriormente, havia se esfacelado junto com a União Soviética, e a inflação estava perto do 80% ao mês.

A fórmula seguida pela Estônia para reconstruir sua economia foi bem simples: a nova moeda local, o Kroon, foi fixada em 0,12 marcos alemães (a moeda mais forte da Europa na época); o governo não pode fabricar dinheiro nem gastar mais do que arrecada; quase todas as empresas estatais foram privatizadas; a constituição garante liberdade de comércio.

Hoje, a Estônia é uma das economias que mais crescem na Europa, a dívida pública é de menos de 10% do PIB (a terceira menor do mundo), a liberdade de importação e exportação é total e o desemprego é um dos menores da UE.

Zimbábue, 2008

Desde seu “nascimento” em 1980 o Zimbábue viu sua economia enfraquecer, fruto de um governo corrupto, populista e com tendências socialistas. Ao longo dos anos 90, estatizações no setor agrícola e envolvimento militar em países vizinhos pioraram a situação. O governo adotou a solução fácil de imprimir dinheiro. A inflação ultrapassou 100% ao ano em 2001 e continuou crescendo ao longo da década. Em 2007 a coisa toda saiu de controle, com uma inflação estimada em 600000%. No ano seguinte, a economia do país chegou ao caos: havia cédulas de 100 trilhões, e os ônibus urbanos reajustavam a tarifa três vezes por dia. Nas empresas e nos bancos, os computadores paravam porque os programas não conseguiam operar números com tantos zeros. O governo decretou um congelamento, o que ajudou no sumiço das mercadorias. O PIB do país encolheu 14% neste ano.

Em janeiro de 2009, o governo do país reconheceu o óbvio: sua moeda não valia nada e ninguém a queria. O ministro das finanças editou uma lei tornando legal o uso de moeda estrangeira no país. Em pouco tempo, a economia se estabilizou, com as pessoas usando dólares ou rands da vizinha África do Sul. Em 2010 e 2011, o PIB cresceu mais de 9% ao ano.

O Zimbábue permaneceu sem ter moeda própria até 2018, quando o governo tentou dar o mesmo golpe de novo, criando uma moeda nacional de uso obrigatório. Em 2019 a inflação foi de 500% e a previsão para 2020 era de 600 a 700%. Com os problemas causados pelo COVID, a situação tornou-se crítica e o governo parece ter desistido da idéia e liberado novamente o uso de outras moedas.

Hong Kong, 1945

Quando a Segunda Guerra Mundial acabou, Hong Kong era um país devastado por quatro anos de ocupação japonesa. A população havia caído 50%. Grande parte dos prédios e indústrias estavam destruídos. A receita para a recuperação não tinha nada de complicado: liberdade de comércio, liberdade para trabalhar, o mínimo possível de intervenções e regulamentações do governo. A moeda? Era atrelada à libra esterlina, a moeda mais forte do mundo na época. Vinte anos mais tarde, quando o Reino Unido desvalorizou a libra em 14%, Hong Kong se recusou a acompanhar a medida, o que tornou sua moeda mais forte que a libra inglesa. Desde 1945 até hoje, a moeda de Hong Kong nunca se desvalorizou em relação às outras moedas “fortes”, e a liberdade de comércio continua ampla.

Equador, 2000

Entre 1980 e 2000, a inflação anual no Equador oscilou entre 20 e 60%, com picos chegando a 100%. Os déficits do governo eram constantes e crescentes. Em 98, houve uma “quebradeira” de bancos que piorou tudo. Em 99, a dívida do governo chegou a 85% do PIB, e o governo anunciou um calote na dívida externa. A economia entrou em colapso. Quando 2000 começou, a aprovação do presidente Mahuad era de apenas 7%.

A solução adotada foi simplesmente acabar com o Sucre, a moeda nacional, e adotar o dólar. Políticos da oposição e economistas ortodoxos foram contra, e os militares tentaram um golpe para depor Mahuad. O golpe falhou e Mahuad manteve sua decisão.

