Soneto do tempo do Ronca, encontrei “Amor Materno”, da autoria do poeta pernambucano Cyridião Durval (03.03.1860 – 17.10.1895), num caderno de poesias, escrito com a letra da minha saudosa mãe.
Com certeza, esse soneto, anos depois, deve ter servido de inspiração ao compositor e cantor Antônio Vicente Filipe Celestino (Rio de Janeiro, 12 de setembro de 1894 – São Paulo, 23 de agosto de 1968 ), ao compor a canção “Coração Materno”.
AMOR MATERNO (Cyridião Durval – 03/Mar/1860 – 17/Out/1895)
Isaura, a mais cruel de todas as perdidas,
Entre os braços de Fausto, o mísero rapaz,
Disse um dia a sorrir: — “quem ama tudo faz,
Exijo deste amor as provas decididas.”
Pede tudo, mulher, se queres destruídas
As dúvidas que tens: ordena e então verás
Se tenho amor ou não; de tudo sou capaz,
Por ti arrancarei milhões, milhões de vidas!…
E a Dalila, soltando estridula risada,
Disse a Fausto: — “pois bem, se tu não temes nada,
Quero de tua mãe tragar o coração.
E o louco o foi buscar… De volta, no caminho
Tropeçou e caiu… disseram-lhe baixinho:
“Magoaste-te, meu filho?… Aceita o perdão.”
Cyridião Durval nasceu no dia 3 de março de 1860 em Tatuamanha, então distrito de Porto de Pedras, Alagoas. Filho de Rogério José de Santana e Teotônia Durval de Santana, teve os seguintes irmãos: Hermillo Durval, Manoel Durval, Fernandina Durval e Maria Durval Moreira, esposa de Manoel Moreira e Silva. Sua avó materna era Maria do Carmo Durval.
Foi na bela e aprazível Tatuamunha que aprendeu as primeiras letras com a ajuda de um professor público. Percebendo que o filho tinha gosto pelo estudo, seus pais o internaram em Recife, no Colégio Santo Amaro.
Depois foi transferido para o Ginásio Provincial, onde terminou o curso de humanidades em 1881 e diplomou-se em Direito pela Faculdade de Recife em 1885. Teve como colegas Martins Júnior, Clóvis Bevilacqua, Arthur Orlando, Porto Carneiro, Phaelante da Camara e outros.
Cyridião Durval faleceu no dia 17 de agosto de 1895, com apenas 35 anos de idade.
Por sua vez, Antônio Vicente Filipe Celestino, conhecido como Vicente Celestino (Rio de janeiro, 12 de setembro de 1894 – São Paulo 23 de agosto de 1968) foi um famoso compositor e cantor brasileiro, filho de imigrantes italianos, autor de inúmeras canções, entre as quais, “Coração Materno”, que, segundo ele, baseava-se numa lenda que teria mais de cinco séculos.
O tema do soneto “Amor Materno” (Cyridião Durval) e da canção Coração Materno (Vicente Celestino) é o mesmo. Ambos falam de um nefasto matricídio.
A gravação original de “Coração Materno” ocorreu na gravadora Victor, em 18 de março de 1937. Segundo os estudiosos do assunto, essa música, na época em que foi lançada, fez um sucesso estrondoso no rádio brasileiro.
Em 1951, Vicente Celestino e sua esposa Gilda Abreu lançaram o filme “Coração Materno”, estrelado por eles mesmos, e baseado na famosa música. O sucesso do filme foi bem menor do que o da canção.
Os antigos circos que percorriam o interior nordestino, com espetáculo de palco e picadeiro, cuja 2ª parte era uma encenação de uma peça de teatro, levavam a plateia às lágrimas, ao encenar a peça “Coração Materno”.
A música “Coração Materno”, de Vicente Celestino, sempre foi respeitada, até que surgiu no Brasil, o movimento musical Tropicália, comandado por Caetano Veloso, Gilberto Gil e outros, que destruíram e ridicularizaram composições antigas de respeitáveis compositores, tentando reinventar a música brasileira.
Era a época da Tropicália, movimento de protesto, deflagrado pelos artistas da MPB, contra a situação política do País.
As músicas de protesto e o deboche imperavam entre os compositores de vanguarda. Revolta, censura, prisão, perseguição aos artistas de esquerda, tudo concorria para que os compositores e cantores revoltados com a censura se opusessem a tudo que prezasse pela ordem e costumes.
O cantor e compositor Caetano Veloso, na época com 26 anos, vindo do interior da Bahia, gravou “Coração Materno”, de Vicente Celestino”, num deboche gritante, segunda música do disco coletivo-manifesto Tropicália ou Panis et circencis, que pode ser visto como sua primeira grande performance vocal. Apesar de compor canções inteligentes e ter uma voz agradável, o artista, com sua veia irônica e visivelmente debochada, simulou uma homenagem ao respeitável cantor e compositor Vicente Celestino, que se sentiu humilhado ao assistir ao ensaio geral do show da Tropicália, onde se encenava uma cena bíblica com Gilberto Gil representando Jesus Cristo e a multiplicação dos pães feita com bananas.
Caetano Veloso gravou “Coração Materno”, em tom satírico, com barulho exagerado de baterias, guitarras e distorções, inserindo essa canção no álbum manifesto do movimento Tropicália. E prepararam um espetáculo tropicalista, dirigido por José Celso Martinez Correa, com vistas a se tornar um programa de TV.
Convidado pelos tropicalistas, para participar do show, Vicente Celestino foi antes assistir ao ensaio geral e ficou indignado: “Um Cristo negro eu ainda admito, mas bananas no lugar dos pães já é um desrespeito”. O Cristo era Gilberto Gil.
