VIOLANTE PIMENTEL - CENAS DO CAMINHO

Décadas atrás, entrando pelo século passado, a pequena cidade de Nova-Cruz (RN) era paupérrima, “sem água e sem luz” e não dispunha de consultórios médicos, ambulatórios nem hospitais.

A mortalidade infantil era absurda. A criança adoecia à tarde e antes de amanhecer o dia estava morta. Não havia assistência médica nenhuma, e, consequentemente, não havia plantão médico.

Chá de canela era o “remédio” que os curiosos indicavam para os bebês, quando de repente ficavam febris, pálidos e choramingando. Foi assim que vi um irmãozinho meu, Galdino, morrer, no dia em que completou sete meses de idade, ao sofrer uma convulsão pela madrugada. Tinha amolecido à noitinha, ficou febril e foi “medicado” por um conhecido charlatão da cidade, que, em sua casa, consultava o povo da roça, dia de feira. O remédio por ele indicado foi chá de canela, achando que deveria ser uma gripezinha.

Nunca esqueci o desespero da minha mãe naquela madrugada, gritando desolada, sem querer acreditar que a criança estava morta. Meu pai, também desesperado, tentava acalmá-la, mas era em vão. Eu tinha pouco mais de quatro anos. Nunca esqueci essa terrível cena, numa madrugada escura e fria.

Pela manhã, a casa se encheu de gente. À tarde, houve o enterro de Galdininho (como minha mãe o chamava), com a presença de familiares da minha mãe, que moravam em Natal. Essas coisas tristes da vida, a gente nunca esquece…

Pois bem. A feira municipal de Nova-Cruz era na 2ª feira. Era considerada a maior feira da região agreste. Começava pela madrugada e se estendia até o final da tarde.

Do balcão da bodega do nosso pai, assistíamos a um verdadeiro espetáculo de cultura popular: As cantigas dos cegos, pedindo esmolas, e insultando uns aos outros, defendendo seus direitos àquele ponto. Era uma verdadeira festa do Cordel. Os desafios eram hilários e maliciosos.

A feira era um verdadeiro encontro ou reencontro de almas. Era um dia divertido, com meu pai, minha mãe e todos os filhos no balcão da venda. Em frente, havia duas barracas que vendiam cocorotes (de coco), bolo branco (hoje chamado “bolo da moça”) e doce americano (geleia de coco). Nunca me esqueci do gosto dos cocorotes. Tudo era uma gostosura.

Mais adiante, chegava um vendedor ambulante, com uma mala cheia de óculos de grau para vender, e formava-se uma fila de pretensos “clientes”, para comprar óculos, cujo grau lhes permitisse ler as letrinhas da caixinha de fósforo “MARCA OLHO”. Esse era o teste para aprovação do grau.

A precariedade da vida em Nova-Cruz forçava o povo a dar preferência aos óculos vendidos pelo ambulante, na feira livre. Além do mais, se o problema fosse apenas “vista curta”, seria mais cômodo e mais em conta comprar os óculos já prontos na feira, do que ter que viajar a Natal, somente para esse fim. Os compradores de óculos ficavam satisfeitos quando enxergavam perfeitamente as letrinhas da caixinha de fósforos “Marca Olho”. Era o sinal de que o grau era aquele.

De Nova-Cruz a Natal são 110km. Entretanto, naquela época (60/70), em estrada de barro, a viagem de ônibus levava de 4 a 5 horas. Durante o inverno, o atoleiro era grande. Por isso, tanto os feirantes da zona rural, como os moradores da zona urbana, eram acostumados a comprar óculos de grau na feira, já prontos. A aprovação dos óculos era 100%, e ninguém reclamava. Meu saudoso tio Paulo Bezerra, por comodidade, também só comprava óculos de grau na feira, e se dava muito bem.

Também na feira de Nova-Cruz, costumava estar presente um homem vestido com uma bata branca, com pose de doutor, que ali armava uma pequena banca e sobre ela mantinha uma garrafada, que continha um ácido para “tirar” sinais da pele. Nessa época, não se falava em carcinoma. A fila de pessoas que pagavam para tirar sinais era grande. Nunca se soube de um insucesso de um desses “procedimentos cirúrgicos”. Hoje, esse homem seria preso por charlatanismo, mas, naquela época, era a salvação do povo que tinha problemas com sinais. Meus tios Paulo Bezerra e Eulina Bezerra chegaram a tirar alguns sinais com ele e os “procedimentos” foram muito bem sucedidos.

Essas lembranças fazem parte da minha saudade. Volto à minha infância e juventude. Essa feira, na minha vida, foi muito mais do que uma simples feira. Ela faz parte das mais belas recordações de Nova-Cruz, com cenários inesquecíveis, que guardo na memória e no coração.

Ave, Nova-Cruz!

2 pensou em “A FEIRA DA MINHA ALDEIA

  1. Eita Violante, mais uma vez você me faz voltar no tempo em que gurí buchudo, “chei de lumbriga ” vivia e trabalhava dentro da feira de Campina Grande. As 3 ceguinhas cantoras , e que muitos anos depois foram reconhecidas nacionalmente e teve cd editado e cantado por feras da nossa MPB; o homem da cobra, falante pelos cotovelos com seu líquido milagroso; minha banca com creme dental gessy e sabonete Lyfeboy que os matutos adquiriam e me faziam a alegria ao fim do dia com um apurado generoso ou minha banca com fogos na época de São João; Os gibis, com capas cortadas, que os adquiria para revender em frente ao cine Capitólio aos domingos pela manhã; as timbugadas no açude velho e jogo de bola em um terreno seco da muléstia e que com a chuva se transformava num lamaçal da gota serena que nos fazia contrair uma coçeira gostosa por entre os dedos; a descoberta da paixão, não correspondida, claro, por uma professora, e minha última escola, antes do admissão ao ginásio, cujo professor ,Napoleão, com sua palmatória a ser usada a qualquer momento nos obrigava a cantar o hino nacional todo santo dia as 7,00. Como cantava Marinês : Tenho saudade de Campina Grande, peço notícias que você mande….ou Jackson : cantando meu forró vem na lembrança o meu tempo de criança que me faz chorar. E choro todas as vezes quando lá estou e passeio pelas ruas do ” Alto Branco, Zé Pinheiro ” onde não aprendí a tocar pandeiro, mas aprendí a ouvir música com “radiola de construção própria que reproduzia com rotação alterada,( já que era movimentada pelo meus dedos) recebidos gratuitamente da Rádio Borbirema.. Perdão pela minha viagem, mas sua crônica ….
    me fez viajar no tempo .
    Grato por mais uma!

  2. Obrigada pelo gratificante comentário, prezado Nilson Araújo, e por me fazer também caminhar pela “sua aldeia”, numa época em que a maldade não tinha nascido.
    Achei maravilhoso o seu relato, e vi que as suas emoções são semelhantes às minhas.
    Gostar de mergulhar no passado não é só privilégio meu. Fiquei feliz com a coincidência de gostos, numa verdadeira ode ao passado.

    Grande abraço!

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