Sem “moeda nacional”, o PIB do Equador subiu 19% em sete anos, a taxa de juros paga pelo governo caiu para menos de um terço do que era, as exportações mais do que dobraram, o governo teve sete superávits seguidos (o que não acontecia há mais de seis décadas) e a dívida do governo (que era 85% do PIB, lembram?) caiu para 27% em 2007.

No início de 2007, tomou posse o novo presidente, Rafael Correa, defensor entusiasmado do socialismo e do bolivarianismo. Nos dez anos seguintes, aconteceu uma coisa interessante: embora criticasse ferozmente o “neoliberalismo” e se declarasse inimigo dos EUA, fazendo côro aos seus amigos Hugo Chávez e Evo Morales, Correa manteve o uso do dólar. Com o bolivarianismo de Correa, os tempos de superávit acabaram, e o orçamento voltou a ser cronicamente deficitário. A dívida voltou a crescer. O governo ia de mal a pior. E o povo? Nem tanto: a inflação, depois de um pico inicial, se manteve abaixo dos 6% ao ano; o desemprego não aumentou; os salários médios subiram.

Eu considero os números do Equador muito importantes para mostrar um erro comum em análises econômicas: misturar economia com política. É óbvio que a condução da economia depende dos políticos, mas o que é certo ou errado em economia não depende do crachá ou da bandeira do político. No caso do Equador, os números mostram que, mesmo com um governo ditatorial, incompetente e populista, o simples fato da população ter uma moeda forte manteve a economia funcionando razoavelmente bem, imune aos números ruins do governo.

Em 2017 Correa foi sucedido por Moreno, que abandonou a amizade com a Venezuela e tentou ser mais a favor do livre mercado. Infelizmente, a economia do Equador ainda é frágil e moeda forte sozinha não consegue fazer milagres. O crescimento ainda é lento. Mas o simples fato de o governo não poder fabricar dinheiro já é uma enorme vantagem. Hoje, a inflação acumulada em doze meses no Equador é de 0,1%. Pense no preço da gasolina, do óleo de soja ou do leite por aqui e compare.

Quem quiser saber mais sobre a dolarização do Equador, com dados e gráficos, clique aqui.

Conclusões

Se um país tem moeda forte, sua economia será forte e o povo irá prosperar.

Esta moeda não precisa ser “controlada”, “administrada” ou “gerenciada” pelo governo.

Na verdade, quanto menos poder o governo tiver sobre a moeda, melhor.

Um país não pode ter moeda forte se o governo insiste em fabricar dinheiro.

“Moeda estável não é tudo; mas sem moeda estável, todo o resto sempre dará em nada.” – Karl Schiller, Ministro das Finanças da Alemanha de 1966 a 1972.

12 pensou em “APRENDENDO (OU NÃO) COM A HISTÓRIA

  1. APRENDENDO (E MUITO) COM BERTOLUCI e alongando um pouco mais a vista, acrescento: Na verdade, quanto menos poder o governo tiver sobre a VIDA DO PAGADOR DE IMPOSTOS, melhor.

  2. Cuma cê iscrevi direitim, cabra. ¿Sabes qué? Al diablo con esto.
    Vi não sei onde uma foto da nota de um milhão de dólares do Zimbábue. É isso mesmo ou ando bebendo muito chimarrão?
    Forte abraço aqui de Uruguaiana, Marcelo.

    E minha cidade é mais fria do que a sua…

  3. Caro Marcelo,

    Mais uma vez obrigado pela belíssima aula.

    Faço votos que o amigo continue a nos brindar sempre com essas fantásticas análises que contribuem imensamente para que se abram as mentes de milhares de pessoas com relação a estes fatos econômicos que, embora relativamente simples, são imensamente manipulados pelas mentiras dos parasitas governamentais de todo o mundo.

    Grande abraço.