Contrariado, Vicente Celestino voltou ao seu hotel em São Paulo e neste mesmo dia, coincidência ou não, faleceu, de um ataque cardíaco.
Caetano afirma em suas memórias ter ouvido a canção na infância e gostado muito, no que conheceu e sofreu o “patrulhamento do gosto”.
Questionado sobre a origem de sua inspiração, em sua biografia, O hóspede das tempestades, Vicente Celestino afirmou ter escrito a letra a partir de uma lenda medieval. Mas as palavras, os detalhes, a narrativa e os estados latentes, no entanto, são seus e não uma mera adaptação.
Resgatada pelos tropicalistas, a canção adquiriu força potencial e anárquica, e, literalmente, matou o autor.
O desrespeito a Vicente Celestino foi gritante. Mesmo um ouvinte que houvesse adquirido o álbum em 1968, ocasião do seu lançamento, vendo no encarte a previsão de uma versão de “Coração Materno”, mesmo conhecendo os tropicalistas, não esperava o exagerado barulho com baterias e guitarras, e distorções absolutas de melodia, num verdadeiro achincalhamento, ultrapassando o limite da paciência de um ouvinte tradicional.
Mas, Caetano explicou a sua versão de “Coração Materno” como sendo totalmente tropicalista. A execução da canção, ele considerou tecnicamente impecável. “A contravenção do arranjo de cordas mencionada se deve a sutis humores esquizofrênicos que atravessam a orquestração e que na original inexistem – pelo caráter adulatório, típico dos arranjos comerciais, adotado por esta.”
De acordo com a crítica, o canto de Vicente Celestino é másculo, heroico, voz de tenor, arrebatado em expressividade, mostrando o sotaque rústico do europeu abrasileirado. Já o canto de Caetano é, sobretudo, andrógino, macio e pausado. Traz a dicção que conhecemos como urbana ou “correta”, pronunciando as palavras com lentidão, exatidão e contenção.
A pseudo-apropriação tropicalista destruiu a música de Vicente Celestino e feriu sua autoestima.
Vicente Celestino, em fato bruto e sintomático, falece em agosto de 1968, aos 74 anos, no exato dia em que faria uma apresentação com os tropicalistas.
Violante,
Sou um leitor assíduo das crônicas bem escritas com detalhes históricos que saem da leve pena dessa notável colunista potiguar. Aprendi que o tema do soneto “Amor Materno” (Cyridião Durval) e da canção Coração Materno (Vicente Celestino) é o mesmo. Ambos falam de um nefasto matricídio.
A prezada colunista informou que “a música ‘Coração Materno’, de Vicente Celestino, sempre foi respeitada, até que surgiu no Brasil, o movimento musical Tropicália, comandado por Caetano Veloso, Gilberto Gil e outros, que destruíram e ridicularizaram composições antigas de respeitáveis compositores, tentando reinventar a música brasileira”.
Deixo o meu protesto de defensor da cultura popular ao cantor e compositor Caetano Veloso que gravou “Coração Materno”, em tom satírico, com barulho exagerado de baterias, guitarras e distorções, inserindo essa canção no álbum manifesto do movimento Tropicália. E prepararam um espetáculo tropicalista, dirigido por José Celso Martinez Correa, com vistas a se tornar um programa de TV, segundo informações precisas de nossa pesquisadora e colunista que aprofunda seus conhecimentos com seu talento investigativo.
Aproveito a oportunidade para transcrever a composição “Coração Materno”, do cantor e compositor Vicente Celestino, para demonstrar que a verdade defendida na crônica faz justiça aos belos versos de uma música que fez história eternizado na memória do povo brasileiro.
Coração Materno – Vicente Celestino
Disse um campônio à sua amada
Minha idolatrada, diga o que quer?
Por ti vou matar, vou roubar
Embora tristezas me causes mulher
Provar quero eu que te quero
Venero teus olhos, teu porte, teu ser
Mas diga, tua ordem espero
Por ti não importa matar ou morrer
Ela disse ao campônio, a brincar
Se é verdade tua louca paixão
Parte já e pra mim vá buscar
De tua mãe inteiro o coração
A correr o campônio partiu
Como um raio na estrada e sumiu
Sua amada qual louca ficou
A chorar na estrada tombou
Chega à choupana o campônio
E encontra a mãezinha ajoelhada a rezar
Rasga-lhe o peito o demônio
Tombando a velhinha aos pés do altar
Tira do peito sangrando
Da velha mãezinha o pobre coração
E volta a correr proclamando
Vitória! Vitória! Tem minha paixão
Mas em meio da estrada caiu
E na queda uma perna partiu
À distância saltou-lhe da mão
Sobre a terra o pobre coração
Nesse instante uma voz ecoou
Magoou-se, pobre filho meu?
Vem buscar-me filho, aqui estou
Vem buscar-me que ainda sou teu!
Desejo um final de semana de paz, saúde e a inspiração de sempre,
Aristeu
Obrigada, Aristeu, pelo gentil e inteligente comentário e por ter compartilhado comigo a letra de “Coração Materno”, emblemática composição do grande compositor e cantor Vicente Celestino!
Desde menina, fui frequentadora, junto com minha mãe e irmãs, dos Circos “Copacabana”, “Garcia”, “Nerino” e outros, que armavam, uma vez por outra, em Nova-Cruz, perto da nossa casa. Sempre me comovia com a encenação de dramas, como Coração Materno e o Ébrio, de Vicente Celestino.
Desejo a você também, um final de semana cheio de saúde, paz, e muita inspiração!
Grande abraço!
Violante, como sempre, trazendo uma história interessante.
Parabéns!
Obrigada, Nonato!
Tudo de bom!