  4. Como sempre um texto brilhante. Meu entendimento, que não choca com o seu pensamento, mas dá um pouco mais de flexibilidade na administração econômica, é adotar o que o nosso Brasil está colocando na Constituição, de termos um BC independente de verdade, com mandatos definidos. Como existe nos EUA que faz do Dólar a moeda referência. Na prática já ocorre. Mesmo em tempos de governos irresponsáveis, o BC tem tido atuação de destaque e só por isso não temos descontrole do Real. Apesar da nossa moeda ter perdido muito valor recentemente. Mas diante do desgoverno que temos no Brasil, o BC consegue evitar o pior. Adotar o “Padrão Ouro”, como foi no passado garante que a moeda deverá oscilar como o ouro, o que pode não ser desejável. Mais ou menos como o que ocorreu em Hong Kong, como descreve no seu texto. Entendo que moeda não deve servir apenas como reserva de valor, mas funcionar como facilitador dos negócios. Permitir a flutuação da moeda é a forma de permitir que ela tenha sempre o preço justo, preço de mercado, onde compradores e vendedores estão de acordo.
    Brilhante seu artigo

    • Eduardo, hoje em dia faz mais sentido falar em “padrão dólar” ou “padrão euro” do que “padrão ouro”, justamente porque o ouro oscila em função do dólar, e isso pode se tornar incômodo (mas mesmo assim seria muito melhor do que o que temos hoje). Se o Brasil adotasse câmbio fixo, seria mais fácil e mais útil fixar em dólares do que em ouro, apesar do risco a longo prazo de o dólar também virar uma moeda de terceiro mundo. É uma escolha entre vantagens de curto prazo e de longo prazo.

      Quanto ao nosso Banco Central, minha avaliação é mais rigorosa que a sua. Para mim o BC conseguiu apenas, e por enquanto, evitar uma hiperinflação como a do Sarney ou do Collor, mas está muito longe do que deveria fazer. O IPCA está “represado” pelos lockdowns, mas os índices setoriais como IGPM, INCC, IPA estão mostrando uma realidade bem desagradável. Enquanto isso, Panamá e Equador não têm BC e estão melhores que nós.

  5. Marcelo, eu conheço sua forma de pensar, temos muitas coincidências em relação a facilitação dos negócios, que os governos cumpram somente as funções básicas, acreditamos que a “mão invisível” de Adam Smith pode resolver a maioria dos problemas que os tecnocratas costumam complicar mais do que ajudar. Resumindo: acreditamos que a negociação livre, que costumam chamar de Mercado, sempre dará a resposta final, embora transitoriamente as autoridades imponham soluções insustentáveis no tempo. Tabelamento de preços, taxas e outras ideias mirabolantes.
    Concordamos em muita coisa e naquilo que temos opiniões diferentes, debatemos educadamente, para reforçar opiniões ou transformar nossas ideias.
    “Para mim o BC conseguiu apenas, e por enquanto, evitar uma hiperinflação como a do Sarney ou do Collor” Desse trecho que escreveu eu tiraria o “apenas”, porque considero muito. Desde o Plano Real, em 1994, o único remédio poderoso que combate a inflação é a política monetária. O equilíbrio fiscal foi esquecido, sempre prometido, nunca executado. FHC passou a vida escrevendo que a culpa pela inflação alta era a taxa de juro alta, como líder do Plano adotou, com sucesso, a política de juros altos para combater o dragão. No período de 94 até 99 tivemos uma taxa de juros excessivamente alta (combater consumo) e taxa de câmbio muito bem administrada pelo BC. Aplausos para Gustavo Franco, o pilar que sustentou o Real. Em 1999 houve troca no comando do BC e Chico Lopes foi forçado a tirar o câmbio do piloto automático. Com Armínio foi criado o programa de Metas de Inflação, que se mantém e dá um balizamento para a sociedade. O que temos de instrumento para não deixar a inflação lamber, como você bem alerta, além da desvalorização do Real, é uma atuação eficiente do BC.
    Equador e Panamá têm PIB equivalente a 5% do Brasil, produção industrial insignificante, corrente de comércio exterior baixa, não acho que são boas comparações. A Argentina teve a moeda atrelada ao dólar e passou por momentos (Meném/Cavalo) de estrangulamento em função do dólar valorizado que prejudicava as exportações, estimulava importações e reduzia investimentos na produção. Não deu certo.
    O que eu aprendi com o Ministro da Fazenda atual, no início dos anos 80, é que a taxa de câmbio é apenas mais um preço na economia e assim como todos os outros não deve ser tabelado. Acredito nisso, acredito que o BC eficiente é melhor do que atrelar o Real a outro ativo qualquer. O que não temos e isso é essencial, não só para estabilidade da moeda, mas para a tranquilidade de todos os agentes e “garantia” para os credores, é o compromisso com os gastos públicos. Estabelecer objetivos de curto e longo prazo para o equilíbrio fiscal e redução de endividamento. Se tivermos um governo confiável, comprometido com responsabilidade fiscal, aí sim poderemos esperar menos oscilações e dar condições melhores para o empreendedor.
    Conheço sua forma de pensar desde o tempo em que era o ex-microempresário, hoje é o tyccon. Sei que é contra tabelamentos, pense que tabelar, indexar a moeda é parecido e terá o mesmo efeito.
    A resposta é: Governo decente, eficiente. Não temos.
    Abração.

    • Eduardo, não me expressei bem quanto ao BC. Quando disse “Para mim o BC conseguiu apenas, e por enquanto, evitar uma hiperinflação”, estava me referindo ao BC do Campos Neto, ou seja, do atual governo, não a toda a era do Real.

      Eu continuo acreditando que a causa fundamental da inflação é a emissão de dinheiro: lei da oferta e procura. Só quem pode aumentar a oferta de dinheiro é o BC; portanto o responsável pela inflação é o BC, seja por conta própria, seja porque a tal “independência” é só de fachada e na prática ele obedece ao governo e ao ministro. Concordo que a emissão de dinheiro é para cobrir o déficit do governo, e o déficit vem da falta de equilíbrio fiscal, mas aí já é a causa da causa da causa.

      Neste ponto, não entendo como “política monetária” combate inflação, se a única “política monetária” que o BC pratica é imprimir dinheiro sempre que o governo gasta o que não tem.

      Eu discordo completamente da idéia de que “o câmbio é apenas mais um preço na economia”. Em primeiro lugar, o sistema de preços regula oferta e procura de bens escassos. Se o governo pode produzir dinheiro do nada, ele não é um bem escasso e portanto não se pode usar o mesmo raciocínio. Em segundo lugar, não existe “demanda” por dinheiro. Existe demanda pelas coisas que o dinheiro pode comprar. Moeda não é riqueza, é meio de troca, e deve ter valor constante. Moeda perder valor em nome de “política monetária” para mim é como o governo mudar o valor do metro e do quilograma e chamar isso de “política metrológica”

      Na segunda metade do século 19 todos os países desenvolvidos usavam padrão-ouro, e foi uma época de enorme progresso econômico. Já a Argentina de Menem se deu muito bem com o câmbio fixo, até que os argentinos perceberam que o governo estava mentindo: prometia que cada austral estava lastreado em um dólar, mas não estava.

      Aliás, em quase todos os países que estabilizaram (e portanto fortaleceram) sua moeda, as exportações aumentaram. Esse papo de “moeda forte prejudica as exportações” é mentira de político vendido ao lobby agro-pecuário.

      Enfim, governo decente e eficiente é o que todos almejamos. Eu creio que quanto menos poder o governo tiver de obter dinheiro às nossas custas, melhor, e tirar dele o poder de desvalorizar a moeda é uma grande ajuda nesse sentido.

      Grande abraço e obrigado pela troca de idéias.

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